Artigo número 8, escrito por Eduardo Chaves em 28/4/2011, e publicado originalmente no site das Editoras Ática e Scipione em 9/5/2011.
No meu sexto artigo aqui neste blog, que teve o título de “O Elemento”, falei da necessidade de inverter o nosso enfoque em relação ao trabalho. Em vez de trabalhar fazendo algo de que não gostamos, apenas para ganhar dinheiro que nos permita fazer, fora do trabalho (no fim do dia, nos fins de semana, nos feriados, nas férias, na aposentadoria), as coisas que realmente nos dão prazer, devemos descobrir e cultivar as coisas que a gente realmente gosta de fazer, que nos dão prazer, e que a gente faria por puro prazer, mesmo que ninguém nos pagasse para fazê-lo, e, daí, encontrar ou inventar formas de ganhar dinheiro, fazendo-as.
Neste artigo, o oitavo, queria aplicar esse princípio à aprendizagem escolar.
A escola básica é um ambiente em que crianças, adolescentes e jovens aprendem aquilo que é considerado necessário e importante para a sua educação, para o seu desenvolvimento. Em geral as crianças não têm grande interesse em aprender a maioria das coisas que a escola deseja e espera que aprendam. Por isso, o problema da motivação – na verdade, o problema da falta de motivação – acaba se tornando um dos maiores obstáculos para a aprendizagem dos alunos na escola.
Diante da ausência de motivação intrínseca por parte dos alunos (falta de interesse em aprender o que a escola deseja que eles aprendam), a escola procura motivar os alunos extrinsecamente. Aprender as coisas que ali são propostas, afirma-se, é necessário para arrumar um bom emprego e auferir uma boa renda, que, daí, lhes permitirá fazer as coisas em que realmente têm interesse – fora do horário de trabalho, nos fins de semana, nos feriados, nas férias, na aposentadoria… Bons professores tentam, muitas vezes, fazer as aulas divertidas, prazerosas, para compensar a falta de interesse dos alunos. Professores de cursinhos se tornam, em muitos casos, verdadeiros artistas de palco para motivar extrinsecamente os seus alunos. Muitas vezes eles conseguem tornar a aula razoavelmente divertida e conseguem entreter relativamente bem os seus alunos – mas não conseguem que seus alunos fiquem intrinsecamente interessados no que estão fazendo.
É possível, entretanto, encontrar uma solução melhor…
Se o currículo escolar, em vez de focar a assimilação de conteúdos informacionais disciplinares, focar o desenvolvimento de competências e habilidades básicas, é possível mudar o enfoque, de forma análoga à sugerida em O Elemento, o livro de Sir Ken Robinson – e resolver o problema da falta de motivação dos alunos para a aprendizagem.
Digamos que uma das competências previstas no currículo seja resolver ou solucionar problemas – problemas de vários tipos. O foco estará em construir métodos e técnicas para resolver diferentes tipos de problemas. Neste caso, é perfeitamente possível deixar os alunos escolherem em que problema, ou em que tipo de problema, querem trabalhar. Uma aluna pode querer descobrir se animais podem manter relacionamentos homossexuais. Outro aluno pode querer saber por que a temperatura está quente aqui no sul do Brasil quando está fria no norte dos Estados Unidos e da Europa, e vice-versa. Outra aluna pode estar interessada em saber por quanto tempo teria de olhar as crianças da vizinha para ganhar dinheiro suficiente para comprar uma bicicleta. Outro aluno pode querer saber como é que o trem do metrô consegue parar exatamente no lugar certo na estação mesmo sem ter um condutor. E assim vai.
Todos podem trabalhar nos problemas que lhes interessam – e, no entanto, todos vão aprender, se bem assistidos por um professor competente, os mesmos métodos e técnicas de solucionar problemas.
Em outras palavras, aborda-se a aprendizagem a partir dos interesses dos alunos, das coisas que eles já estão interessados em fazer, e daí se descobrem ou inventam maneiras de eles aprenderem, fazendo o que lhes interessa, os métodos e técnicas de solução de problemas que a escola deseja que aprendam. O problema da falta de motivação nem surge aqui.
Na Escola Lumiar de São Paulo, quando trabalhei lá, os alunos escolhiam os projetos em que queriam trabalhar – e, depois, a equipe pedagógica encontrava formas de estruturar os projetos de aprendizagem de modo que eles aprendessem também outras coisas importantes, enquanto faziam o que lhes interessava.
Uma vez os alunos escolheram, por votação, trabalhar com a preparação de alimentos. Queriam aprender a cozinhar. O projeto recebeu o grandioso nome de Projeto Gastronomia. O trabalho com o projeto envolveu a preparação de diversos tipos de alimento, desde sushi e sashmi, churrasco, massas, saladas, etc. até diferentes tipos de sobremesa. Enquanto eles preparavam esses alimentos, os alunos foram levados contemplar questões de diversos tipos: por que em alguns alimentos colocamos sal e em outros, açúcar? Como é que a gente sabe quanto sal deve colocar numa massa ou no arroz e quanto açúcar colocar na massa do bolo? Por que algumas coisas são medidas por xícaras, outras por colheres de sopa, outras por colheres de sobremesa, etc. Não seria possível medir tudo em gramas? Por que alguns alimentos estragam mais rapidamente se ficarem fora do refrigerador? Por que alguns alimentos mofam? Por que a gente fica com dor de barriga, ou ainda coisa pior, quando come comida estragada? Por que alguns tipos de alimento fazem mal à saúde e outros são considerados sadios? Por que diferentes tipos de alimento têm prazo de validade diferente do dos outros (maior ou menor)? Por que diferentes partes do país, ou diferentes países, têm hábitos alimentares tão distintos? É sadio tomar leite não pasteurizado? Por que a maior parte dos indianos adota o vegetarianismo? Por que os judeus não comem carne de porco? Por que, tradicionalmente, católicos não comiam carne na Quaresma? Por que se come mais peixe na Semana Santa? Por que os japoneses (e tantos outros) gostam de comer carne crua? Por que a gente em geral gosta mais de alimento que fica bonito depois do preparo? A propósito, por que alguns tipos de carne diminuem de tamanho quando cozidas? Por que diferentes tipos de alimentos produzem cheiros diferentes quando estão sendo cozinhados?
Provavelmente, se um professor tentasse fazer com que as crianças aprendessem as respostas a todas essas perguntas num outro contexto, elas achariam o aprendizado extremamente chato… Aqui, entretanto, quando elas estão fazendo o que escolheram fazer, essas perguntas e respostas se encaixam bem.
Note-se que não está se propondo aqui um anarquismo pedagógico, uma escola em que cada um aprende o quer – inclusive nada, se assim for sua decisão. Defende-se aqui a necessidade de a escola ter uma proposta pedagógica e uma definição clara do que ela espera que seus alunos aprendam, daquilo que ela espera que os alunos saiam de lá sabendo e sabendo fazer. Mas há, isto sim, o reconhecimento do fato de que há várias maneiras de aprender algo, e que é possível aprender a resolver problemas, por exemplo, ou a responder perguntas cuja resposta se desconhece, ou a fazer pesquisa, trabalhando com tópicos ou assuntos os mais diversos. Por isso, é perfeitamente possível deixar que os alunos trabalhem naquilo que lhes interessa e, ainda, aprendam o que a escola deseja que eles aprendam – desde que o currículo da escola esteja focado no desenvolvimento de competências básicas em vez de na assimilação de informações de natureza disciplinar e desde que os professores sejam capazes de mediar o aprendizado desejado a partir dos interesses de cada um dos alunos.
O princípio, aqui, é o mesmo proposto no livro O Elemento, de Ken Robinson. Achar uma coisa que nos interessa, que queremos fazer, independentemente do aprendizado que ela possa propiciar, e daí descobrir ou inventar formas de desenvolver competências e habilidades importantes fazendo aquilo que queremos, de qualquer forma, fazer.
São Paulo, 28 de Abril de 2011
Transcrito aqui em Salto, 3 de Janeiro de 2016.