Artigo número 5, escrito por Eduardo Chaves em 31/3/2011, e publicado originalmente no site das Editoras Ática e Scipione em 18/4/2011.
Em meu artigo inicial disse que iria usar, neste blog, uma definição bastante abrangente de tecnologia: tecnologia é tudo aquilo que o ser humano inventa para tornar sua vida mais fácil ou mais agradável.
Às invenções humanas que se destinam a tornar nossa vida mais fácil decidi dar o nome genérico de ferramentas; as invenções humanas que têm por objetivo nos dar prazer, tornar nossa vida mais agradável, resolvi chamar de brinquedos.
Uma classificação interessante da tecnologia, portanto, a divide nessas duas categorias: ferramentas (tools) e brinquedos (toys). Technology: tools and toys. Três palavrinhas interessantes iniciadas com a letra “t” em Inglês.
Os leitores dedicados de Rubem Alves, e há muitos, reconhecerão aqui a influência de sua tese de que a educação deve nos capacitar a criar e utilizar duas caixinhas: uma caixinha de ferramentas, cheia de coisas úteis, que nos ajudam a permanecer vivos, ou seja, a sobreviver, e uma caixinha de brinquedos, cheia de coisas inúteis, mas prazerosas, que nos dão as razões necessárias para querer permanecer vivos, posto que nos permitem fruir a vida.
O arado, o martelo, a chave-de-fenda são ferramentas. Também o são os utensílios domésticos (o fogão, a geladeira, a batedeira), que são chamados assim porque são úteis na casa. A penicilina, o aparelho de raio x, o tomógrafo, também estão nessa categoria. O quadro-negro, o giz, o lápis, o caderno, o livro, o retroprojetor (já esqueceram que isso um dia existiu?) – tudo isso é ferramenta. Também o é o mimeógrafo a álcool. Ele foi muito útil para muitos professores. Mas não conheci nenhum professor que derivasse prazer de sujar seus dedos de roxo com ele…
Uma pipa, um peão, uma bola, por outro lado, são brinquedos. Um aparelho de videogames também o é, sem dúvida. Lego também. Todas essas coisas são absolutamente inúteis em termos de nossa sobrevivência. Mas nos dão prazer. Um violino também é um brinquedo, porque dá prazer, a quem toca e a quem ouve.
É verdade que um violino pode ser também ferramenta de trabalho, caso seja usado por um músico profissional para ganhar a vida. O violino, nesse caso, passa a ser meio de vida. Mesmo assim, tocá-lo continua a dar prazer ao violonista, a maior parte das vezes – e ao público, que chega a pagar para ouvi-lo.
Um computador é uma tecnologia que pode ser tanto ferramenta como brinquedo, pois podemos trabalhar ou brincar com ele…
Nesse contexto é interessante levantar desde já a seguinte questão, com duas faces:
- aprender é mais como trabalhar ou mais como brincar?
- a tecnologia mais relevante para a educação é a tecnologia-ferramenta ou a tecnologia-brinquedo?
Nós, educadores, usamos várias tecnologias para educar. Usamos, naturalmente, o livro, mas usamos também o quadro negro, o giz, o lápis, a borracha, a caneta, o mimeógrafo, quem sabe até o retroprojetor, a máquina fotográfica, o projetor de slides, o toca-discos, o gravador e reprodutor de sons, a câmera de vídeo, o DVD player, o televisor, o projetor multimídia, o telão… Enfim, usamos uma quantidade enorme de tecnologias no nosso trabalho pedagógico.
Por que essas tecnologias apenas, e não também computadores, tablets e telefones celulares?
Por que somente essas e não o PSP, o DS/DSi/DX, o Wii e o Xbox Kinect?
Os telefones celulares são ferramentas. Falamos uns com os outros com eles, mandamos torpedos, verificamos e respondemos nossos e-mails, conferimos a programação do cinema na Internet, encontramos a rota para o nosso destino no trânsito…
Mas será que os celulares são apenas ferramentas? Pergunte a um adolescente qualquer se o telefone dele é apenas uma ferramenta. Claramente não é. Além de ferramenta, é brinquedo, é fonte de lazer e de prazer.
A maior parte dos professores é contra o uso do celular dentro da escola por quê? Por que ele é ferramenta? Mas há tantas dentro da sala de aula, a começar pelo livro, pelo caderno, pela esferográfica ou lapiseira!
Será que o celular não é proibido dentro da escola porque é (também) brinquedo, fonte de prazer, e a gente acha que educação é coisa séria?
Quando é que vamos reconhecer que, da mesma forma que aprendemos enquanto trabalhamos, podemos aprender, e muito, enquanto brincamos?
Será possível imaginar que o Wii e o Xbox Kinect um dia venham a adquirir direito de cidadania no ambiente escolar?
Vamos complicar a discussão um pouco. E a arte? A educação artística faz parte do currículo da maior parte das escolas de educação fundamental. Mas é bom lembrar o que disse Ana Ralston no lançamento dos sites de Mídia Social da Ática e da Scipione: tudo o que entra na escola a escola mastiga, digere, e transforma em escola… Será por isso que, na escola, a arte vira educação artística ou arteducação – e, no processo, perde a graça?
Será que ler Dom Casmurro e A Moreninha porque estão na lista de “livros paradidáticos” exigidos, ou na lista de livros que podem cair no Vestibular, é a mesma coisa que ler esses livros por prazer?
Participei uma vez, faz tempo, de um colóquio sobre Ensino a Distância no Ensino Superior na sede da Microsoft, em Redmond, perto de Seattle. Alguns professores universitários das melhores universidades do mundo estavam perplexos diante do enigma causado pelo fato de que estas duas premissas desse quase silogismo não produziam, na prática, o resultado esperado:
Jovens gostam de tecnologia
Ensino a Distância usa tecnologia
Logo…
Logo, jovens devem gostar de Ensino a Distância, certo? ERRADO. Jovens gostam de tecnologia para promover seus interesses, porque isso lhes traz satisfação, lhes dá prazer… Mas uma aula sobre um assunto que não tem interesse para eles continua a ser chata, ainda que faça uso da mais mirabolante tecnologia… Se a tecnologia é desconhecida, ela pode até despertar algum interesse no início, fruto mais da curiosidade do que do prazer – mas, assim que a tecnologia é dominada, o mistério desaparece e o interesse se esvai.
Acho que a frustração que muitos professores sentem ao tentar usar a tecnologia com seus alunos está no fato de que os professores veem a tecnologia mais como ferramenta (uma ferramenta de ensinar, ou de ajudar o ensino), enquanto os alunos a veem mais como brinquedo.
Voltando às perguntas feitas atrás:
- aprender é mais como trabalhar ou mais como brincar?
- a tecnologia mais relevante para a educação é a tecnologia-ferramenta ou a tecnologia-brinquedo?
Se prestarmos atenção ao processo que uma criança usa para aprender – para aprender a andar, a falar, a correr, a saltar, a pular corda, a fazer estrela, a andar de bicicleta, a pedalar no jogo de futebol, a nadar, a jogar um videogame difícil, a fazer um desenho ou uma pintura para adornar a mesa de trabalho da mãe, a consertar um brinquedo que quebrou, etc… – veremos que aprender, para ela, é muito mais afim ao brincar do que ao trabalhar.
Não é preciso reencantar a educação: ela já é encantada.
Consequentemente, a tecnologia mais relevante para a educação é a tecnologia-brinquedo, a tecnologia que a criança já gosta de usar fora do contexto escolar.
Mas é preciso tomar cuidado para que a escola não mastigue e digira a tecnologia, transformando-a em escola. Um livro chato lido num iPad continua a ser chato… O Podcast de uma aula, também. A tecnologia não é uma alquimia que transforma o chato em agradável, o indigesto em saboroso.
Mário Prata uma vez escreveu uma deliciosa crônica intitulada “As Meninas-Moça”. O texto pode ser encontrado na Internet em http://www.marioprataonline.com.br/obra/cronicas/prata990407.html. Ele era torcedor do time de vôlei da Leites Nestlé (que fabrica o Leite Moça) – e, pelo jeito, até meio apaixonado por aquela jogadora alta e bonita, a Leila… Mas não o suficiente para não admirar também as pernas da Karim e outros atributos da Helena e da americana Tara.
Tempo depois, o Mário Prata escreveu uma outra crônica, intitulada “O que é isso, Ministro Paulo Renato?”. É impossível resumi-la. Por isso vou citar alguns trechos (mas você pode lê-la na íntegra em http://www.marioprataonline.com.br/obra/cronicas/prata990616.html):
Saber que uma crônica minha, publicada aqui neste espaço, foi tema da prova de português num vestibular para medicina só me envaidece. O ego dá um pulo. Melhor até mesmo que um elogio no The New York Times (sorry, mas eu tinha de contar).
A crônica imposta aos jovens se chama As Meninas-Moça. Publicaram a danada inteira e depois fizeram oito perguntas em forma de múltipla escolha.
E eu, que escrevi, que sou o autor, errei as oito.
Imagino os meninos e as meninas, que querem ser médicos, submetidos a tal dissecação.
Fico aqui me perguntando, ministro, pra que isso? Será que, para cuidar de uma dor de cabeça, um jovem tem de saber se a minha expressão “esparramados em seios esplêndidos” é uma paráfrase, uma metáfase, uma paródia, uma amplificação ou o resumo de um texto bem conhecido pelo cidadão brasileiro? Com toda a sinceridade, ministro da Educação Paulo Renato, você sabe me responder isso? Algum assessor seu sabe? . . .
O título da crônica do vestibular, já disse, era As Meninas-Moça e eu me referia ao time feminino de vôlei da Leites Nestlé, que ia acabar. Olha o que eles perguntaram aos alunos, sobre o título:
a – ao usar meninas-Moça, não flexionou no plural o segundo elemento porque criou um neologismo, processo que não se submete a normas da língua;
b – ao criar um novo vocábulo, não transgrediu as regras de flexão dos compostos;
c – usou uma flexão admissível porque o segundo elemento é um nome próprio feminino;
d – ao usar a expressão do composto, violentou a regra da língua que preconiza, para esse caso, a variação no plural para os dois elementos;
e – usou apropriadamente a forma meninas-Moça, visto que o segundo elemento tem função apositiva. . . .
E agora, meu querido ministro, só para terminar a aula, me diga, nas expressões abaixo, onde você identifica um exemplo de intertextualidade:
a – “… principalmente o feminino balé de braços, de loiras e altitudes mil”;
b – “Não, leite Moça foi feito para flanar esparramado em seios esplêndidos, chacoalhando no ar, jornadando até as estrelas”;
c – “Aquelas meninas-moças, todas voando pela quadra já fazem parte da latinha”;
d – “Embaixo, está escrito: indústria brasileira”;
e – “… que saem de dentro da lata como que convocadas pelos gênios das lâmpadas que iluminam.”
E agora, C, D, ou F?
O MEC, o patrão das escolas, desencantou o que era encantado. Mastigou, digeriu e transformou em escola a crônica do Mário.
O que precisa se tornar encantado é a escola. Não é o caso de reencantá-la. Não acredito que ela jamais tenha sido encantada. É uma pena. Mas ela precisa pelo menos aprender a não desencantar o que é encantado, a não tratar como ferramenta o que é brinquedo.
São Paulo, 31 de Março de 2011
Transcrito aqui em Salto, 3 de Janeiro de 2016