A Tragédia da Escola do Realengo

Artigo número 4, escrito por Eduardo Chaves em 8/4/2011, e publicado originalmente no site das Editoras Ática e Scipione em 11/4/2011.

Comecei a escrever este artigo no próprio dia da tragédia; terminei-o no dia seguinte de manhã. Talvez seja cedo demais para conseguir escrever alguma coisa que faça sentido e que respeite o sentimento dos parentes das crianças mortas e feridas no Rio de Janeiro hoje cedo – e o sentimento das crianças ferias que sobreviveram. Afinal de contas, até mesmo os detalhes do fato custam a aparecer: o que de fato aconteceu, que culminou na morte de inicialmente onze (agora já doze) crianças e do atirador?

Mas é difícil ficar calado. Até comentaristas esportistas e econômicos no rádio não conseguiram, num primeiro momento, ater-se às suas pautas e se sentiram obrigados a falar no assunto.

Isto por que todo mundo está chocado. Mais do que chocado: sacudido, chacoalhado. Até a Presidente da República, durona, ex-guerrilheira, chorou.

Por que tamanha comoção neste caso?

Lamentavelmente, o Rio de Janeiro e muitas outras grandes cidades brasileiras já aprenderam a conviver com tireoteios e mortes nas ruas e nas casas – estão relativamente dessensibilizados em relação à violência e à morte nas ruas e nas casas.

Mas desta vez foi numa escola e foram crianças as principais vítimas: onze delas morreram na hora, uma depois, dez meninas (que geralmente se sentam na frente na sala de aula) e dois meninos. E não foram crianças que dormiam na rua, como na chacina da Candelária: foram crianças que estavam na escola, fazendo o que se esperava delas.

Lamentavelmente, o mundo já aprendeu a conviver com tragédias desse tipo nos Estados Unidos.

Mas desta vez foi aqui, no Brasil, local que acreditávamos imune a esse tipo de absurdo. Não foi um aluno atual da escola que cometeu o crime, como em geral acontece nos Estados Unidos, mas foi um ex-aluno. No fundo, dá no mesmo. (Alguns já se perguntam se finalmente chegamos lá, ao primeiro time dos países desenvolvidos, agora que coisas assim acontecem aqui também).

Os caçadores de explicações já trabalham a toda. A mãe biológica do rapaz aparentemente era isso; a família que o adotou aparentemente era aquilo; o rapaz, sentencia o governador do Rio, era um animal, um psicopata. Repórteres descobrem, com base em testemunhos de sobreviventes, relatados por parentes, que o assassino aparentemente poupou alguns, que preferiu matar meninas, e que, em muitos casos, as defigurou atirando-lhes no rosto. Tudo isso parece requerer explicações. Buscam-se psicólogos, psiquiatras, psicanalistas…

A maioria de nós fica tentado a buscar e aceitar explicações que enquadrem o acontecido na categoria das excepcionalidades, das anormalidades e psicopatias, mesmo (como já o decretou o Governador) – algo que não aconteceria numa escola particular de elite, como a frequentada por nossos filhos ou netos…

Mas não nos esqueçamos de que, há algum tempo, segundo tudo indica, numa família de classe rica, em São Paulo, uma menina jovem e linda mancumunou-se com o namorado para assassinar os pais… Foram só os dois que morreram, não onze, e eram adultos – mas quem planejou o assassinato, segundo consta, era jovem e era filha deles. Isso parece até pior – se é que dá para comparar essas coisas…

Também há algum tempo, e também aqui em São Paulo, um senhor de meia idade, bem de vida e respeitável, jornalista admirado pelos colegas, matou, segundo tudo indica, a mulher com quem vivia e a quem professava amar.

E o adolescente que saiu atirando a esmo no cinema do Shopping Morumbi? E o jovem que acabou com a vida do outro com um taco de beisebol em uma livraria do Conjunto Nacional?

E há o pai que joga a filha pela janela… (Até hoje tenho dificuldade de acreditar que foi ele!)

E tantos outros crimes de gente de bem, gente bonita, gente certinha, gente rica, gente jovem…

O que esses fatos todos parecem sugerir é que, independentemente de idade, sexo, classe social, riqueza, fama, nível cultural, nossa estabilidade e nosso equilíbrio são precários. Parecemos normais hoje, amanhã cometemos crimes o que só pode ser descritos como odientos e insanos.

Até aqui, falamos em crimes contra a vida.

Mas há também os crimes contra o patrimônio… Quando a pessoa é pobre, está com fome, e rouba comida, vá lá… Mas e a história da linda e admirada atriz de cinema que, de vez em quando, parece surtar e rouba das lojas bobagens de que ela não precisa e que certamente, se realmente as desejasse, não precisaria roubar? Ou o problema das gravatas do respeitado rabino? Ou a Promotora de Justiça brasileira que, segundo os jornais de anteontem, alega, para si mesma, através de seu bastante procurador, insanidade mental?

O que acontece em todos esses casos? Talvez não haja uma só explicação que se ajuste a todos eles. Talvez nunca venhamos a saber com certeza, em cada caso, o que se passou.

Mas uma coisa é certa… Todos esses fatos surpreenderam quem conhecia as pessoas acusadas de perpetrá-los. Ninguém esperava que elas viessem a estar envolvidas nesse tipo de coisa…

E há as coisas que não chegam a ser crime. Pessoas que pareciam ser paradigmas de estabilidade emocional e que se desestruturam e desmoronam quando o/a namorado/a resolve terminar o namoro ou quando o cônjuge decide deixá-las… Em casos extremos, essas coisas podem virar suicídios ou assassinatos.

Ou, mais trivial ainda, o que dizer das brigas por acidentes de trânsito, ou simplesmente porque alguém fechou alguém no trânsito? Isso também tem produzido vários assassinatos.

E o que dizer dos crimes de ódio, em que alguém, geralmente de boa família, ataca um pobre  que dorme na rua e lhe ateia fogo, ou agride um homossexual que passa, ou uma prostituta que está quieta na calçada, ou um estrangeiro que fala uma língua desconhecida?

Tudo isso mostra quão instável é nossa estabilidade, quão precário é nosso equilíbrio…

Dificilmente será um fato só a explicar o que aconteceu no Realengo: a mãe natural doente do rapaz, ou as características da família que o adotou, ou a experiência que ele anteriormente teve na escola, ou o fato de que não tinha amigos ou namoradas e era ensimesmado… Tudo isso provavelmente é parte da história de vida do rapaz, como muitas coisas diferentes fizeram parte da história de vida de tantas outras pessoas, até ali de bem, que, de repente, surtam e cometem atos que ninguém esperava e que os que as conheciam bem não imaginavam que pudessem cometer.

John Bradford, reformador inglês do século XVI, ao contemplar um bêbado, ou uma prostituta, ou um criminoso, teria dito: “There, but for the grace of God, goes John Bradford” – “Ali, não fosse a graça de Deus, estaria eu”. Não é preciso acreditar em Deus para apreender a verdade contida na famosa frase de John Bradford. A maioria de nós já viveu momentos em que sentiu que, por pouco, não faz uma besteira enorme e não vira foco de atenção, como o que ora é dirigido para o assassino das doze crianças e suicida do Realengo.

O filme MatchPoint, de Woody Allen, começa com uma cena instigante. Um jogo de tênis, em que a bola vai de um lado para outro da quadra e volta, várias vezes, até que bate na parte de cima da redinha e sobe – e a cena é congelada com a bolia no alto. Uma voz, em off, diz:

“O homem que disse ‘Prefiro ter sorte a ser bom’ tinha uma visão profunda da vida. As pessoas têm medo de enfrentar o fato de que uma parte grande de nossa vida depende da sorte. É assustador imaginar que tanto, em nossa vida, escapa, ou pode escapar, do nosso controle. Há momentos numa partida de tênis em que a bola bate no topo da rede, e, por uma fração de segundo, pode ir para frente ou cair para trás. Com um pouco de sorte, ela vai para frente, e você ganha o jogo. Mas nem sempre isso acontece. Há vezes em que ela cai para trás, e você perde.”

“There, but for the grace of God, go I”. Ou, então, se você é como Woody Allen, “There, but for sheer good luck, go I”.

Vamos nos lembrar disso quando a gente presenciar essas coisas horríveis que a gente não consegue entender.

Mas, olhando para frente, há duas tarefa sócio-psico-pedagógicas hercúleas à frente de nós todos.

Primeiro, a tarefa mais próxima e mais urgente. Como lidar com as crianças que ficaram? Não só com as que foram feridas, mas com as que presenciaram o assassinato a queima-roupa de seus colegas, quem sabe de BFF: best friends forever (forever pode ser muito pouco tempo, em alguns casos). Muitas delas provavelmente estão traumatizadas, não vão querer voltar à escola (não àquela escola, pelo menos), nunca esquecerão o acontecido, talvez até tenham dificuldade para falar sobre o que se passou. Para os mais fortes, que voltarem à escola, será que os professores conseguirão ajudá-los? Eles próprios estão traumatizados e, provavelmente, precisando de ajuda… Como a comunidade daquela escola reagirá quando alguém soltar uma bombinha durantes as festas de Junho, ou algum barulho diferente acontecer no corredor?

Alguém sabe como lidar com isso? Eu me confesso totalmente incompetente nessa área.

O segundo problema é: existe algo que possamos fazer, na educação familiar, na escola, na sociedade em geral, para que coisas como essa de ontem não aconteçam mais – ou, no mínimo, não passem a acontecer com certa frequência como acontece nos paises desenvolvidos?

Alguém sabe como responder a isso? Eu, mais uma vez, me declaro incompetente. Mas espero que alguém possa nos ajudar a descobrir como enfrentar problemas como a tragédia de ontem, lidando com o rescaldo e, mais importante, prevenindo-as.

Em São Paulo, 8 de Abril de 2011

Transcrito aqui em Salto, 3 de Janeiro de 2016.

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