[ Abaixo, o primeiro capítulo do meu livro Tecnologia e Educação: O Futuro da Escola na Sociedade da Informação, cuja história é parcialmente descrita no primeiro post desta série. Esclareço, para facilitar a vida do leitor, que este livro foi escrito há quase exatamente 17 anos, nos meses de Novembro e Dezembro de 1998, a pedido do PROINFO, Programa de Informática na Educação do Ministério da Educação, que estaria publicando, em prazo curtíssimo, uma coleção de 20 livros sobre o tema “Informática para Mudança na Educação”. Para o resto da história, por favor, leia o início do primeiro post da série. Trata-se, portanto, de um texto “datado”, porque poucas coisas mudam tão rápido na nossa sociedade como a tecnologia. Infelizmente, a educação muda, quando muda, muito devagar. ]
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I. Tecnologia, Sociedade e Educação
1. A Informatização da Sociedade
Uma das características mais visíveis de nossa sociedade, em países desenvolvidos, ou mesmo em países em desenvolvimento, como o nosso (hoje chamados por alguns de “emergentes”), é a presença da tecnologia em todos os setores. E a tecnologia mais importante, hoje, é o computador ou está centrada nele.
Comecemos com um simples exercício. Faça uma lista de aspectos de sua vida diária que envolvem contato direto ou indireto com o computador. (Por contato indireto quer-se dizer, neste caso, contato com produtos do computador).
- No seu trabalho, seu contracheque ou “hollerith” é, com toda certeza, emitido por computador;
- Seu extrato bancário, naturalmente, é emitido por computador;
- Se você tem cartões de crédito, seus extratos também são emitidos por computador;
- Se você compra a crédito, por meios mais convencionais, seus carnês são feitos por computador;
- Sua notificação de Imposto de Renda (IRPF), Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), Imposto Permanente sobre Veículos Automotivos (IPVA), e outros impostos é elaborada por computador, e, possivelmente, você até entrega sua declaração de Imposto de Renda e paga seu PVA pela Internet;
- Suas contas de luz, água, telefone, TV por assinatura, etc., também são preparadas e emitidas por computador;
- Na escola de seu filho, a matrícula, o carnê de pagamentos (caso ele esteja em escola particular), o relatório de notas, o histórico escolar, etc., são todos elaborados com o auxílio do computador;
- Se você precisa de alguma informação, o caminho mais natural, hoje em dia, é procurá-la primeiro na Internet;
- O jornal e a revista que você compra na banca (ou lê pela Internet) foram redigidos, compostos, diagramados, impressos (se este foi o caso), e distribuídos com o auxílio do computador;
- Emissoras de rádio que você de vez em quando ouve transmitem seus programas via satélite para todo o país e via Internet para todo o mundo, fazendo com que o rádio deixe de ser um meio de comunicação tipicamente local;
- Os programas de televisão a que você diariamente assiste, não poderiam ter sido feitos ou transmitidos sem o auxílio do computador;
- Muitos dos comerciais que você vê na televisão são feitos utilizando-se o computador para efeitos visuais e sonoros (efeitos de multimídia);
- Os efeitos especiais de muitos dos filmes hoje famosos não poderiam ter sido alcançados sem o computador e alguns desenhos animados de longa metragem já estão sendo feitos totalmente através do computador;
- Se você precisa ou deseja se comunicar com alguém, pessoa física ou instituição, o correio eletrônico é hoje uma das alternativas mais eficientes e eficazes;
- Grande parte da correspondência que você recebe foi endereçada via computador e toda a sua correspondência chega à sua casa mediante processos controlados por computador;
- O telefone que você usa hoje não mais funciona sem o computador: suas chamadas locais, interurbanas, e internacionais, são todas completadas e contabilizadas por computadores;
- O terminal telefônico usado em sua casa, se você mora em local atendido por central telefônica digital, é um computador disfarçado;
- A distribuição de água e energia elétrica em sua cidade provavelmente é controlada por computador;
- Se você vai viajar, suas reservas, tanto em companhias aéreas como em hotéis, são feitas por computador;
- Em aviões, como, também, já em automóveis e em trens mais recentes (como os do metrô de nossas capitais), o computador é responsável pelo controle e bom funcionamento de um número cada vez maior de processos, fazendo com que esses meios de transporte sejam verdadeiras redes ambulantes de computadores;
- Caminhões e ônibus de frota têm seus movimentos rastreados por satélite e monitorados por computador, para que não se atrasem e nem se desviem desnecessariamente da rota;
- Seu relógio ou despertador digital tem um minúsculo microprocessador dentro dele, como também é o caso, naturalmente, de sua máquina de calcular eletrônica (a expressão tendo se tornado até pleonástica neste caso);
- Na verdade, há relógios de pulso que também são bancos de dados de endereços e compromissos e que podem ser conectados a um computador maior para troca de informações;
- Sua câmera fotográfica e sua câmera de vídeo são controladas por microprocessadores e câmeras fotográficas totalmente digitais (sem filmes) já começam a conquistar o mercado;
- Seu toca-discos a laser e seu vídeo-jogo (“videogame”) são verdadeiros computadores disfarçados;
- Em aparelhos domésticos, como televisores, aparelhos de vídeo-cassete, fornos a microondas, geladeiras, etc., microprocessadores já controlam o funcionamento de uma série de processos;
- Em vez de ir ao banco, você normalmente interage com sua instituição bancária através de caixas eletrônicos e/ou serviços de atendimento remoto (computador, telefone, ou fax);
- Se você vai ao médico, grande parte dos equipamentos usados nos vários exames a que você se submete são computadorizados;
- Vários produtos manufaturados que você adquire, de roupas a automóveis, foram feitos com o auxílio do computador;
- As empresas usam a Internet para fazer seu marketing, para comercializar seus produtos e serviços, e para dar suporte pós-venda aos seus clientes, bem como para se conectar com parceiros, fornecedores, instituições financeiras e órgãos governamentais (principalmente os da área tributária e fiscal);
- Matrizes e filiais de empresas multinacionais, bem como as instituições financeiras, em geral, em qualquer lugar do globo, estão interconectadas via computador 24 horas por dia, sete dias por semana;
- A guerra tornou-se um afazer de alta tecnologia e os instrumentos bélicos são equipamentos de alta precisão;
- As igrejas começam dar assistência espiritual aos seus paroquianos através da Internet;
- Na política, já se vota eletronicamente e prevê-se o fim próximo da democracia representativa, a ser substituída pela democracia direta, eletrônica, em que plebiscitos e referendos são feitos instantaneamente [1];
- Seu joguinho nas várias loterias não sairia se não fosse o computador, e até o tradicional Bingo está computadorizado (só faltando informatizar o ponto de venda do Jogo do Bicho);
- Se você vai a um estádio de futebol ou a um ginásio esportivo, é provável que lá haja um placar eletrônico, controlado por computador;
- O seu próprio lazer pessoal está cada vez mais dependente do computador, seja o doméstico (que envolve vídeo-jogos, jogos por computador, e bate-papos à distância), seja o externo, fora de casa (que hoje está se concentrando nos grandes centros de lazer e parques temáticos que não existiram sem o computador).
Você pode completar a lista.
O importante é notar que provavelmente seria mais fácil e simples fazer uma lista dos aspectos de nossa vida que não envolvem contato (direto ou indireto) com o computador. Não seria exagero dizer que, se, hoje, computadores deixassem de existir ou parassem de funcionar, nosso mundo e nossa sociedade entrariam em colapso, tantas são as áreas e atividades que dependem deles. Este texto, por exemplo, como quase todos os textos, hoje em dia, não foi redigido com uma máquina de escrever e sim com um computador, valendo-se de referências, fontes, e sistemas de informação disponíveis na Internet mas fisicamente armazenados em dezenas de locais diferentes, espalhados ao redor do mundo.
Na realidade, parece que o mundo da ficção científica saiu do futuro, onde sempre confortavelmente existiu, para invadir o nosso presente.
Hoje em dia até a arte está em grande parte computadorizada. A abertura da maioria dos grandes programas de televisão, os próprios programas, até os comerciais, tornaram-se cenários eletrônicos onde artistas, muitos deles desconhecidos, exibem uma arte sofisticada desenvolvida com o auxílio do computador. Alguns computadores já reconhecem comandos audíveis e são capazes de reconhecer a voz do dono. Sintetizadores de voz permitem que os computadores falem e ajudem até os mudos a se expressar de forma audível. Satélites tiram fotografias a milhões de quilômetros de distância e as transmitem na forma de impulsos elétricos, que, decodificados por computadores, transformam-se em imagens maravilhosas. Equipamentos colocados em satélites tiram, da mesma forma, fotografias que nos permitem elaborar mapas cada vez mais precisos e prever com razoável exatidão as condições meteorológicas. Pequenos transmissores de sinais instalados em veículos que rodam nas estradas comunicam constantemente sua posição a conjuntos de satélites que circulam ao redor do globo, permitindo que computadores localizem imediatamente os veículos. Minúsculos sistemas eletrônicos controlam os batimentos cardíacos de milhares de pacientes e monitoram o funcionamento de seus órgãos vitais. Sofisticados equipamentos médicos computadorizados fazem uma “varredura” (“scan”) do interior das pessoas, possibilitando que várias doenças, que doutra forma passariam despercebidas, possam ser diagnosticadas. O diagnóstico médico e o monitoramento de pacientes já podem ser feitos à distância. Arquitetos e projetistas usam os recursos gráficos dos computadores para projetar prédios, peças, equipamentos e aparelhos. Nas indústrias, o processo de automação vai sendo implantado, desde o setor produtivo até os setores administrativos, e, em menor grau, nos setores gerenciais e até mesmo executivos. Os estoques e a operação de supermercados, farmácias, e outros negócios estão sendo controlados “ao vivo” (em tempo real) por computadores, em alguns casos pelos próprios fornecedores. Num supermercado é possível, com um apertar de botões, descobrir que produtos, ou que marcas, não estão vendendo bem e colocá-los em ofertas especiais ou locais privilegiados. O governo não subsistiria um dia sem seus computadores. A polícia e a investigação criminal também dependem maciçamente dos computadores. A justiça e os cartórios estão se informatizando. Os semáforos das grandes cidades são controlados por computadores e se ajustam conforme o fluxo do trânsito.
Onde vamos parar? A resposta mais realista é que não vamos parar.
Diante desse quadro, porém, muitas pessoas ficam temerosas de que estejamos entrando, realmente, numa sociedade do tipo previsto no livro 1984, de George Orwell [2].
Em nível individual, muitos se sentem intimidados por computadores. Sentem receio de que sua privacidade venha a ser invadida por eles, de que informações importantes sobre suas vidas estejam sendo armazenadas, sem seu conhecimento e sua autorização, em algum computador do governo (ou de grandes empresas ou instituições não governamentais e sem fins lucrativos), e possam, em algum momento, vir a ser utilizadas contra eles próprios.
Em nível social, teme-se que a automação de processos industriais, comerciais, e administrativos possa vir a eliminar empregos, aumentando, ainda mais, os problemas sociais hoje existentes. [3]
É da natureza humana ter preocupações como essas, e algumas delas são plenamente justificadas, como, por exemplo, as relativas à invasão da privacidade e ao temor de que informações importantes passam vir a ser utilizadas para finalidades que não aquelas para as quais foram fornecidas. O problema do aumento de desemprego estrutural (e não apenas conjuntural) também é real e deve ser encarado com seriedade e bom senso. [4]
Mas, apesar dessas preocupações e desses perigos, todos sabemos que os ponteiros do relógio não vão voltar para trás: a sociedade em que vivemos não vai mais se “desinformatizar” — e isso por uma série de razões, nenhuma das quais talvez essencial em si mesma, mas que, em seu conjunto, se tornam significativas. Mencionemos, brevemente, algumas delas, porque apontam para o lado positivo da maciça introdução de computadores em nossas vidas.
Em primeiro lugar, os computadores fornecem serviços rápidos — e já nos acostumamos a serviços rápidos. Você já imaginou ter que esperar dias para saber quantos os ganhadores na Sena ou na Loto? Para saber as notas de sua filha no vestibular? Ou receber seu cheque no final do mês? Ou fazer reservas para sua viagem? Ou ter que esperar minutos ou até horas para saber seu saldo no banco, ou para conseguir uma ligação interurbana? Já nos acostumamos à rapidez que a utilização do computador nos propicia — dificilmente vamos querer voltar aos velhos tempos.
Em segundo lugar, apesar das inúmeras histórias de erros de computador, computadores são extremamente confiáveis. A maior parte dos chamados erros de computador não passa de meros erros humanos, provocados por programadores, operadores ou usuários que fizeram o que não deveriam ter feito ou não fizeram o que deveriam ter feito. Isso não quer dizer que não haja falhas de equipamento ou de software, mas essas são muito raras perto dos erros humanos. Por causa disso, dificilmente se voltarão os ponteiros do relógio para trás, para que voltemos a fazer manualmente as coisas que hoje são feitas pelo computador. Na verdade, é difícil até imaginar como algumas das coisas que o computador faz hoje possam ser feitas de outra forma!
Em terceiro lugar, computadores e robôs podem executar uma série de tarefas perigosas ou maçantes, que seres humanos não gostam de executar ou até mesmo não podem executar, liberando, assim, seres humanos para tarefas menos perigosas e mais criativas. É verdade que, no processo, há que se lidar com a questão do desemprego, do reaproveitamento e treinamento dos trabalhadores cujas tarefas perigosas e rotineiras vierem a ser assumidas por computadores e robôs. Esse é um problema que terá que ser enfrentado, mas que dificilmente fará com que se decida voltar atrás, até porque a indústria de computadores e equipamentos relacionados também cria uma série de empregos que, fôssemos nós voltar atrás, deixariam de existir, tornando o problema do desemprego, quem sabe, ainda mais sério.
Em quarto lugar, com o desenvolvimento do conhecimento científico e tecnológico, especialmente na área da informática e das telecomunicações, estamos sendo confrontados com um dilúvio de informações. O computador certamente tem contribuído para esse dilúvio — mas será também ele que nos ajudará a lidar com essas informações, arquivando-as, classificando-as, analisando-as, e colocando-as à disposição de quem delas precisa. Sem o auxílio do computador, essas seriam tarefas virtualmente impossíveis hoje em dia.
É quase certo, portanto, que o processo de informatização da sociedade é irreversível e que a cada dia aumentarão as áreas em que o computador estará sendo empregado, bem como as formas de sua utilização. Na verdade, não há quase nenhuma área que possa ser considerada inteiramente imune ao computador. Como já se apontou, em nossas casas já há vários computadores, “assumidos” ou disfarçados (como é o caso do televisor, do vídeo-cassete, do toca-discos a laser, do forno a microondas, do vídeo-jogo, ou até mesmo do terminal telefônico).
Mas paralelamente a essa introdução maciça do computador nas várias áreas da economia e da sociedade, está ocorrendo um outro desenvolvimento, tão ou mais significativo do que esse. Esse desenvolvimento tem que ver não só com a quantidade das áreas informatizadas, mas com a qualidade do acesso à informação. Nos últimos vinte anos, com o surgimento dos computadores pessoais e, mais recentemente, com a interpenetração cada vez maior da informática e das telecomunicações, a natureza do acesso à informação tem se alterado de forma drástica, revolucionária mesmo. Essa alteração não é meramente quantitativa — não é apenas o caso de que mais e mais pessoas têm, hoje, acesso à informação, embora este seja o caso. A alteração é também qualitativa: a pessoa que hoje está tendo acesso à informação, através da informática, é a pessoa leiga, a pessoa não treinada na área — o acesso à informação está atravessando um processo de abertura, está sendo, de certa forma, democratizado. A tecnologia tem permitido a “desmediação” do acesso à informação. O acesso à informação está deixando de ser monopólio dos poderosos ou de uns poucos iniciados, que se trancavam em salas com ar refrigerado e se escondiam por detrás de jargão especializado, freqüentemente inacessível, para se tornar um patrimônio da pessoa não especializada na área. O computador pessoal conectado a redes de escopo mundial está possibilitando isso, e este fato representa um passo gigantesco na direção da informatização da sociedade. Isso porque, à medida que mais e mais pessoas leigas, não especializadas em informática, se envolvem com computadores, estes vão se desmitificando, deixando de ser misteriosos e ininteligíveis, e passando a ser vistos como acessórios pessoais cada vez mais importantes, até se tornarem imprescindíveis.
Os escritórios executivos e CPDs — Centros de Processamento de Dados — deixaram de ser, dentro da empresa, os únicos detentores de informações. Estas, agora, já existem nos computadores pessoais existentes nas escrivaninhas das pessoas, em todos os departamentos e setores, e esses computadores estão cada vez mais interligados, uns com os outros e com computadores externos.
Um dos grandes temas de discussão hoje são as chamadas Super-Vias de Informação, ou Info-Vias. Décadas atrás o grande feito de um político-administrador era construir estradas, interligando-as umas as outras. Hoje isso está sendo substituído pela criação de super-redes de computadores, que interligam milhões de computadores, através das quais a informação trafega. Essas super-redes, por sua vez, estão sendo interligadas umas com as outras, criando a Internet, que vai tornando possível que qualquer computador do mundo possa, em princípio, estabelecer conexão com qualquer outro.
E estamos apenas no começo. A indústria eletrônica digital, que é o fundamento da indústria de computadores, está ainda em sua infância quando comparada à indústria mais convencional e tradicional. Os que têm hoje (1998) mais de 55 anos nasceram numa época em que não existiam computadores. Esses desenvolvimentos são, portanto, muito recentes. É por isso que se fala, hoje em dia, em uma nova revolução industrial. Ou, então, se o termo “industrial” é reservado para a indústria tradicional, afirma-se que estamos vivendo, hoje, em grande parte, numa sociedade pós-industrial, em que a matéria prima mais utilizada é a informação e o equipamento indispensável é o computador — que nos ajuda a processar toda essa informação. A sociedade pós-industrial em que estamos vivendo é a sociedade da informação — a sociedade informatizada. E o computador, que antes apenas processava informação, agora se torna também um transportador de informações e um meio de comunicação — quiçá o meio de comunicação por excelência. O nível de globalização a que chegamos nas áreas da produção industrial e dos serviços não seria sequer imaginável alguns anos atrás. O mundo realmente se tornou uma aldeia, como previra Marshall McLuhan. Os livros que lemos, as músicas que ouvimos, os filmes que vemos são, em grande parte, transnacionais. Assistimos aqui no Brasil, ao vivo, a programas de televisão gerados na América do Norte, na Europa, na Ásia e, naturalmente, em outros países da América do Sul. Vemos, ao vivo, guerras que se desenrolam no Oriente Médio. Consumimos produtos manufaturados ou plantados nos mais diversos países. Da classe média para cima, quase todo mundo tem algum parente morando no exterior. Falamos com pessoas no hemisfério Norte, na Oceania, ou em vários países africanos, com a mesma facilidade com que conversamos com nossos vizinhos. O Milan, o Real Madrid e o Paris Saint-Germain têm torcedores aqui no Brasil, da mesma forma que os times brasileiros têm torcedores lá fora. A queda da bolsa na Tailândia afeta as bolsas no resto do mundo. Pela Internet podemos fazer cursos de Pós-Graduação no exterior, pesquisar as melhores bibliotecas do mundo, e comprar livros em livrarias virtuais (que estão tornando obsoleta essa excrescência que é o “dólar livro”).
É por tudo isso e muito mais, e, ainda, por algumas outras razões pessoais que só as próprias pessoas conhecem, que tantas pessoas estão fazendo cursos de informática ou participando de programas de treinamento em informática. A informática hoje afeta todas as profissões. Quem trabalha em um escritório não pode ignorar a questão. Quem exerce profissão no setor de artes ou projetos gráficos, sabe que o computador é ferramenta indispensável de trabalho. Quem é profissional liberal (advogado, médico, dentista, engenheiro, etc.), precisa estar interessado na questão. Quem é estudante, também, talvez com maior razão. Hoje, desde o escriturário até o artista plástico, desde a enfermeira até o romancista, desde o trabalhador na linha de montagem até o executivo de marketing e de vendas, todos estão tendo suas profissões redefinidas e, em alguns casos, revolucionadas, pela introdução do computador. Escritores, artistas, jornalistas, todos estão procurando se capacitar. Há debates, mesas redondas, painéis, sobre como a informática está afetando as profissões, tornando algumas obsoletas (como a de tipógrafo, por exemplo), redefinindo outras (como a de jornalista). Todos os setores profissionais se agitam. Dentro de pouco tempo, quem não dominar a informática será equivalente ao semi-analfabeto de hoje: terá que se contentar com uma profissão não qualificada.
2. A Educação, a Escola e o Professor
Mas e a educação, a escola e o professor? Por que nada disso parece afetá-los ou mesmo lhes dizer respeito?
Deixemos de lado, por um momento, a educação não-formal, e concentremos nossa atenção na escola e no seu principal agente, o professor. O que acontece com a escola, que faz com que, apesar de virtualmente todas as outras áreas de nossa sociedade estarem se transformando, em grande parte em função da introdução de tecnologia, especialmente de computadores, a escola continue a operar como se nada disso lhe fosse relevante, tornando-se uma ilha não-tecnológica num mar de tecnologia?
Se é função da educação preparar o indivíduo para uma vida plena (em que faça bom uso até de seu tempo livro, do qual terá cada vez mais), o cidadão para o exercício de seus direitos e deveres, e o profissional para o trabalho, se é inegável (como acabamos de ressaltar) que a sociedade em que o indivíduo vai viver, exercer a sua cidadania e trabalhar está permeada pela tecnologia, e se é fato que a escola é o principal agente da educação na sociedade, parece lógico esperar que a escola estivesse extremamente interessada e envolvida nesses desenvolvimentos, pois, doutra forma, correria o risco de rapidamente se tornar uma “fábrica de obsoletos” (que é o que o jornalista Gilberto Dimmenstein diz que ela já é [5]).
Por que a escola parece sempre tão disposta a resistir a mudanças?
Mesmo numa sociedade apenas “emergente” como a nossa, não ainda plenamente desenvolvida, a tecnologia entrou sem maiores resistências e sem grandes dificuldades em quase todas as áreas em que normalmente se divide a sociedade. Hoje temos produção industrial mediada pela tecnologia, comércio mediado (ou pelo menos sustentado) pela tecnologia, serviços bancários mediados pela tecnologia, atendimento médico mediado pela tecnologia, comunicação mediada pela mais alta tecnologia, e até entretenimento mediado pela tecnologia. No entanto, estamos ainda muito longe de uma educação mediada pela tecnologia — pelo menos no que diz respeito à educação formal ministrada pela escola.
O que causa perplexidade é que a educação, que deve, entre outras finalidades, preparar o indivíduo para viver uma vida pessoal rica, para atuar de forma responsável como cidadão, e para exercer uma profissão de forma competente e recompensadora, não pode, numa sociedade como a nossa, alcançar esses objetivos sem dominar a tecnologia.
Nossas casas possuem cada vez mais tecnologia, votamos com a ajuda da tecnologia, acedemos a informações através da tecnologia, participamos de debates através da tecnologia, nos comunicamos através da tecnologia, e trabalhamos (quase em qualquer área) com o indispensável apoio da tecnologia. Diante disso, não devia nossa educação formal, escolar, estar extremamente preocupada com a possibilidade de que também a educação pudesse, e, talvez, devesse ser mediada pela tecnologia? Mesmo deixando de lado nossas instituições financeiras, nossas indústrias, nossos escritórios, nossos centros comerciais, por que o cuidado com a saúde de nosso corpo é, hoje, tão dependente da tecnologia, e o cuidado com a saúde de nossa mente, de nossas emoções, de nossas relações pessoais, que deve ser objeto da educação, é tão pouco afetado por ela?
A resposta nada tem que ver com a natureza da educação — muito pelo contrário [6]. Teria algo que ver, então, com os profissionais da educação? Seriam os educadores mais resistentes a inovações (isto é, mais conservadores) do que, por exemplo, os médicos? Parece que sim — não no sentido político (onde geralmente os educadores se pretendem avançados e progressistas), mas, sim, no sentido de tentar conservar a sua prática tão inalterada quanto possível, procurando argumentos de todos os tipos (inclusive racionalizações) para justificar o seu conservadorismo.
Se não são os educadores, o que explica o atraso da educação escolar no que diz respeito ao uso da tecnologia — em especial quando a tecnologia hoje é tão relevante e útil para o aprendizado, e, assim, para a educação? Note-se, ao mesmo tempo, que, fora da escola, a educação (que chamamos de não formal) não parece tão presa a objetivos, métodos e técnicas tradicionais. Ali o uso da tecnologia parece acompanhar mais de perto o que acontece no restante da sociedade.
As tecnologias de informática têm sido chamadas de extensões de nossa mente — diferentemente das outras tecnologias, que ampliam nossa capacidade sensorial, motora, ou muscular [7]. Nossa era tem sido chamada, como vimos, de “era da informação” e de “era do conhecimento”, porque a tecnologia que a caracteriza é extremamente relevante para o acesso à informação e a construção do conhecimento. A informação e o conhecimento estão rapidamente se tornando o principal meio de produção, através do qual nossa sociedade encontrou uma nova forma de gerar riquezas. E as tecnologias da informática estão intrinsecamente ligadas a esses desenvolvimentos.
É por isso tudo que causa perplexidade ver a educação (formal, escolar) ainda tentando dar, hoje, passos inseguros nessa área (passos esses que começou a ensaiar há mais de 15 anos no Brasil), enquanto as outras áreas da sociedade, mesmo aqui no Brasil, já alcançaram maioridade e têm desempenho que se equipara ao dos países mais desenvolvidos.
3. A Questão da Tecnologia
Antes, porém, de ir adiante em nossa discussão, precisamos tornar mais preciso o nosso conceito de tecnologia, pois, caso contrário, poder-se-ia ter a impressão de que a tecnologia é um fenômeno recente e que as tecnologias da informática (ou as tecnologias digitais) são as únicas tecnologias dignas do nome. Veremos que o conceito de tecnologia é bem mais amplo e que, toda vez que uma nova tecnologia aparece, ela geralmente acaba produzindo não só transformações técnicas, mas, também, importantes mudanças sociais.
A. O “Artefato” e a Técnica
Hoje em dia é comum distinguir entre “alta” e “baixa” tecnologia e falar em tecnologia “de ponta”. Os desenvolvimentos mais fascinantes, sem dúvida, estão hoje na área da chamada alta tecnologia ou tecnologia de ponta, principalmente nas áreas que envolvem eletrônica digital (em especial a informática) e bioengenharia.
Este fato, entretanto, não deve fazer com que nos esqueçamos de que, em um sentido básico e fundamental, tecnologia é todo artefato ou técnica que o homem inventa para estender e aumentar seus poderes, facilitar seu trabalho ou sua vida, ou simplesmente lhe trazer maior satisfação e prazer.
Assim, a alavanca, o machado, a roda, o arado, o anzol, o motor a vapor, a eletricidade, a carroça, a bicicleta, o trem, o automóvel, o avião, o telégrafo, o telefone, o rádio, a televisão, tudo isso certamente é tecnologia. Mas também são tecnologia a fala, a escrita, a impressão, os ornados vitrais das catedrais medievais, os instrumentos musicais, os sistemas de notação musical, e tantas outras coisas que o homem inventou para lhe trazer satisfação e prazer.
Aqui nos interessam especialmente as tecnologias de comunicação, que são, em aspectos importantes, tecnologias relacionadas não com os poderes físicos do ser humano, mas com seus poderes mentais e, conseqüentemente, com a sua educação.
“A comunicação humana, ao longo do tempo, passou por quatro revoluções distintas: a palavra falada; a palavra escrita; a palavra impressa; e, finalmente, a quarta revolução, potencialmente mais profunda e ainda em curso, que se iniciou com o rápido desenvolvimento das telecomunicações”. [8]
Assim, discutiremos, nas seções que seguem, a linguagem falada, a linguagem escrita, a impressão e, como exemplo das novas tendências, as tecnologias do som e da imagem — que, embora tenham antecedentes bastante antigos, desembocam hoje na multimídia.
B. A Fala como Tecnologia
Antes de desenvolver a fala (linguagem falada), o ser humano era virtualmente indistinguível dos animais. Como estes, comunicava-se por gestos e grunhidos. Tem se comentado muito, hoje em dia, o fato de que alguns primatas são capazes de relacionar um som (como uma palavra) com um determinado objeto ou uma determinada ação. O estabelecimento dessa correlação entre um som e um objeto ou uma ação é o aspecto mais simples e elementar do aprendizado da fala. Ele envolve nada mais do que a capacidade de rotular as coisas, dando como que nomes próprios a objetos e ações.
O aprendizado real da linguagem, entretanto, envolve a capacidade de fazer abstrações, criar conceitos, e usar termos gerais para designar esses conceitos.
Há três principais tipos de conceitos.
O primeiro tipo de conceito é aquele que é obtido mediante a abstração (remoção) de características concretas e acidentais de entidades perceptíveis de modo a deixar apenas as características essenciais que vários objetos físicos compartilham e que servem de base para que apliquemos a eles, e apenas a eles, um determinado termo geral (nome comum, não próprio). Assim, depois de observar um número razoável de mesas elaboramos o conceito de mesa (e damos a ele o nome “mesa”, se nossa língua for o Português). Esse conceito não descreve nenhuma mesa concreta (particular), mas, sim, apenas as características gerais que todas as mesas compartilham e que podem ser chamadas, portanto, de as características essenciais de uma mesa. O termo “mesa” é um termo geral, comum, não é um nome próprio, e se aplica, portanto, a qualquer objeto que tenha as características essenciais de uma mesa. Os conceitos desse primeiro tipo podem ser chamados de conceitos empíricos (porque designam entidades perceptíveis, a que se pode claramente apontar, de forma ostensiva) e representam o primeiro nível ou a primeira ordem de conceitos.
O segundo tipo de conceito é obtido quando refletimos, não diretamente sobre as características essenciais de objetos físicos, mas, sim, sobre conceitos de primeiro nível, como o que acabamos de identificar, e construímos, a partir deles, conceitos cujos ingredientes básicos são outros conceitos — abstrações de abstrações. Esses são conceitos de segundo nível, porque pressupõem os conceitos de primeiro nível e não existiriam sem eles.
Há basicamente duas formas de gerar conceitos desse tipo:
- a) criando, a partir dos conceitos de primeiro nível, conceitos mais genéricos, que, por serem mais genéricos, abrangem mais entidades e, portanto, integram vários outros conceitos;
- b) criando, ainda a partir dos conceitos de primeiro nível, conceitos mais específicos, que, por serem mais específicos, abrangem menos entidades e, portanto, diferenciam outros conceitos.
O conceito de móvel é um conceito mais abrangente do que o conceito de mesa, porque abrange o conceito de mesa e vários outros conceitos (de cadeira, de cama, de guarda-roupa, etc.). Na verdade, o conceito de móvel representa o gênero do qual o conceito de mesa representa a espécie. Não há nenhum objeto físico que possa ser classificado como móvel que não seja, ao mesmo tempo, classificável debaixo de um conceito de nível lógico inferior, como uma mesa, uma cadeira, uma cama, um guarda-roupa, etc. Na psicogênese dos conceitos, o de móvel muito provavelmente é derivado do de mesa, cadeira, etc., por generalização.
O conceito de mesa de café, porém, é um conceito mais específico (e, portanto, menos abrangente) do que o conceito de mesa, porque se refere a uma categoria específica — uma espécie — de mesa (que, em relação a mesa de café, passa a ser o gênero). É importante notar que, neste caso, o conceito base, que poderíamos chamar de “âncora”, é o conceito de mesa, não o de mesa de café. Na psicogênese dos conceitos, o de mesa de café certamente é derivado do de mesa, por especificação.
O terceiro tipo de conceito abrange os conceitos abstratos, que não se referem a objetos empíricos, perceptíveis, mas, sim, a qualidades intangíveis como verdade, bondade, beleza, etc. Para chegar a esses conceitos o homem precisa exercer os seus poderes de abstração num nível ainda mais elevado. Era com esses conceitos que Sócrates gostava de trabalhar.
Nenhum animal, a não ser o homem, é capaz de construir conceitos. A fala não passaria de um sem número de grunhidos e, na melhor das hipóteses, nomes próprios se não fosse essa capacidade lógica que tem o ser humano de criar conceitos e de usar nomes gerais (comuns) para se referir a eles.
Podemos imaginar, portanto, o grande salto que representa, na escala evolutiva, o aparecimento da fala. Sem a linguagem (que apareceu primeiro como fala), não haveria educação (como a entendemos hoje). Historicamente, a fala representa a primeira tecnologia que tornou possível a educação. (Pressupõe-se aqui que apenas o ser humano realmente educa — o que aquilo que uma gorila, ou um casal de gorilas, faz com seus pequenos não seria, neste caso, educação).
No estágio da tradição exclusivamente oral, a educação é algo forçosamente pessoal e “presencial” (termo muito usado hoje para realçar o contraste com “educação à distância”). Para que ela aconteça duas pessoas têm que estar próximas uma da outra, no espaço e no tempo, e criar, uma com a outra, uma relação eminentemente pessoal. Esse modelo tem se perpetuado, mesmo depois da introdução na educação de tecnologias, como o livro impresso, que tornaram possível uma educação não presencial e assíncrona (isto é, que não envolve contigüidade espaço-temporal).
C. A Escrita como Tecnologia
O passo tecnológico mais significativo dado a seguir, nessa área que nos interessa, foi o da invenção da escrita, muitos milênios depois da invenção da fala. A escrita é uma tecnologia que nos permite, num primeiro momento, registrar a fala, para que outros possam receber as palavras que a distância e/ou o tempo os impede de escutar. Hoje em dia há tecnologias que gravam a fala em si, ou que a levam a locais remotos, mas antes da invenção de fonógrafos, telefones e de outros meios de telecomunicação sonoros, tínhamos que depender da escrita para levar a fala codificada a locais remotos. Com a escrita temos comunicação lingüistica remota, comunicação lingüistica à distância [9].
A escrita foi, portanto, a primeira tecnologia que permitiu que a fala fosse congelada, perpetuada, e transmitida à distância. Com a escrita, deixou de ser necessário capturar a fala de alguém naquele instante passageiro e volátil antes que ela se dissipasse no espaço. A escrita tornou possível o registro da fala e a transmissão da fala para localidades distantes no espaço e remotas no tempo.
Na realidade, com o passar do tempo, a escrita acabou por criar um novo estilo de comunicação: a linguagem tipicamente escrita, que não é a mera transcrição da fala. Além disso, a escrita também criou um novo estilo de fala. O teatro, por exemplo, é a fala decodificada da escrita [10]. Alguém escreve a peça, ou o roteiro, e outros a representam, falando. Literalmente, não havia teatro antes da escrita — só improvisação. No teatro, portanto, a comunicação se dá em dois tempos: da fala imaginada pelo autor da peça para o texto escrito, e do texto escrito para a fala interpretada do ator. (Pressupõe-se, aqui, que ler uma peça não é equivalente a assistir a ela representada no teatro).
Muitos expressaram receio, quando a escrita se disseminou, de que ela fosse subverter a memória e, conseqüentemente a educação, até então calcada na memória, e de que ela fosse uma forma de comunicação essencialmente inferior à fala.
Sócrates, pelo que consta, nunca escreveu nada. A julgar pelos relatos que dele e de suas idéias nos deixa Platão, isso não se deu por acaso: Sócrates tinha preconceitos contra a escrita. Pelo menos é isto que fica claro no famoso diálogo Fedro.
No capítulo XXV de Fedro, Sócrates conta a seguinte história, que ele chama de mito, acerca da invenção da escrita, que ele atribui ao deus egípcio Teuto (a quem os Gregos chamavam de Hermes). Teuto, orgulhoso de sua principal invenção (ele também teria sido o inventor do número e do cálculo, da geometria e da astronomia), veio mostrá-la ao rei Tamos, que lhe perguntou qual a utilidade da invenção. Eis o que disse Teuto: “Aqui, ó rei, está um conhecimento que melhorará a memória do povo egípcio e o fará mais sábio. Minha invenção é uma receita para a memória e um caminho para a sabedoria”. A isso o rei ceticamente respondeu:
“Ó habilidoso Teuto, a um é dado criar artefatos, a outro julgar em que medida males e benefícios advêm deles para aqueles que os empregam. E assim acontece contigo: em virtude de teu apreço pela escrita, que é tua filha, não vês o seu verdadeiro efeito, que é o oposto daquele que dizes. Se os homens aprenderem a escrita, ela gerará o esquecimento em suas almas, pois eles deixarão de exercitar suas memórias, ficando na dependência do que está escrito. Assim, eles se lembrarão das coisas não por esforço próprio, vindo de dentro de si próprios, mas, sim, em função de apoios externos. O que você inventou não é uma receita para a memória, mas apenas um lembrete. Não é o verdadeiro caminho para a sabedoria que você oferece aos seus discípulos, mas apenas um simulacro, pois dizendo-lhes muitas coisas, sem ensiná-los, você fará com que pareçam saber muito, quando, em sua maior parte, nada sabem. E eles serão um fardo para seus companheiros, pois estarão cheios, não de sabedoria, mas da pretensão da sabedoria.” [11]
A seguir Sócrates comenta:
“Você sabe, Fedro, esta é a coisa estranha sobre a escrita, que ela se parece com a pintura. Os produtos do pintor ficam diante de nós como se estivessem vivos, mas se você os questiona, eles mantêm um silêncio majestático. O mesmo acontece com as palavras escritas: elas parecem falar com você como se fossem inteligentes, mas se você, desejando ser instruído, lhes pergunta alguma coisa sobre o que dizem, elas continuam a lhe dizer a mesma coisa, para sempre. Uma vez escrita, uma composição, seja lá qual for, se espalha por todo lugar, caindo nas mãos não só dos que a entendem, mas também daqueles que não deveriam lê-la. A composição escrita não sabe diferenciar entre as pessoas certas e as pessoas erradas. E quando alguém a trata mal, ou dela abusa injustamente, ela precisa sempre recorrer ao seu pai, pedindo-lhe que venha em sua ajuda, posto que é incapaz de defender-se por si própria” [12].
Walter Ong, em seu fascinante livro Oralidade e Cultura Escrita, comenta esse trecho, relacionando-o com questões atuais, de uma maneira que é bastante pertinente ao nosso propósito original, ao citá-lo:
“A maioria das pessoas fica surpresa, e muitas ficam angustiadas, ao saber que, fundamentalmente, as mesmas objeções feitas em geral aos computadores hoje foram feitas por Platão no Fedro (274-277) e na Sétima Carta em relação à escrita. A escrita, diz Platão através de Sócrates, no Fedro, é inumana, pois pretende estabelecer fora da mente o que na realidade só pode estar na mente. É uma coisa, um produto manufaturado. O mesmo, é claro, é dito dos computadores. Em segundo lugar, objeta o Sócrates de Platão, a escrita destrói a memória. Aqueles que usam a escrita se tornarão desmemoriados e se apoiarão apenas em um recurso externo para aquilo de que carecem internamente. A escrita enfraquece a mente. Atualmente, os pais, assim como outras pessoas, temem que [os computadores e] as calculadoras de bolso forneçam um recurso externo para o que deveria ser o recurso interno de tabuadas memorizadas. [Os computadores e] [a]s calculadoras enfraquecem a mente, aliviam-na do trabalho que a mantém forte. Em terceiro lugar, um texto escrito é basicamente inerte. Se pedirmos a um indivíduo para explicar esta ou aquela afirmação, podemos obter uma explicação; se o fizermos a um texto, não obteremos nada, exceto as mesmas, muitas vezes tolas, palavras às quais fizemos a pergunta inicialmente. Na crítica moderna ao computador, faz-se a mesma objeção: ‘Lixo entra, lixo sai’. Em quarto lugar, em compasso com a mentalidade agonística das culturas orais, o Sócrates de Platão também acusa a palavra escrita de não poder se defender como a palavra natural falada [*]: o discurso e o pensamento reais sempre existem fundamentalmente em um contexto de toma-lá-dá-cá [“give-and-take”] entre indivíduos reais. Fora dele, a escrita é passiva, fora de contexto, em um mundo irreal, artificial. Como os computadores.” [13]
É curioso que Platão (embora não Sócrates) tenha se valido da escrita para perpetuar esses diálogos socráticos. Provavelmente ele discordasse de seu mestre neste aspecto. Caso contrário, dificilmente teríamos os diálogos socráticos registrados [14].
Vale a pena registrar, no contexto, as considerações de Walter Ong sobre a escrita:
“Platão [Sócrates] estava pensando na escrita como uma tecnologia externa, hostil, como muitas pessoas atualmente fazem em relação ao computador. Em virtude de termos hoje interiorizado a escrita, absorvendo-a tão completamente em nós mesmos, de uma forma que a era de Platão ainda não fizera (Havelock 1963), julgamos difícil considerá-la uma tecnologia, tal como aceitamos fazer com o computador. No entanto, a escrita (e especialmente a alfabética) é uma tecnologia, exige o uso de ferramentas e outros equipamentos: estiletes, pincéis ou canetas, superfícies cuidadosamente preparadas, peles de animais, tiras de madeira, assim como tintas, e muito mais. . . . A escrita é, de certo modo, a mais drástica das três tecnologias [escrita, impressão, computadores]. Ela iniciou o que a impressão e os computadores apenas continuam, a redução do som dinâmico a um espaço mudo, o afastamento da palavra em relação ao presente vivo, único lugar em que as palavras faladas podem existir. . . . O processo de registrar a linguagem falada é governado por regras conscientemente planejadas e inter-relacionadas: por exemplo, um certo pictograma significará uma certa palavra específica, ou ‘a’ representará um certo fonema, ‘b’ um outro, e assim por diante. . . . Dizer que a escrita é artificial não é condená-la, mas elogiá-la. Como outras criações artificiais e, na verdade, mais do que qualquer outra, ela é inestimável e de fato fundamental para a realização de potenciais humanos mais elevados, interiores. As tecnologias não constituem meros auxílios exteriores, mas, sim, transformações interiores da consciência, e mais ainda quando afetas à palavra. Tais transformações podem ser enaltecedoras. A escrita aumenta a consciência. A alienação de um meio natural pode ser boa para nós e, na verdade, é em muitos aspectos fundamental para a vida humana plena. Para viver e compreender plenamente, necessitamos não apenas da proximidade, mas também da distância. Essa escrita alimenta a consciência como nenhuma outra ferramenta. As tecnologias são artificiais, mas — novamente um paradoxo — a artificialidade é natural aos seres humanos. A tecnologia, adequadamente interiorizada, não rebaixa a vida humana, pelo contrário, acentua-a.” [15]
É interessante também notar, neste contexto, que o que Sócrates considera uma desvantagem da escrita — o fato de que ela não responde às nossas perguntas — Mortimer J. Adler e Charles van Doren consideram uma vantagem: as perguntas que nós fazemos ao texto escrito, somos nós mesmos que temos que tentar responder — e isso é bom, porque nos desafia, porque nos torna ativos na leitura. Eis o que dizem, em seu livro How to Read a Book:
“Ouvir uma série de preleções é, por exemplo, em muitos aspectos, como ler um livro, e ouvir um poema é como lê-lo. Muitas das regras formuladas neste livro [dedicado a como ler um livro] se aplicam à experiência de ouvir. Entretanto, há boa razão para se colocar mais ênfase na atividade da leitura e colocar menos ênfase na atividade da audição. A razão é que audição é aprendizado por [“from”] um ensinante presente enquanto leitura é aprendizado por [“from”] um ensinante ausente. Se você faz uma pergunta a um ensinante presente, ele provavelmente vai respondê-la. Se você fica perplexo por algo que ele diz, você pode se poupar o trabalho de refletir perguntando a ele o que ele quis dizer. Se, contudo, você formula uma pergunta a um livro, é você mesmo que vai ter que respondê-la! Neste aspecto, o livro é mais como a natureza ou o mundo. Quando você o questiona, ele só responde se você se dá ao trabalho de pensar e analisar”. [16]
É verdade, porém, que Adler e van Doren já estão falando de livros impressos, mas o que dizem se aplica também a livros manuscritos. Mas, com isso, chegamos à seção seguinte.
D. A Impressão como Tecnologia
A impressão representa o estágio seguinte no processo de desenvolvimento das tecnologias de comunicação. A escrita, antes da impressão, tinha alcance limitado, porque era feita a mão. Copiar um livro a mão, por exemplo, era algo que levava tempo e ficava caro. Por isso, antes do surgimento da impressão, havia poucos livros, e o número de pessoas alfabetizadas era pequeno. Apenas aprendiam a ler e a escrever, e, portanto, recebiam educação num sentido parecido com o atual, os intelectuais, isto é, as pessoas que estavam incumbidas da preservação da cultura — geralmente monges e clérigos. Num contexto assim é de imaginar que a educação não florescesse como fenômeno de massa. Nem mesmo os reis, os príncipes e os nobres — isto é, as pessoas que ocupavam os escalões mais altos da sociedade — eram alfabetizados: não havia porque devessem saber ler e escrever, pois não havia o que ler. Escrever era uma arte manual cujos produtos eram poucos e pouco disseminados [17].
Quando Gutenberg inventou a impressão de tipo móvel, em 1450, tudo começou a mudar.
As mesmas críticas que foram feitas à escrita foram feitas à impressão, e com muito mais razão, como bem ressalta Walter Ong:
“A fortiori, a impressão está sujeita a essas mesmas acusações [que foram feitas à escrita]. Aqueles que se perturbam com as apreensões de Platão quanto à escrita se sentirão ainda mais inquietos ao descobrir que a impressão criou receios semelhantes quando foi introduzida pela primeira vez. Hieronimo Squarciafico, que na verdade promoveu a impressão dos clássicos latinos, também argumentou em 1477 que a ‘abundância de livros torna os homens menos atentos’ (citado em Lowry 1979, pp. 29-31): ela destrói a memória e enfraquece a mente ao aliviá-la do trabalho árduo (novamente a queixa contra o computador de bolso), rebaixando o sábio em favor do compêndio de bolso. Obviamente, outros viram a impressão como um nivelador bem-vindo: todos se tornam sábios (Lowry 1979, pp. 31-32)” [18].
No entanto, no caso da impressão os efeitos sobre a educação foram ainda mais amplos e mais profundos. Numa cultura oral, ou mesmo em uma cultura letrada, mas em que livros são escassos, como era o caso da cultura posterior à invenção da escrita mas anterior à da impressão, quem quisesse aprender alguma coisa tinha que se deslocar até a presença de uma pessoa que conhecesse bem esse conteúdo e estivesse disposta a ensiná-lo. Por isso estudiosos eram itinerantes na Idade Média: tinham que ficar se locomovendo atrás dos mestres que lhes interessavam, aos pés dos quais se sentavam para absorver suas palavras e retê-las na memória! O livro impresso, que rapidamente se popularizou, era uma excelente memória auxiliar que tornava desnecessário reter na memória tudo que era necessário saber. Assim, o livro impresso começou a disseminar a prática de dar ao aprendizado o ritmo do aprendente, não do ensinante. Com o livro impresso também tornou-se fácil e comum aprender com alguém que está distante no espaço — ou no tempo! Assim, a impressão, e o seu produto, o livro impresso, tornaram possível, pela primeira vez, a prática generalizada do ensino à distância. Com o livro facilmente disponível e relativamente barato, estimulou-se e muito o auto-aprendizado sistemático (com o auxílio do livro).
Assim, o livro impresso, além de compartilhar com a escrita a acusação de que contribuía para o enfraquecimento da memória, pode ter sido objeto de críticas no sentido de que acentuava a remoção, da educação, daquele caráter de relacionamento pessoal entre mestre e discípulo, que, numa tradição oral, lhe era indispensável e, numa tradição letrada, mas anterior à impressão, se considerava ainda essencial para ela.
O livro, pode-se confiantemente dizer, foi o primeiro produto cultural de consumo de massa. Se a fala foi a tecnologia que tornou possível a educação, o livro impresso foi a tecnologia que lhe causou a primeira grande revolução [19].
Mas a impressão e o livro impresso revolucionaram mais do que a educação. Sem eles não teria havido a Reforma Protestante, não teria surgido a ciência moderna, não teriam se fortalecido as línguas vernáculas modernas, não teriam surgido as literaturas modernas, como as conhecemos, não teria acontecido o Século das Luzes, não teriam aparecido os estados nacionais modernos, e, assim, provavelmente não teríamos tido todos os desenvolvimentos desses decorrentes (como a Revolução Americana, a Revolução Francesa, etc.) [20].
E. A Tecnologia da Imagem
A pintura é uma forma de linguagem não verbal. Parece provável que as primeiras linguagens escritas tenham sido pictóricas, não alfabéticas. A pintura, diferentemente da linguagem alfabética, é uma forma analógica de representação da realidade. Como tal, a pintura, enquanto tecnologia, é extremamente antiga.
Depois da invenção e do uso disseminado da linguagem alfabética, a pintura continuou a ser usada como meio de comunicação, especialmente em benefício dos analfabetos. Nas catedrais medievais, as pinturas chegaram a uma forma extremamente sofisticada de arte e de meio de comunicação. Marshall McLuhan, num rasgo de exagero, chega a considerar os vitrais medievais os predecessores da televisão [21].
A grande inovação, na área de tecnologia da imagem, surgiu com a fotografia. Muitos acreditaram, quando surgiu a fotografia, que ela pudesse matar a pintura: por que iria alguém preferir uma representação imprecisa e inadequada da realidade, se poderia ter uma cópia perfeita (se bem que em duas dimensões)? Note-se que quem faz observação como essa pressupõe que a função da pintura é representar a realidade de forma tão fidedigna possível. Neste caso, a fotografia, representando a realidade de forma ainda mais fidedigna do que qualquer pintura, tornaria esta forma de arte obsoleta.
Depois da fotografia, vieram o cinema, a televisão e o vídeo: a imagem em movimento e (depois de uma breve fase de cinema mudo) acompanhado do som.
Da mesma forma que se acreditou que a fotografia pudesse matar a pintura, cogitou-se de que o cinema pudesse matar o teatro. Nada disso aconteceu. Especula-se, ainda, que a televisão vai matar o cinema. Aqui a questão ainda está aberta.
Na educação, a imagem tem uma função muito importante, se bem que, hoje, freqüentemente subutilizada na escola. É de crer que, no mundo antigo e medieval, em que a maioria da população era analfabeta, a imagem tivesse um papel educacional bem mais proeminente — semelhante ao que possui, hoje, na educação não-formal, que se realiza fora de contextos escolares. Mesmo depois da impressão, a imagem continuou a ter um papel bastante educacional importante na educação, se bem que o mais das vezes esse papel fosse supletivo ao da escrita. As já mencionadas catedrais também tinham um objetivo pedagógico, além do devocional.
Muitos analistas acham que, hoje, em função da influência generalizada da televisão, estamos retornando para uma cultura oro-imagênica e deixando para trás a cultura letrada que imperou durante tantos séculos, a partir da invenção da impressão. Por isso os jovens, hoje, preferem ver televisão a ler, ou preferem ver a versão filmada de um livro a ler o próprio livro. Como a televisão faz excelente uso, ao lado da imagem, da linguagem falada, pode argumentar-se que as novas gerações estão retroagindo para o nível da cultura oral: são extremamente hábeis e proficientes na comunicação oral, mas altamente deficientes na comunicação escrita (seja na leitura, seja na escrita, propriamente dita). A linguagem corporal das novas gerações também é, em geral, bastante eficiente, mesmo quando usada inconscientemente. Há muito material importante para estudo e pesquisa aí por parte dos educadores.
F. A Tecnologia do Som
Aqui se trata de fazer referência, ainda mais brevemente do que nos casos anteriores, à tecnologia do som — quer se dizer, de um lado à tecnologia da gravação, reprodução e transmissão do som; de outro lado à tecnologia da música e dos instrumentos musicais.
Se a escrita permitiu o registro e a perpetuação da fala, isto se deu transformando a fala em algo diferente, a saber, símbolos visuais. Aqui, porém, estamos destacando o registro da fala enquanto fala, não como algo diferente. (É verdade que sempre foi possível reconstituir a fala a partir da escrita, mas isso é outra coisa).
A tecnologia de gravação, reprodução e transmissão do som permite que o som seja transmitido à distância. Com isso foi possível o aparecimento do telégrafo, do telefone, e do rádio — tecnologias que, com exceção do telégrafo, são ainda extremamente importantes hoje, até mesmo na educação (principalmente não formal).
Na área de tecnologia do som merece destaque especial a música. Tanto quanto se sabe, o ser humano sempre cantou. Desde que aprendeu a falar, é de crer que tenha começado a colocar letras em suas melodias. Para os sons musicais, a notação musical desempenha o mesmo papel que, para a fala, desempenha a escrita.
A tecnologia do som envolve, ainda, por fim, um outro aspecto, o da criação de sons previamente inexistentes no mundo natural, como é o caso dos instrumentos musicais.
Combinados, os instrumentos musicais eventualmente tornaram possível a orquestra, que representa uma tecnologia bastante sofisticada, como bem ressalta Walter Ong:
“A orquestra moderna, por exemplo, é resultado de alta tecnologia. Um violino é um instrumento, isto é, uma ferramenta. Um órgão é uma máquina enorme, com recursos de força — bombas, foles, geradores elétricos — inteiramente exteriores a seu operador. A partitura de Beethoven para sua Quinta Sinfonia consiste em instruções muito precisas a técnicos altamente treinados, que especificam exatamente como usar as ferramentas. Legato: não tire seus dedos de uma tecla até que tenha tocado a seguinte. Staccato: toque a tecla e tire seu dedo imediatamente. E assim por diante. Os musicólogos sabem muito bem que é inútil fazer objeção a composições eletrônicas como The wild bull, de Morton Subotnik, sob a alegação de que os sons provêm de um dispositivo mecânico. De onde se julga virem os sons de um órgão? Ou os sons de um violino ou até mesmo de um apito? O fato é que, usando um dispositivo mecânico, um violinista ou um organista podem exprimir algo pungentemente humano que não pode ser expresso sem aquele dispositivo. Para conseguir tal expressão, obviamente, o violinista ou o organista precisam ter interiorizado a tecnologia, feito da ferramenta ou da máquina uma segunda natureza, uma parte psicológica de si mesmos. Isso exige anos de ‘prática’, de aprendizado de como obrigar a ferramenta a fazer o que ela pode fazer. Essa adaptação de uma ferramenta a si próprio, o aprendizado de uma habilidade tecnológica, dificilmente pode ser considerado algo desumanizante [*]. O uso de uma tecnologia pode enriquecer a psique humana, ampliar o espírito humano, intensificar sua vida interior. A escrita é uma tecnologia ainda mais profundamente interiorizada do que a execução de um instrumento musical. Mas, para compreender o que ela é — o que significa compreendê-la em relação a seu passado, à oralidade — o fato de que ela é uma tecnologia deve ser encarado com honestidade” [22].
G. A Tecnologia Digital e Multimídia
A tecnologia digital revolucionou as tecnologias da fala e do som, da escrita e da impressão, e da imagem. Com ela tornou-se possível transformar em números (dígitos, donde tecnologia digital) palavras faladas, palavras escritas e impressas, outros sons, gráficos, desenhos, imagens estáticas e em movimento. Tudo passou a ser número e passou a poder ser transmitido, na velocidade da luz, para qualquer canto do mundo. Com o computador, surgiu multimídia: um megameio de comunicação que incorpora, em um mesmo ambiente, todos os meios de comunicação anteriores.
Em seu sentido mais lato, o termo “multimídia” se refere à apresentação ou recuperação de informações que se faz, com o auxílio do computador, de maneira multissensorial, integrada, intuitiva e interativa.
Quando se afirma que, com multimídia, a apresentação ou recuperação da informação se faz de maneira multissensorial, quer-se dizer que mais de um sentido humano está envolvido no processo, fato que pode exigir a utilização de meios de comunicação que, até há pouco tempo, raramente eram empregados de maneira coordenada, a saber [23]:
- Som (voz humana, música, efeitos especiais)
- Fotografia (imagem estática)
- Vídeo (imagens em movimento)
- Gráficos
- Desenhos
- Animação (desenho animado)
- Textos (incluindo números, tabelas, etc.)
Quando se diz que a apresentação ou recuperação da informação se faz de maneira integrada, o que se quer dizer é que os meios de comunicação mencionados não são meramente justapostos, mas formam um todo orgânico sob a coordenação do computador.
Na verdade, a integração, hoje, é tal que, como se sabe, não é necessário que tenhamos, ao lado do computador, um aparelho de televisão ou um monitor de vídeo especial para vermos as imagens fotográficas e de vídeo: armazenadas em disco óptico a laser [24], elas são exibidas, em cores e em alta resolução, na tela do monitor do próprio computador. O áudio, por sua vez, também dispensa equipamento de amplificação mais sofisticado, podendo ser ouvido através do alto-falante do próprio computador ou de fone de ouvido conectado ao equipamento de leitura de disco óptico a laser, que passa a ser mais um periférico do computador [25].
Quando se diz que, com multimídia, a apresentação ou recuperação da informação se faz de maneira intuitiva, quer-se dizer pelo menos duas coisas:
- a) que a informação é apresentada ou recuperada na forma mais adequada ao seu conteúdo, usando-se, para isso, os meios de comunicação mais apropriados, nem mais, nem menos;
- b) que a forma de contato do usuário com o material a ser apresentado ou recuperado é tão natural quanto possível, de modo a garantir a facilidade do uso, a eficácia da apresentação ou recuperação da informação, a efetividade da sua compreensão e a eficiência de todo o processo. [26]
Quando se diz que a apresentação ou recuperação da informação em multimídia se faz de maneira interativa, quer-se dizer que multimídia não é apenas uma maneira de apresentar informações ao usuário, como se ele fosse seu mero recipiente, passivo: multimídia é uma forma de o usuário ativamente interagir com as informações: buscando-as, recuperando-as, interligando-as, construindo com elas novas informações e novos conhecimentos.
Falar em multimídia, é, portanto, equivalente a falar em multimídia interativa. Se usarmos o computador para criar uma fita de vídeo que incorpora sons, imagens de vídeo, animações, gráficos, textos, etc., mas que vai ser utilizada de maneira linear, não estaremos tendo multimídia, apesar de termos várias mídias envolvidas e de contarmos com a participação do computador. O potencial do computador estará sendo subutilizado nesse caso. Sua utilização mais nobre se encontra no fato de que permite que o usuário se transforme de simples observador passivo da apresentação da informação em participante ativo na sua busca e recuperação, de mero recebedor de sons, imagens e textos, em manipulador e processador de informações, que, entre outras coisas:
- decide a seqüência em que a informação vai ser apresentada ou recuperada e o seu próprio esquema de navegação pela informação;
- determina o ritmo e a velocidade da apresentação ou recuperação da informação;
- controla repetições, avanços, interrupções, sempre podendo retomar onde parou da vez anterior;
- estabelece associações e interligações entre informações diversas, mesmo que de natureza diferente (textos, imagens e sons, por exemplo), progredindo de um assunto ao outro, ou saltando de um meio ao outro, sem perder “o fio da meada”;
- introduz marcações e anotações nos textos e imagens, bem como comentários ao material lido, visto e ouvido, podendo também realizar cálculos com informações numéricas eventualmente inseridas nos textos;
- define os momentos em que, se desejar, pode avaliar seu conhecimento, determinando, assim, se já possui as informações de interesse.
É um conjunto de características como essas que normalmente identifica a interatividade de uma experiência. É desnecessário frisar que podemos ter multimídia com maior ou menor grau de interatividade. De qualquer forma, é a possibilidade de interação com informações representadas por mídias que não são tradicionalmente interativas (fotografia, vídeo, música, voz gravada) que vem atraindo as pessoas a multimídia. E é o fato de que esses meios de comunicação estão agora associados ao computador que os torna interativos. E tudo isso torna multimídia algo extremamente interessante para a educação.
Dos meios de comunicação mencionados (som, fotografia, vídeo, animação, gráficos, textos), os três primeiros (som, fotografia e vídeo) já vêm sendo integrados há muito tempo, mesmo antes de se imaginar a possibilidade de sua digitalização. A integração de sons (principalmente a voz humana e fundos musicais) e fotografias (slides) permitiu a criação dos primeiros audiovisuais. A televisão, naturalmente, integrou som e imagens em pleno movimento de forma extremamente dinâmica e eficaz. O aparecimento e a popularização do vídeo-cassete completou o ciclo, permitindo que apresentações, sistemas instrucionais, publicidade e propaganda, etc., fizessem uso integrado desses três meios de comunicação (som, fotografia e vídeo), muito antes de se pensar em sua digitalização.
Faltava, porém, o elemento de interatividade. A integração desses três meios de comunicação com os recursos disponíveis no computador (animação, gráficos, textos) reflete, porém, evoluções mais recentes, que estão ainda em curso, devendo produzir resultados otimizados apenas nos próximos anos.
A digitalização dos componentes áudio, fotografia e vídeo já é problema resolvido, do ponto de vista técnico. O que precisa ser equacionado é o problema da compressão dos arquivos de sons e imagens digitalizados (principalmente os arquivos de imagens digitalizadas de vídeo em pleno movimento), que, em forma não comprimida, ocupam quantidade de espaço incompatível com a capacidade dos meios de armazenamento hoje disponíveis (mesmo para os DVDs, Digital Video Discs). Animações, gráficos e textos gerados por computador já são, como é sabido, digitalizados e não oferecem maiores problemas de armazenamento.
O que é preciso enfatizar é que, com a digitalização dos componentes áudio, fotografia e vídeo, o computador hoje manipula sons e imagens com a mesma facilidade com que manipula números, gráficos e textos, tornando-se, na verdade, uma máquina que processa — e, quando em rede, transporta — números, textos, sons e imagens.
Correndo-se o risco de tentar esclarecer o que para muitos é óbvio, explica-se, em seguida, o que é a digitalização de sons e imagens (fotográficas ou de vídeo).
Atualmente sons podem ser armazenados de forma mecânica, magnética ou óptica. A forma de armazenamento mais tradicional tem sido a mecânica, através do uso de discos convencionais (dos quais os long-plays ainda são bastante usados). Mais recentemente popularizou-se o uso de fitas magnéticas para armazenar sons (principalmente fitas cassetes). Apenas por volta de 1984 começaram a ser usados meios de armazenamento ópticos (os discos compactos a laser, os hoje onipresentes CDs).
No caso de disco convencional e de fita magnética, os sulcos do disco ou as marcas magnéticas da fita representam, diretamente, os sons que ouvimos. Equipamentos destinados a reproduzir sons (toca-discos e toca-fitas) “lêem” esses sulcos ou essas marcas e os traduzem nas ondas sonoras perceptíveis pelos nossos ouvidos.
No caso de um CD, as marcas gravadas na superfície do disco (minúsculos buracos feitos por um raio laser) não representam, diretamente, os sons que ouvimos: representam apenas números — os dígitos numéricos binários 0 e 1. São esses números que, por sua vez, representam, em suas muitas combinações, os vários sons. O equipamento destinado a reproduzir os sons (o toca-discos) precisa ter, neste caso, um microprocessador que lê e decodifica as informações numéricas gravadas no disco, transformando-as em ondas sonoras perceptíveis pelos nossos ouvidos. Esse equipamento é, na verdade, um computador disfarçado.
Imagens têm sido, tradicionalmente, armazenadas em filmes. Todavia, mais recentemente, seu armazenamento tem sido feito também em fitas magnéticas (fitas cassetes de vídeo) e em discos ópticos a laser (vídeo-discos ou discos compactos, como CD-ROMs e, mais recentemente, os DVDs, já mencionados).
O armazenamento de imagens em filme é, de certa forma, explícito: se olharmos um filme revelado, mesmo que não projetado, vê-se as imagens que nele estão armazenadas, porque elas estão gravadas de forma analógica. Tanto isso é assim que o conteúdo de um filme cinematográfico é diretamente projetado na tela, através de um foco de luz. O projetor de filme é uma máquina relativamente simples: ele não precisa traduzir ou decodificar sinais complexos para transpor para a tela as imagens contidas no filme: ele simplesmente as projeta.
No caso de imagens armazenadas em fita magnética, não há semelhança, do ponto de vista visual, entre o que está na fita e o que aparece na tela de um aparelho de televisão ou de um monitor de vídeo. Se olharmos a fita, nada veremos. O que está armazenado nela não passa de marcas magnéticas que, de uma forma não explícita, representam as imagens originais. Só um equipamento especial consegue ler e traduzir essas marcas, transformando-as em imagens na tela.
No caso de imagens armazenadas em discos compactos óptico a laser (CD-ROMs, DVDs), o armazenamento se dá através de marcas (na verdade, pequenos buracos) queimadas na superfície do disco, que representam apenas números — os dígitos numéricos binários 0 e 1. São esses números que, por sua vez, representam, em suas várias combinações, as imagens originais. O equipamento destinado a reproduzir essas imagens precisa ter, neste caso, um microprocessador que lê e decodifica as informações numéricas gravadas no disco, transformando-as em imagens que serão exibidas na tela de um aparelho de televisão, de um monitor de vídeo, ou de um computador. Esse equipamento é, na verdade, um computador, mais ou menos disfarçado.
As modalidades de armazenamento em que sons ou imagens são representados por números — na verdade, pelos dígitos binários 0 e 1 — são chamadas de digitais. Por contraste, todas as outras modalidades de armazenamento são chamadas de analógicas (embora, stricto sensu, apenas no caso de filmes o termo “analógico” seja apropriado).
Quando sons e imagens (ou qualquer outro tipo de informação) são armazenados digitalmente, portanto, o que é gravado no disco, magnético ou óptico, ou na fita magnética, são sinais discretos que representam apenas os dígitos 0 e 1 do sistema numérico binário. Isso significa que sons e imagens são armazenados na mesma forma que números, textos, gráficos e programas de computador [27], e podem ser manipulados com igual facilidade. É apenas quando de sua leitura e decodificação, por um computador ou por um microprocessador embutido em um aparelho de reprodução de sons ou de imagens, que esses dígitos binários acabam produzindo sons ou imagens, em vez de números decimais, textos ou gráficos na tela do computador.
A digitalização do som é hoje a regra, no contexto da produção musical. A digitalização da fotografia estática ou parada também se torna comum hoje, mesmo entre amadores, depois de ter se tornado praxe em contextos profissionais. A digitalização de imagens de vídeo também está totalmente equacionada hoje, do ponto de vista técnico, restando apenas o problema da compressão dos arquivos, que ainda consomem excessivo espaço de armazenamento.
Uma vez digitalizados o som, a fotografia e o vídeo, eles podem ser gravados em um mesmo meio de armazenamento (digamos, um CD-ROM) e reproduzidos (ouvidos e vistos) através um computador com tela colorida de alta resolução e com drive destinado a esse tipo de disco. Alternativamente, podem ser reproduzidos através de um toca-discos apropriado, munido de microprocessador, conectado a um amplificador e a um aparelho de televisão ou monitor de vídeo.
Mas o mais importante fruto da digitalização do som e da imagem, estática ou em movimento, não está no fato de que som e imagem podem ser armazenados em um mesmo meio de armazenamento que números, dados textuais, gráficos e programas de computador, mas sim no fato de que o computador pode manipulá-los com a mesma facilidade com que processa números e textos. É esse fato que permite a interatividade, sem a qual não haveria multimídia.
Se fizermos uma breve recapitulação histórica, veremos que, na verdade, o computador foi criado, originalmente, para manipular apenas números: para fazer cálculos complexos, como os exigidos para determinar trajetórias balísticas. Subseqüentemente, passou a manipular informações textuais, depois de convertê-las, internamente, em dígitos numéricos binários. Com a digitalização do som e da imagem, estática ou em movimento, o computador passou a manipular, com a mesma facilidade, informações numéricas, textuais, sonoras e visuais. Essa a grande (r)evolução: é uma evolução, mas uma daquelas evoluções em que uma pequena mudança quantitativa acaba produzindo uma mudança qualitativa, equivalente a uma revolução.
É oportuno mencionar que multimídia, como caracterizada aqui, só teve condições de aparecer no momento em que as tecnologias de edição e impressão de textos, de gravação e transmissão de sons e vozes, de gravação e transmissão de imagens, de telecomunicações e de processamento de dados alcançaram a fase da eletrônica digital. Essas tecnologias atravessaram uma fase mecânica, e, posteriormente, uma fase elétrica, nas quais pouca coisa tinham em comum. Foi só ao alcançar a fase digital que se aproximaram e estão se integrando. E o computador, máquina digital por excelência, está no centro de todas elas.
É a esse conjunto de tecnologias, envolvendo mídias que apelam a mais de um sentido de uma só vez, operando de maneira integrada, intuitiva e interativa, sob a coordenação do computador, que o termo “multimídia” é, hoje, normalmente, aplicado.
NOTAS
[1] Quanto a esse assunto que, infelizmente, não nos ocupará mais neste trabalho, por extrapolar de muito o seu escopo, vide Adam Schaff, A Sociedade Informática, tradução do Alemão por Carlos Eduardo Jordão Machado e Luiz Arturo Obojes (Editora UNESP e Editora Brasiliense, São Paulo, SP; publicado originalmente sob os auspícios do Clube de Roma), p.69: “Vale a pena, pois, assinalar as implicações sociais da segunda revolução industrial [a atual, por outros chamada de pós-industrial] a este respeito: a informática abre novas perspectivas para a democracia direta, isto é, para o autogoverno dos cidadãos no verdadeiro sentido do termo, porque torna possível estender a instituição do referendo popular em uma escala sem precedentes, dado que antes tais referendos eram praticamente impossíveis do ponto de vista técnico. Isto pode revolucionar a vida política da sociedade, no sentido de uma maior democratização”. (O título em Português desse livro é uma tradução infeliz. O título original em Alemão é Wohin führt der Weg, que, traduzido literalmente, quer dizer “Para onde nos conduz o caminho” — que, apesar de canhestro, parece um título melhor do que o adotado pelo tradutor.)
[2] George Orwell, 1984 (Harcourt, Brace and World, New York, NY, 1949), tradução brasileira (com o mesmo título) de W. Velhos (Companhia Editora Nacional, São Paulo, SP, 10ª edição,1977). O livro foi escrito em 1948, o seu título sendo a inversão dos últimos dois dígitos do ano em que foi redigido. Outro livro famoso neste contexto, publicado dezessete anos antes, é Brave New World, de Aldous Huxley (Harper & Row, New York, NY, 1932), tradução brasileira de Vidal de Oliveira e Lino Vallandro, sob o título Admirável Mundo Novo (Editora Globo, Porto Alegre, RS, 10ª edição, 1982).
[3] Um dos livros mais abrangentes sobre esses problemas, tanto em nível individual como em nível social, é Computerization and Controversy: Value Conflicts and Social Choices, editado por Charles Dunlop e Rob Kling (Academic Press, Inc., New York, NY, 1991).
[4] O problema do emprego/desemprego será discutido rapidamente adiante. Não há dúvida, porém, de que a tendência é no sentido de que, daqui para a frnte, falando em termos percentuais, cada vez menos pessoas trabalhem e cada pessoa trabalhe cada vez menos. O século XXI deverá ser o século do tempo livre. Essa tese foi brilhantemente defendida no programa Roda Viva da TV Cultura do dia 4 de Janeiro de 1999 pelo sociólogo italiano Domenico de Masi (demasid@tin.it), cujo desempenho causou tamanho impacto que o programa teve que ser reprisado na semana seguinte (11 de Janeiro de 1999) e um número record de pessoas comprou a fita.
[5] Gilberto Dimmenstein, “Excesso de Informação Provoca Ignorância”, Folha de S. Paulo, 2 de novembro de 1997: “A maioria de nossas escolas forma exatamente o fracassado do futuro por investir mais na memorização para passar no vestibular do que na criatividade. Incrível que, no Brasil, são raras as pessoas em pânico com essas fábricas de obsoletos” (ênfase acrescentada).
[6] Seymor Papert, em The Connected Family, op.cit., p.159, se pergunta (mas responde negativamente) se aprender não seria mais semelhante a processos naturais, como amar e se alimentar, do que a algo técnico que pudesse ser afetado pela tecnologia. Esta mudou profundamente como (por exemplo) tratamos de nossa saúde, mas (até agora, pelo menos) não alterou em quase nada como amamos e mesmo como nos alimentamos (embora possa ter afetado o objeto de nosso amor e o conteúdo do que ingerimos).
[7] Vide Adam Schaff, op.cit., p.22. Schaff caracteriza assim a diferença entre a primeira e a segunda revolução industrial: “A primeira . . . teve o grande mérito de substituir na produção a força física do homem pela energia das máquinas (primeiro pela utilização do vapor e mais adiante sobretudo pela utilização da eletricidade). A segunda revolução, que estamos assistindo agora, consiste em que as capacidades intelectuais do homem são ampliadas e inclusive substituídas por autômatos, que eliminam com êxito crescente o trabalho humano na produção e nos serviços”. Comparar, a esse respeito, Jeremy Rifkin, The End of Work: The Decline of the Global Labor Force and the Dawn of the Post-Market Era (G. P. Putnam’s Sons, New York, NY, 1995, 1996). Também a esse respeito ver o interessante artigo de Stephen Kanitz, “A Vida sem Trabalho”, Veja, edição de 13 de Janeiro de 1999, em que defende a tese de que “com os robôs suprindo nossas necessidades, no futuro poderemos nos devotar a atividades mais interessantes do que o trabalho”. Em tom meio de blague Kanitz conclui que o brasileiro, que tira três meses de férias por ano (do início de Dezembro até depois do Carnaval), está especialmente bem adaptado para essa sociedade do futuro – melhor do que os americanos, viciados no trabalho…
[8] Harold G. Shane, “The Silicon Age and Education”, in Phi Delta Kappan, January 1982, pp.303-308.
[9] Acrescenta-se o qualificativo “lingüística” porque é possível comunicar-se remotamente através de sinais, como, por exemplo, os de fumaça, usados em contextos de comunicação relativamente primitivos.
[10] Walter Ong, em Oralidade e Cultura Escrita: A Tecnologia da Palavra (Campinas, Papirus, 1982, 1998; tradução do original Inglês por Enid Abreu Dobránszky), p.69, aponta para um importante fato, a saber, que numa cultura em que a escrita foi interiorizada a linguagem escrita afeta e modifica a fala: “Indivíduos que interiorizaram a escrita não apenas escrevem, mas também falam segundo os padrões da cultura escrita, isto é, organizam, em diferentes graus, até mesmo sua expressão oral em padrões de pensamento e padrões verbais que não conheceriam, a menos que soubessem escrever”.
[11] Plato, Phaedrus (The Library of Liberal Arts, Bobbs-Merrill Company, Inc., Chicago, tradução do grego por R. Hackforth e tradução do Inglês por Eduardo Chaves). Acerca dessa passagem ver “From Internet to Gutenberg”, magnífica conferência apresentada por Umberto Eco na Academia Italiana de Estudos Avançados na América, no dia 12 de Novembro de 1996, disponível na Internet no seguinte endereço: http://www.italynet.com/columbia/internet.htm.
[12] Idem, Ibidem.
[13] Walter Ong, op.cit., pp. 94-95. A frase que antecede o asterisco no texto é, no original, “Plato’s Socrates also holds it against writing that the written word cannot defend itself as the natural spoken word can”. Infelizmente a tradução oficial para o Português saiu-se com isto: “O Sócrates de Platão também defende contra a escrita que a palavra escrita não pode se defender como a palavra natural falada”. Minha atenção foi chamada para a passagem citada (na verdade para a obra toda) pelo Rev. Wilson Azevedo, nas discussões no grupo de discussão eletrônico “Edutec”, que tem por objeto discutir na Internet a questão da tecnologia na educação. Para participar do Edutec, envie uma mensagem eletrônica para listmgr@mindware.com.br, com a linha de assunto vazia e com o seguinte conteúdo: join edutec. Para enviar mensagens para o Edutec, dirija-as a edutec@mindware.com.br. Não é preciso ser membro do Edutec para enviar mensagens para o grupo, mas é preciso ser membro para receber as mensagens enviadas para o grupo.
[14] “Um ponto fraco da opinião de Platão é que, para tornar mais convincentes essas objeções, ele as pôs por escrito”. Walter Ong, loc. cit.
[15] Walter Ong, op.cit., pp. 97-98. O autor mencionado na citação é Eric A. Havelock, e o livro é Preface to Plato (Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge, MA, 1963).
[16] Mortimer J. Adler e Charles van Doren, How to Read a Book (Simon and Schuster, New York, NY, 1940), p.13. O Aurélio (pelo menos na edição consultada) não registra “ensinante” — nem “aprendente”. Deveria fazê-lo: são termos que preenchem de forma significativa uma lacuna na língua portuguesa. Vide adiante a nota apensada ao título da seção III.2.A.
[17] Antes da invenção da impressão e da disseminação de uma cultura letrada, saber ler e escrever era uma profissão, que, como tal, apenas alguns exerciam na sociedade. Assim como nem todo mundo precisa saber como construir casas ou cultivar campos, porque há os que fazem isso para nós, antes da impressão nem todos precisavam saber ler e escrever: havia aqueles que faziam isso pelos outros, exercendo uma profissão especializada. O filme Central do Brasil mostra claramente como a oralidade é ainda a única forma de comunicação para um número grande de brasileiros.
[18] Walter Ong, op.cit., p. 95. O autor citado é Martin Lowry e o livro mencionado é The World of Aldus Manutius: Business and Scholarship in Renaissance Venice (Cornel University Press, Ithaca, NY, 1979). O Inglês tem vários termos (“printing”, “printer”, “press”, “print” — todos substantivos), com sentidos parecidos mas diferentes, e que são, freqüentemente, difíceis de traduzir. O que Ong chama de “impressão” é tradução de “printing”, que se refere fundamentalmente ao processo de imprimir algo. “Printer” é o gráfico (dono da gráfica) ou a gráfica em si, bem como, hoje, a impressora (do computador). “Imprensa” (o meio de comunicação) é a melhor tradução de “press”, embora o termo também se refira, às vezes, ao processo de impressão. A melhor tradução de “print” é mais difícil. O termo às vezes se refere àquilo que é impresso: uma gravura impressa é um “print”, como também o são a planta de um edifício ou o projeto gráfico de um equipamento (geralmente chamados de “blueprints”). Mas também se fala em “finger print” (impressão digital), “foot print” (pegada, marca deixada pelos pés), etc. Escrever em letra de forma também é, em Inglês, “print” (aqui, naturalmente, verbo), termo que também se aplica, como substantivo, à letra de forma, ou às letras impressas em geral (como em “fine print”, letras miúdas).
[19] Ver a esse respeito o ainda muito relevante Understanding Media: The Extensions of Man, de Marshall McLuhan (McGraw-Hill Book Co., New York, NY, 1964): “O livro foi a primeira máquina de ensinar e também a primeira mercadoria produzida em massa. . . . A sociedade aberta é aberta em virtude de um processamento educacional tipográfico uniforme, que permite expansão indefinida de qualquer grupo por adição. O livro impresso baseado na uniformidade e repetibilidade tipográfica na ordem visual foi a primeira máquina de ensinar, e a tipografia foi a primeira mecanização de uma arte manual” (p.174).
[20] Cp. McLuhan, op.cit., especialmente o cap. 18: “A palavra impressa: arquiteta do nacionalismo”, pp.170-178. Eis algumas passagens retiradas deste e de outros capítulos do mesmo livro. “A explosão tipográfica estendeu as mentes e as vozes dos homens de modo a redefinir o diálogo humano, agora em escala global e que unifica as eras. . . . A tipografia fez com que se encerasse o paroquialismo e o tribalismo, psíquica e socialmente, tanto no espaço como no tempo” (p.170). Ao mesmo tempo, porém, em que criou uma sociedade global, tanto em termos espaciais como temporais, fazendo com que se encerrassem o paroquialismo e o tribalismo, o livro impresso fortaleceu os grupos lingüísticos e, com isso, favoreceu o surgimento do nacionalismo (criando, assim, a semente de um novo paroquialismo): “A unificação política das populações em grupos vernaculares e lingüísticos era impensável antes de a impressão tornar o vernáculo um meio de comunicação de massa” (p.177). “O nacionalismo era desconhecido no mundo ocidental antes da Renascença, quando Gutenberg tornou possível ver a língua materna em roupagem uniforme” (p.215). Neste contexto também é importante o outro livro de McLuhan, The Gutenberg Galaxy: The Making of Typographic Man (University of Toronto Press, Toronto, ON, 1962).
[21] Understanding Media, op.cit.
[22] Walter Ong, op.cit., p.98. A frase que aqui se traduz como “dificilmente pode ser considerado algo desumanizante” corresponde ao Inglês “is hardly dehumanizing” (p.83 da reimpressão de 1996, paperback) e está erroneamente traduzida como “é altamente desumanizante” na tradução brasileira, p.98. (Este é o segundo erro importante constatado na tradução brasileira. O primeiro já foi assinalado atrás).
[23] É forçoso admitir que apenas dois dos cinco sentidos estão envolvidos aqui: a audição e a visão. Multimídia parece se encaixar, portanto, dentro dos chamados “recursos audiovisuais” (pelo menos até que o computador consiga sintetizar aromas e afetar virtualmente o paladar…). O fato de que o usuário de multimídia pode interagir com o sistema, tocando na tela ou através de um mouse, acrescenta, porém, uma dimensão táctil a multimídia que inexiste no audiovisual tradicional.
[24] Um disco óptico é um disco gravado e reproduzido através da luz. No caso de discos a laser, a gravação e a reprodução se fazem através de um minúsculo canhão de raios laser. O termo “laser” é, naturalmente, acrônimo de “Light Amplification by Stimulated Emission of Radiation”. O disco óptico a laser mais popular hoje é o CD — tanto o de áudio como o de multimídia, chamado de CD-ROM (termo que se pronuncia, em Português, “cederrôm”, não “cederrum”, como o fazem os que, pretendendo pronunciar o termo em Inglês, acabam confundindo “ROM” com “room”. Em Inglês a pronúncia é “cidirrôm”).
[25] Para os não familiarizados com o jargão computacional, um periférico é um equipamento, acoplado ao computador, que serve ou para introduzir dados no computador (periférico de entrada), como, por exemplo, um teclado ou uma unidade de discos, ou então para receber dados por ele processados (periférico de saída), como, por exemplo, um monitor de vídeo, uma impressora, ou, novamente, uma unidade de discos. Como se pode constatar, alguns periféricos podem servir tanto de periférico de entrada como de periférico de saída. É este o caso das unidades de discos magnéticos. As unidades de discos ópticos a laser (CD-ROM), quando acopladas ao computador, servem (hoje) apenas para leitura de discos, não para sua gravação, sendo, portanto, periféricos apenas de entrada de dados.
[26] Para usar um programa de computador sofisticado, normalmente se exige treinamento ou um bom estudo de seu manual. Para usar um programa com multimídia, geralmente se dispensa tudo isso, porque se espera que o seu uso seja intuitivamente evidente.
[27] Textos são processados e armazenados pelo computador também na forma de números, cada caractere alfabético ou sinal especial sendo representado por um número de até oito dígitos binários, ou de até oito bits ou um byte. É por isso que geralmente se diz que um byte é o espaço da memória do computador necessário para armazenar um caractere alfabético ou sinal especial. Gráficos de computador também são armazenados na forma de números, cada ponto do gráfico sendo representado por um ou mais bits. Em princípio, um bit seria suficiente para representar um ponto do gráfico. Mas como os gráficos são freqüentemente coloridos, mais bits são necessários para armazenar a informação relativa à cor de cada ponto.
Eduardo O C Chaves
Campinas, Dez/98
Transcrito aqui em Salto, 3 de Fevereiro de 2016