Entrevista para a Revista Visão sobre “Revolução na Educação”

A entrevista abaixo foi dada, por escrito, para a Revista Visão (jornalista Luíza Dalmazo) em 12 de Novembro de 2012. Encontrei o texto hoje, revisei-o e o publico aqui. O que saiu em um artigo da revista foi quase nada em comparação com tudo o que eu disse.)

PERGUNTAS E RESPOSTAS

1. Está acontecendo uma revolução educacional? Se está, onde ela está ocorrendo? Alguns dizem que a revolução em curso seria a terceira grande revolução na educação: faz sentido?

Espera-se que aconteça uma revolução educacional — mas ela não está acontecendo ainda. Ela seria provocada (não causada — o processo não é determinista) por uma tecnologia: o computador digital e todas as tecnologias de informação e comunicação que convergiram para ele.

Se e quando acontecer, será a terceira grande revolução (se desconsiderarmos a primeira, que tornou a educação possível). Se incluirmos a primeira, que teve que ver com a invenção da Linguagem Oral, ou seja, da Fala, será a quarta.

Vejamos quais foram as revoluções anteriores para em seguida falar um pouco da revolução educacional que se espera aconteça em um futuro próximo.

A. A Fala

A educação, como a conhecemos, não é possível sem a linguagem. Logo, a revolução número zero, que tornou a educação possível, foi a invenção da linguagem — originalmente, da linguagem oral, vale dizer, da fala. Ninguém sabe quando isso se deu. Alguns imaginam que foi cerca de 100 milhões de anos atrás (mas, para mim, esses números enormes querem dizer que nós não sabemos).

Quando a educação depende exclusivamente da fala, e não há tecnologia para amplificar a fala ou transmiti-la a distância, ela tem de ser face-a-face, ou presencial, como se diz hoje.

Quando falo em invenção da linguagem, tenho em mente a linguagem que faz uso de conceitos e, portanto, que usa termos gerais — não uma linguagem gráfica ou pictórica que, para cada entidade a que deseja fazer referência, tem um elemento que a representa.

B. A Escrita

A segunda revolução (se contarmos a Fala como a primeira) foi causada pela invenção da escrita alfabética (não pictórica, cuneiforme), no milênio anterior à era cristã. Também não é claro quando a escrita alfabética foi inventada. Aparentemente os fenícios inventaram um alfabeto parecido conosco, que os gregos aperfeiçoaram por volta do século 8 aC. Com a escrita alfabética surgiu a carta (vide as cartas do Novo Testamento),  surgiu o livro, originalmente manuscrito, etc.

A escrita revolucionou o mundo, e, revolucionando o mundo, revolucionou a educação.

A carta, e especialmente o livro, ainda que manuscrito, tornaram possível a educação a distância — por carta ou por livros — e a auto-educação — a educação em que eu, sozinho, leio, reflito, tiro minhas conclusões.

C. O Livro Impresso 

O livro manuscrito era de produção complicada. Poucos sabiam ler e escrever, porque o processo de produzir um livro era demorado e caro. Por isso, até o final da Idade Média, até reis e demais nobres eram, em regra, analfabetos.

A terceira revolução foi causada pela invenção da prensa móvel por Johannes Gutenberg, por volta de 1455. Com isso, tornou-se possível produzir livros absolutamente idênticos em grande quantidade e com um custo relativamente barato. A invenção de Gutenberg também tornou possível a popularização do cartaz, do panfleto, do livreto, do jornal…

Isso revolucionou o mundo, e, revolucionando o mundo, revolucionou a educação.

Atribui-se à invenção da prensa móvel uma parcela significativa de importância na Reforma Protestante, no surgimento dos Estados Modernos, no surgimento das Línguas Vernáculas e das Literaturas Modernas, no surgimento da Ciência Empírica, etc.

A Reforma Protestante, por exemplo, incentivou os fieis a aprenderem a ler para poderem ler a Bíblia por si próprios e, assim, não serem enganados pelos padres católicos… Ao lado das igrejas protestantes surgiram escolas mantidas por elas, que são as primeiras escolas modernas de que temos conhecimento. O livro fácil e barato incentivou a auto-educação e a educação a distância (por correspondência, com base em um livro texto comum).

D. A Tecnologia Digital

Em 1946 foi mostrado ao mundo o primeiro computador digital e nada mais foi o mesmo a partir de então — embora algumas coisas custem mais a mudar do que outras. A coisa mais fantástica é que todas as tecnologias de comunicação e informação acabaram por se fundir no computador, ou para a tecnologia digital: as câmeras (e as fotografias estáticas e dinâmicas, neste caso o vídeo), o telefone (e a fala interpessoal a distância), o rádio (e a transmissão do som, inclusive da voz humana, a distância, de um local para vários, broadcasting), a televisão, o cinema, cinema, o jornal, a revista, e, naturalmente, o livro (e-book). A comunicação instantânea se tornou multimídia: texto, voz,  vídeo, som de fundo, efeitos especiais, etc.

Nossa vida está sendo revolucionada por essa evolução tecnológica. A educação também fatalmente o será. Na verdade, fora da escola já foi afetada. As pessoas hoje aprendem conversando por chat (messenger) ou e-mail, pesquisando na Internet (Web), trabalhando em colaboração, facilmente compartilhando ou divulgando amplamente suas produções, etc. Só a escola resiste. Por mais que se faça alarde, pouquíssimas experiências existem de escolas realmente inovadoras.

É isso. Ficou grande, mas é essa a resposta à sua primeira pergunta.

2. Quais são as implicações dessa revolução? Já existem resultados que provam que os novos modelos são mais eficientes? Há casos significativos no Brasil (soube da Lumiar e da Amorim Lima)?

Note-se bem. A revolução até aqui é nas formas de comunicação e acesso à informação. Não é na educação. Mas as formas de comunicação e acesso à informação delimitam aquilo que é possível fazer na educação e, portanto, tornam possível, viável e, por conseguinte, provável, uma revolução na educação.

Assim, a tecnologia em si não causa nenhuma revolução na educação — mas ela torna essa revolução possível, viável e provável. Quem tem de decidir se a educação escolar vai ser revolucionada são os que a controlam as escolas: proprietários, mantenedores, governos, etc. A educação não-escolar (a educação dita não-formal) já está em plena revolução há algum tempo.

Quanto à escola, há três formas de elas reagirem à tecnologia:

  • Usando-a para fazer aquilo que já fazem, apenas de uma forma um pouco mais eficiente (atitude conservadora);
  • Usando-a para estender e ampliar aquilo que já fazem, dando maior alcance e amplitude ao seu trabalho (atitude reformadora);
  • Usando-a para fazer o que antes não conseguiam fazer ou para fazer o que já faziam de uma maneira totalmente nova (atitude transformadora).

Só neste terceiro caso começa a acontecer uma revolução na escola ou, como eu prefiro, tem lugar a reinvenção da escola.

Se reinventarmos a escola, como eu espero que façamos, não haverá ganhos apenas de eficiência, como sugere a pergunta. Haverá uma nova educação, uma nova forma de aprender, um novo currículo, uma nova metodologia, uma nova maneira de encarar a avaliação.

Compara-se o telefone de hoje e o telefone de 20 anos atrás. O telefone de hoje permite ainda que a gente fale com outras pessoas a distância. Mas ele também é um computador que acessa a Internet, que recebe e envia e-mails e mensagens instantâneas (e até mensagens de vídeo), ele é console de jogo, ele é relógio, despertador, máquina fotográfica, album de fotografia, reprodutor de músicas e de vídeos agenda, livro de endereços, etc.

O que se espera é que a nova escola, a escola reinventada, esteja para a escola de hoje como o telefone celular digital de hoje está para aquele telefonão preto, fixo, que só nos deixava fazer e receber chamadas a partir de um mesmo lugar.

A Escola da Ponte, em Portugal, a Lumiar e a Amorim Lima, aqui em São Paulo, e outras escolas esparramadas pelo Brasil e pelo mundo, são pequenos ensaios do que é possível — embora, por ser a inovação real tão rara na educação escolar, elas alcancem grande visibilidade e projeção. Mas nenhuma dessas escolas faz real uso do pleno potencial disponibilizado pelas tecnologias digitais, em especial, pelas redes digitais.

Pessoalmente, tendo a crer que a educação do futuro prescindirá da escola, mesmo de uma escola reinventada, e acontecerá em cima da desescolarização da sociedade, como propugnou Ivan Illich em seu livro A Educação sem Escolas (Deschooling Society).

3. O conceito de personalizar a educação não é novo (até seria legal se eu descobrisse que teórico o criou), mas a tecnologia está permitindo que ele de fato seja implementado. Softwares como o Learning Management Systems permitem não só a monitoria do desempenho dos alunos quanto de professores. Quais são as implicações e benefícios disso? –

Sócrates (470-400 AC, por aí) é, na minha opinião, o pai da educação personalizada. Ele ensinava face-a-face, um-a-um, não tinha um currículo (ele discutia com o interlocutor o que este queria aprender). Ele tinha um método, chamado de maiêutica, que consistia em procurar fazer com que cada um descobrisse, por si próprio, as respostas às suas perguntas.

Logo, a ideia de uma educação personalizada, centrada nos interesses e baseada nos talentos de cada um não é nova — longe disso. A história da educação começa, de certa forma, com ela.

O problema com a educação que Sócrates praticava é que muito pouca gente podia ser alcançada por ela — a educação socrática não tinha escala.

Hoje a tecnologia permite que tenhamos uma educação personalizada em escala, isto é, que atinja todos os que queiram se educar.

Mas a resposta não está em Learning Management Systems (LMS). Está nas redes sociais. Não se trata de monitorar desempenho nem de alunos nem de professores. Trata-se, isto sim, de permitir que cada um aprenda aquilo que precisa ou deseja saber, e saber fazer, para definir e transformar em realidade o seu projeto de vida.

Segundo nosso educador maior, Paulo Freire, ninguém educa ninguém, mas tampouco nos educamos sozinhos. Educamo-nos uns aos outros em interação, em diálogo, em discussão crítica, naquilo que Paulo Freire chamava de comunhão: a comunidade criada com a finalidade de aprender colaborativamente.

É verdade que em escolas, ou instituições formais de educação, os LMS podem ajudar. Mas podem atrapalhar também. Tudo depende da visão de educação de quem os faz e os usa.

4. Sistemas públicos de ensino já adotaram essas ferramentas (ouvi falar do governo de Ontário)? Que melhorias apresentaram?

Pouquíssimos sistemas públicos de ensino, aqui ou no exterior, usam as novas tecnologias de comunicação e informação, e em especial as redes sociais, para promover a educação no sentido que Paulo Freire imprimiu ao conceito.

As mudanças ocorridas em Ontário, sob a coordenação de meu amigo Michael Fullan, que era do Ontario Institute of Education antes de se aposentar e se tornar consultor, são importantes, mas são feitas dentro do paradigma vigente, que preconiza que a educação precisa de currículos muito bem elaborados, métodos de ensino e instrução sofisticados, professores especializados bem preparados, avaliação na forma de testes, provas e exames — e alunos dispostos a aprender não o que precisam ou desejam aprender para realizar seu projeto de vida, mas aquilo que os burocratas em secretarias e ministérios da educação decidem que devem aprender.

Uma hora os jovens vão se dar conta de que a educação escolar é uma sentença de 12 a  16 anos que os interna e institucionaliza, a revolução educacional pode começar a acontecer com rapidez e eficácia.

5) Enquanto países como o Canadá estão investindo em tais sistemas, o Brasil discute política de cotas. Não é um sinal de descompasso as ideias mais modernas no mundo?

O Brasil, infelizmente, apesar de toda a pretensão, é um país atrasado. A discussão das cotas entrou em moda nos Estados Unidos cinquenta anos atrás — e lá já saiu de moda. O primeiro presidente americano negro não se beneficiou de cotas — que se registre isso.

São Paulo, 12 de Novembro de 2012, revisto em 14 de Março de 2018

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