A Tecnologia e os Paradigmas na Educação: O Paradigma Letrado entre o Paradigma Oral e o Paradigma Audiovisual

[ Este artigo, “A Tecnologia e os Paradigmas na Educação: O Paradigma Letrado entre o Paradigma Oral e o Paradigma Audiovisual”, foi publicado no livro Mídia, Educação e Leitura, organizado por Valdir Heitor Barzotto e Maria Inês Ghilardi (Editora Anhembi Morumbi e Associação Brasileira de Leitura, São Paulo e Campinas, 1999) ]

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I. Da Fala ao Livro Impresso: Do Paradigma Oral ao Paradigma Letrado na Educação

  1. A Fala
  2. A Escrita
  3. A Impressão

II. As Tecnologias da Imagem e do Som: Possibilidades e Limitações do Paradigma Audiovisual na Educação

  1. A Imagem
  2. O Som

III. O Computador entre dois Paradigmas: o Letrado e o Audiovisual

  1. O Computador, a Tecnologia Digital e Multimídia
  2. Multimídia e Leitura
  3. Explicitude e Imaginação
  4. Hipertexto

IV. Comentários Finais

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I. Da Fala ao Livro Impresso: Do Paradigma Oral ao Paradigma Letrado na Educação

Nossa educação ocorre através de nossas interações com outros seres humanos, com artefatos, instituições, técnicas e normas criados pelo homem para facilitar e organizar a sua vida (a cultura), e com animais, objetos, eventos e processos naturais que nos cercam (a natureza).

Nossa interação com outros seres humanos não é exclusivamente verbal. Observamos outras pessoas, imitamos seu comportamento, comportamo-nos de modo a agradá-las, irritá-las ou provocá-las, sem que seja necessário trocar uma só palavra com elas. Algumas dessas interações, mesmo que não-verbais, podem, entretanto, contribuir para a nossa educação, ou para a delas.

1. A Fala

Não resta dúvida, porém, de que parcela altamente significativa de nossa interação com outros seres humanos envolve o uso da fala. A fala humana tem características especiais em relação ao que se poderia chamar de linguagens de outros animais.

Antes de desenvolver a fala, pode-se presumir que o comportamento do ser humano era virtualmente indiferenciável do de outros animais vertebrados superiores. Como estes, comunicava-se por gestos e grunhidos. Tem se comentado muito, hoje em dia, o fato de alguns primatas serem capazes de relacionar um som (como o de uma palavra) a um determinado objeto ou a uma determinada ação. O estabelecimento dessa correlação entre um som e um objeto ou uma ação é o aspecto mais simples e elementar do aprendizado da fala. Ele envolve nada mais do que a capacidade de rotular as coisas, dando como que nomes próprios a objetos e ações.

O aprendizado real da fala, entretanto, envolve a capacidade de fazer abstrações, criar conceitos, e usar termos gerais para designar esses conceitos, que servem para evocá-los, sempre que necessário.

A. Tipos de Conceitos

Há três principais tipos de conceitos.

a. Conceitos Empíricos de Primeira Ordem

O primeiro tipo de conceito é aquele que é obtido mediante a abstração (remoção) de características concretas e acidentais de entidades perceptíveis de modo a deixar apenas as características essenciais que vários objetos físicos compartilham e que servem de base para que apliquemos a eles, e apenas a eles, um determinado termo geral (nome comum, não próprio). Assim, depois de observar um número razoável de mesas elaboramos o conceito de mesa (e damos a ele o nome “mesa”, se nossa língua for o Português). Esse conceito não descreve nenhuma mesa concreta (particular), mas, sim, apenas as características gerais que todas as mesas compartilham e que podem ser chamadas, portanto, de as características essenciais de uma mesa. O termo “mesa” é um termo geral, comum, não é um nome próprio, e se aplica, portanto, a qualquer objeto que tenha as características essenciais de uma mesa.

Os conceitos desse primeiro tipo podem ser chamados de conceitos empíricos (porque designam entidades perceptíveis, a que se pode claramente apontar, de forma ostensiva) e representam a primeira ordem (ou o primeiro nível) de conceitos.

b. Conceitos Empíricos de Ordem Superior

O segundo tipo de conceito é obtido quando refletimos, não diretamente sobre as características essenciais de objetos físicos, mas, sim, sobre conceitos de primeiro nível, como o que acabamos de identificar, e construímos, a partir deles, conceitos cujos ingredientes básicos são outros conceitos – abstrações de abstrações. Esses são conceitos de segundo nível, porque pressupõem os conceitos de primeiro nível e não existiriam sem eles.

Há basicamente duas formas de gerar conceitos desse tipo:

  • criando, a partir dos conceitos de primeiro nível, conceitos mais genéricos, que, por serem mais genéricos, abrangem mais entidades e, portanto, integram vários outros conceitos;
  • criando, ainda a partir dos conceitos de primeiro nível, conceitos mais específicos, que, por serem mais específicos, abrangem menos entidades e, portanto, diferenciam outros conceitos.

O conceito de móvel é um conceito mais abrangente do que o conceito de mesa, porque abrange o conceito de mesa e vários outros conceitos (de cadeira, de cama, de guarda-roupa, etc.). Na verdade, o conceito de móvel representa o gênero do qual o conceito de mesa representa a espécie. Não há nenhum objeto físico que possa ser classificado como móvel que não seja, ao mesmo tempo, classificável debaixo de um conceito de nível lógico inferior, como uma mesa, uma cadeira, uma cama, um guarda-roupa, etc. Na psicogênese dos conceitos, o de móvel muito provavelmente é derivado do de mesa, cadeira, etc., por generalização.

O conceito de mesa de café, porém, é um conceito mais específico (e, portanto, menos abrangente) do que o conceito de mesa, porque se refere a uma categoria específica – uma espécie – de mesa (que, em relação a mesa de café, passa a ser o gênero). É importante notar que, neste caso, o conceito base, que poderíamos chamar de “âncora”, é o conceito de mesa, não o de mesa de café. Na psicogênese dos conceitos, o de mesa de café certamente é derivado do de mesa, por especificação.

c. Conceitos Abstratos

O terceiro tipo de conceito abrange os conceitos abstratos, que não se referem a objetos empíricos, perceptíveis, mas, sim, a qualidades intangíveis de objetos e ações como verdade, bondade, beleza, etc. Para chegar a esses conceitos o homem precisa exercer os seus poderes de abstração num nível ainda mais elevado.

Nenhum animal, a não ser o homem, é capaz de construir conceitos. A fala não passaria de um sem número de grunhidos e, na melhor das hipóteses, nomes próprios se não fosse essa capacidade lógica que tem o ser humano de criar conceitos e de usar nomes gerais (comuns) para se referir a eles. A fala conceitual é, porém, uma tecnologia de comunicação sofisticada.

(Há muitas formas de compreender a tecnologia. Neste artigo a tecnologia é concebida, de maneira ampla, como qualquer artefato, método ou técnica criado pelo homem para tornar o seu trabalho mais leve, sua locomoção e sua comunicação mais fácil, ou simplesmente sua vida mais agradável e divertida).

B. A Fala e a Educação

Podemos imaginar, portanto, o grande salto que representa, na escala evolutiva, o aparecimento da fala. Apesar de ser possível, dentro de limites, falar em educação através de exemplo e outras interações não-verbais, é forçoso reconhecer que, sem a linguagem (que apareceu primeiro como fala, depois como escrita), não haveria educação (como a entendemos hoje). Historicamente, portanto, a fala conceitual representa a primeira tecnologia que afetou profundamente a educação.

Sem a fala não haveria o que hoje entendemos por educação. Animais, mesmo os primatas mais avançados, não educam, no sentido em que nós educamos. Esse processo de educar através da fala teve início, provavelmente, assim que o ser humano se tornou capaz de desenvolver conceitos, usar termos gerais.

É preciso ressaltar aqui que, no estágio da tradição exclusivamente oral, a educação é algo forçosamente pessoal e “presencial” (termo muito usado hoje para realçar o contraste com “educação a distância”). Para que ela aconteça duas pessoas têm que estar próximas uma da outra, no espaço e no tempo. Esse modelo tem se perpetuado, mesmo depois da introdução na educação de tecnologias, como a escrita e o livro impresso, que tornaram possível uma educação não presencial e assíncrona (isto é, que não envolve contigüidade espaço-temporal).

Durante milênios o ser humano educou predominantemente através da fala. Na verdade, nos séculos que imediatamente antecederam o quinto século da era pré-cristã a fala chegou próximo de tornou-se uma arte. A Odisséia e a Ilíada de Homero foram, inicialmente e por muito tempo depois, transmitidas oralmente. Se a fala, em si, já era uma tecnologia, i.e., uma técnica inventada pelo homem para melhor se comunicar com outros seres humanos, a declamação, a retórica e a dialética foram tecnologias assessórias da fala, que permitiram que o ser humano usasse a fala de forma mais eficaz – em especial na educação (nas conversas, nas discussões, nos debates). Sócrates talvez seja o educador que, nessa época, usando o seu método maiêutico, fez da fala o instrumento mais eficaz da educação. Mas Sócrates já viveu no limiar de importante transição.

2. A Escrita

A transição foi de uma sociedade predominantemente oral para uma sociedade predominantemente letrada, isto é, que faz uso da escrita alfabética. Esta representou o passo tecnológico mais significativo, em termos educacionais, dado a seguir. A escrita é uma tecnologia que nos permite, num primeiro momento, registrar a fala, para que outros possam receber as palavras que a distância e/ou o tempo os impede de escutar.

Hoje em dia há tecnologias que gravam a fala em si, ou que a levam a locais remotos, mas antes da invenção de fonógrafos, telefones e de outros meios de telecomunicação sonoros, tínhamos que depender da escrita para levar a fala codificada a locais remotos. Com a escrita temos comunicação lingüística remota, comunicação lingüística a distância.

A escrita foi, portanto, a primeira tecnologia que permitiu que a fala fosse congelada, perpetuada, e transmitida a distância. Com a escrita, deixou de ser necessário capturar a fala naquele instante passageiro e volátil antes que ela se dissipasse no espaço. A escrita tornou possível o registro da fala e a sua transmissão para localidades distantes no espaço e remotas no tempo.

Na realidade, com o passar do tempo, a escrita acabou por criar um novo estilo de comunicação: a linguagem tipicamente escrita, que não é a mera transcrição da fala. Além disso, a escrita também criou um novo estilo de fala. O teatro, por exemplo, é a fala decodificada da escrita. Alguém escreve a peça, ou o roteiro, e outros a representam, falando. [1]

Muitos expressaram receio, quando a escrita se disseminou, de que ela fosse subverter a memória e, conseqüentemente a educação, até então calcada na memória, e de que ela fosse uma forma de comunicação essencialmente inferior à fala.

Sócrates, pelo que consta, nunca escreveu nada. A julgar pelos relatos que dele e de suas idéias nos deixa Platão, isso não se deu por acaso: Sócrates, como já assinalamos, tinha preconceitos contra a escrita (sem a qual não há leitura). Pelo menos é isto que fica claro no famoso diálogo Fedro.

No capítulo XXV de Fedro, Sócrates conta a seguinte história, que ele chama de mito, acerca da invenção da escrita, que ele atribui ao deus egípcio Teuto (a quem os Gregos chamavam de Hermes). Teuto, orgulhoso de sua principal invenção (ele também teria sido o inventor do número e do cálculo, da geometria e da astronomia), veio mostrá-la ao rei Tamos, que lhe perguntou qual a utilidade da invenção. Eis o que disse Teuto:

“Aqui, ó rei, está um conhecimento que melhorará a memória do povo egípcio e o fará mais sábio. Minha invenção é uma receita para a memória e um caminho para a sabedoria”.

A isso o rei ceticamente respondeu:

“Ó habilidoso Teuto, a um é dado criar artefatos, a outro julgar em que medida males e benefícios advêm deles para aqueles que os empregam. E assim acontece contigo: em virtude de teu apreço pela escrita, que é tua filha, não vês o seu verdadeiro efeito, que é o oposto daquele que dizes. Se os homens aprenderem a escrita, ela gerará o esquecimento em suas almas, pois eles deixarão de exercitar suas memórias, ficando na dependência do que está escrito. Assim, eles se lembrarão das coisas não por esforço próprio, vindo de dentro de si próprios, mas, sim, em função de apoios externos. O que você inventou não é uma receita para a memória, mas apenas um lembrete. Não é o verdadeiro caminho para a sabedoria que você oferece aos seus discípulos, mas apenas um simulacro, pois dizendo-lhes muitas coisas, sem ensiná-los, você fará com que pareçam saber muito, quando, em sua maior parte, nada sabem. E eles serão um fardo para seus companheiros, pois estarão cheios, não de sabedoria, mas da pretensão da sabedoria.”

A seguir Sócrates comenta:

“Você sabe, Fedro, esta é a coisa estranha sobre a escrita, que ela se parece com a pintura. Os produtos do pintor ficam diante de nós como se estivessem vivos, mas se você os questiona, eles mantêm um silêncio majestático. O mesmo acontece com as palavras escritas: elas parecem falar com você como se fossem inteligentes, mas se você, desejando ser instruído, lhes pergunta alguma coisa sobre o que dizem, elas continuam a lhe dizer a mesma coisa, para sempre. Uma vez escrita, uma composição, seja lá qual for, se espalha por todo lugar, caindo nas mãos não só dos que a entendem, mas também daqueles que não deveriam lê-la.  A  composição escrita não sabe diferenciar entre as pessoas certas e as pessoas erradas. E quando alguém a trata mal, ou dela abusa injustamente, ela precisa sempre recorrer ao seu pai, pedindo-lhe que venha em sua ajuda, pois é incapaz de defender-se por si própria”. [2]

É curioso que Platão (embora não Sócrates) tenha se valido da escrita para perpetuar esses diálogos socráticos contrários à escrita. Provavelmente ele discordasse de seu mestre neste aspecto. Caso contrário, dificilmente teríamos os diálogos socráticos registrados. [3]

3. A Impressão

A impressão representa o estágio seguinte no processo de desenvolvimento das tecnologias de comunicação. A escrita, antes da impressão, tinha alcance limitado, porque era feita a mão. Copiar um livro a mão, por exemplo, era algo que levava tempo e ficava caro. Por isso, antes do surgimento da impressão, havia relativamente poucos livros, e o número de pessoas alfabetizadas era pequeno. Apenas aprendiam a ler e a escrever, e, portanto, recebiam educação num sentido parecido com o atual, os intelectuais, isto é, as pessoas que estavam incumbidas da preservação da cultura – geralmente monges e clérigos. Num contexto assim é de imaginar que a educação não florescesse como fenômeno de massa. Nem mesmo os reis, os príncipes e os nobres – isto é, as pessoas que ocupavam os escalões mais altos da sociedade – eram alfabetizados: não havia porque devessem saber ler e escrever, pois não havia o que ler. Escrever era uma arte manual cujos produtos eram poucos e pouco disseminados.

Quando Gutenberg inventou a impressão de tipo móvel, por volta de 1450, tudo começou a mudar.

As mesmas críticas que foram feitas à escrita foram feitas à impressão, e com muito mais razão, como bem ressalta Walter Ong, em Oralidade e Cultura Escrita – A Tecnologia da Palavra:

“A fortiori, a impressão está sujeita a essas mesmas acusações [que foram feitas à escrita]. Aqueles que se perturbam com as apreensões de Platão quanto à escrita se sentirão ainda mais inquietos ao descobrir que a impressão criou receios semelhantes quando foi introduzida pela primeira vez. Hieronimo Squarciafico, que na verdade promoveu a impressão dos clássicos latinos, também argumentou em 1477 que a ‘abundância de livros torna os homens menos atentos’ (citado em Lowry 1979, pp. 29-31): ela destrói a memória e enfraquece a mente ao aliviá-la do trabalho árduo (novamente a queixa contra o computador de bolso), rebaixando o sábio em favor do compêndio de bolso. Obviamente, outros viram a impressão como um nivelador bem-vindo: todos se tornam sábios (Lowry 1979, pp. 31-32)”. [4]

No entanto, no caso da impressão os efeitos sobre a educação foram ainda mais amplos e mais profundos. Numa cultura oral, ou mesmo em uma cultura letrada, mas em que livros são escassos, como era o caso da cultura posterior à invenção da escrita mas anterior à da impressão, quem quisesse aprender alguma coisa tinha que se deslocar até a presença de uma pessoa que conhecesse bem esse conteúdo e estivesse disposta a ensiná-lo. Por isso os estudiosos eram itinerantes na Idade Média: tinham que ficar se locomovendo atrás dos mestres que lhes interessavam, aos pés dos quais se sentavam para absorver suas palavras e retê-las na memória! O livro impresso, que rapidamente se popularizou, era uma excelente memória auxiliar que tornava desnecessário reter na memória tudo que era necessário saber.

Assim, o livro impresso começou a disseminar a prática de dar ao aprendizado o ritmo do aprendente, não do ensinante. Com o livro impresso também tornou-se fácil e comum aprender com alguém que está distante no espaço – ou no tempo! Assim, a impressão, e o seu produto, o livro impresso, tornaram possível, pela primeira vez, a prática generalizada do ensino a distância. Com o livro facilmente disponível e relativamente barato, estimulou-se e muito o auto-aprendizado sistemático (com o auxílio do livro).

Assim, o livro impresso, além de compartilhar com a escrita a acusação de que contribuía para o enfraquecimento da memória, pode ter sido objeto de críticas no sentido de que acentuava a remoção, da educação, daquele caráter de relacionamento presencial entre mestre e discípulo, que, numa tradição oral, lhe era indispensável e, numa tradição letrada, mas anterior à impressão, se considerava ainda importante para ela.

O livro, pode-se confiantemente dizer, foi o primeiro produto cultural de consumo de massa. Se a fala foi a tecnologia que tornou possível a educação, o livro impresso foi a tecnologia que lhe causou a primeira grande revolução. [5]

II. As Tecnologias da Imagem e do Som: Possibilidades e Limitações do Paradigma Audiovisual na Educação

Os quinhentos anos de 1450, quando Gutenberg criou sua prensa, até por volta de 1950 foram os anos da escrita. Os últimos cinqüenta anos, porém, foram os anos da imagem e do som, representados pela televisão (que foi precedida do rádio por cerca de vinte anos).

1. Imagem

É verdade que a pintura sempre existiu. A pintura é uma forma de linguagem não verbal. Parece provável que as primeiras linguagens escritas tenham sido pictóricas, não alfabéticas. A pintura, diferentemente da linguagem alfabética, é uma forma analógica de representação da realidade. Como tal, a pintura, enquanto tecnologia, é extremamente antiga.

Depois da invenção e do uso disseminado da linguagem alfabética, a pintura continuou a ser usada como meio de comunicação, especialmente em benefício dos analfabetos. Nas catedrais medievais, as pinturas chegaram a uma forma extremamente sofisticada de arte e de meio de comunicação.

A grande inovação, na área de tecnologia da imagem, surgiu com a fotografia. Muitos acreditaram, quando surgiu a fotografia, que ela pudesse matar a pintura: por que iria alguém preferir uma representação imprecisa e inadequada da realidade, se poderia ter uma cópia perfeita (se bem que em duas dimensões)? [6]

Depois da fotografia, vieram o cinema, e, quase cinqüenta anos depois, a televisão e o vídeo: a imagem em movimento e (depois de uma breve fase de cinema mudo) acompanhada do som.

Da mesma forma que se acreditou que a fotografia pudesse matar a pintura, cogitou-se de que o cinema pudesse matar o teatro. Nada disso aconteceu. Especula-se, ainda, se a televisão vai matar o cinema. Aqui a questão ainda está aberta.

Na educação, a imagem tem uma função muito importante, se bem que, hoje, freqüentemente subutilizada na escola. É de crer que, no mundo antigo e medieval, em que a maioria da população era analfabeta, a imagem tivesse um papel educacional bem mais proeminente – semelhante ao que possui, hoje, na educação não-formal, que se realiza fora de contextos escolares. Mesmo depois da impressão, a imagem continuou a ter um papel bastante educacional importante na educação, se bem que o mais das vezes esse papel fosse supletivo ao da escrita. As já mencionadas catedrais também tinham um objetivo pedagógico, além do devocional.

Muitos analistas acham que, hoje, em função da influência generalizada da televisão, estamos passando para uma cultura da imagem e do som, deixando para trás a cultura letrada que imperou durante tantos séculos, a partir da invenção da impressão. Por isso os jovens, hoje, preferem ver televisão a ler, ou preferem ver a versão filmada de um livro a ler o próprio livro. Até mesmo quando lêem, a leitura dos jovens é afetada pela imagem: as revistas que lêem são geralmente em quadrinhos. Quando escrevem, sua linguagem escrita é uma mera transcrição da fala.

Como a televisão faz excelente uso, ao lado da imagem, da linguagem falada, pode argumentar-se que as novas gerações estão retroagindo para o nível da cultura oral: são razoavelmente hábeis e proficientes na comunicação oral, mas altamente deficientes na comunicação escrita (seja na leitura, seja na escrita, propriamente dita). A linguagem corporal das novas gerações também é, em geral, bastante eficiente, mesmo quando usada inconscientemente. Há muito material importante para estudo e pesquisa aí por parte dos educadores.

2. O Som

Aqui se trata de fazer referência, ainda mais brevemente do que nos casos anteriores, à tecnologia do som – quer se dizer, de um lado à tecnologia da gravação, reprodução e transmissão do som; de outro lado à tecnologia da música e dos instrumentos musicais.

Se a escrita permitiu o registro e a perpetuação da fala, isto se deu transformando a fala em algo diferente, a saber, símbolos visuais. Aqui, porém, estamos destacando o registro da fala enquanto fala, não como algo diferente. (É verdade que sempre foi possível reconstituir a fala a partir da escrita, mas isso é outra coisa).

A tecnologia de gravação, reprodução e transmissão do som permite que o som seja transmitido à distância. Com isso foi possível o aparecimento do telefone e do rádio – tecnologias que são ainda extremamente importantes hoje, até mesmo na educação (principalmente não formal).

Na área de tecnologia do som merece destaque especial a música. Tanto quanto se sabe, o ser humano sempre cantou. Desde que aprendeu a falar, é de crer que tenha começado a colocar letras em suas melodias.  Para os sons musicais, a notação musical desempenha o mesmo papel que, para a fala, desempenha a escrita.

A tecnologia do som envolve, ainda, por fim, um outro aspecto, o da criação de sons previamente inexistentes no mundo natural, como é o caso dos instrumentos musicais. Combinados, os instrumentos musicais eventualmente tornaram possível a orquestra, que representa uma tecnologia bastante sofisticada.

A música é uma tecnologia de grande potencial na educação, embora freqüentemente subutilizada.

III. O Computador entre dois Paradigmas: o Letrado e o Audiovisual

Quando o computador surgiu, logo depois da Segunda Guerra, e, especialmente, quando o correio eletrônico e os “bate-papos” (“chats”) se popularizaram, renasceu a esperança em muitos educadores de que as pessoas voltariam a ler e escrever, porque o computador era primariamente um meio de comunicação baseado na palavra escrita.

Mesmo recentemente, a Revista Época (em sua edição de 14/6/99) dedicou uma reportagem de capa sobre a divulgada melhoria na capacidade de redação de nossos jovens, que foi atribuída ao fato de que os exames vestibulares estão cada vez mais exigindo redações e ao fato de que os jovens precisam ler e escrever bastante para interagir pela Internet (“Vestibular e Internet Melhoram Textos dos Jovens”).

A capacidade de expressão escrita, alegou-se, entre outras coisas, é decorrente da quantidade de leitura que se faz. É principalmente aqui que entra a Internet que, segunda a revista, estaria sendo uma das fontes a forçar os jovens a ler (e a escrever) mais.

Logo, porém, este sonho de que a Internet vai obrigar nossos jovens a ler e a escrever mais pode começar a ser desfeito. Já se pode interagir com a voz pela Internet, como se o computador fosse um telefone, e logo a interação se fará inteiramente por multimídia, como se o computador fosse um videofone.

1. O Computador, a Tecnologia Digital e Multimídia

A tecnologia digital revolucionou as tecnologias da escrita e da impressão, da fala e do som, e da imagem. Com ela tornou-se possível transformar em números (dígitos, donde tecnologia digital) palavras escritas e impressas, palavras faladas, outros sons, gráficos, desenhos, imagens estáticas e em movimento. Tudo passou a ser número e passou a poder ser transmitido, na velocidade da luz, para qualquer canto do mundo. Com o computador, surgiu multimídia: um megameio de comunicação que incorpora, em um mesmo ambiente, todos os meios de comunicação anteriores.

Em seu sentido mais lato, o termo “multimídia” se refere à apresentação ou recuperação de informações que se faz, com o auxílio do computador, de maneira multissensorial, integrada, intuitiva e interativa.

É oportuno mencionar que multimídia, como caracterizada aqui, só teve condições de aparecer no momento em que as tecnologias de edição e impressão de textos, de gravação e transmissão de sons e vozes, de gravação e transmissão de imagens, de telecomunicações e de processamento de dados alcançaram a fase da eletrônica digital. Essas tecnologias atravessaram uma fase mecânica, e, posteriormente, uma fase elétrica, nas quais pouca coisa tinham em comum. Foi só ao alcançar a fase digital que se aproximaram e estão se integrando. E o computador, máquina digital por excelência, está no centro de todas elas.

É a esse conjunto de tecnologias, envolvendo mídias que apelam a mais de um sentido de uma só vez, operando de maneira integrada, intuitiva e interativa, sob a coordenação do computador, que o termo “multimídia” é, hoje, normalmente, aplicado.

2. Multimídia e Leitura

O que o desenvolvimento descrito na seção anterior nos sugere é que o computador evolui na direção de um equipamento que vai englobar todos os meios de comunicação convencionais. O computador pré-multimídia já havia englobado os meios de comunicação impressos, e, portanto, escritos (aí incluído o correio convencional). O computador multimídia está englobando os meios de comunicação sonoros e visuais. Tudo indica que num futuro próximo o computador se fundirá com o telefone, com o rádio e com o televisor, proporcionando-os um meio de comunicação multimídia interativa e bidirecional entre as pessoas.

Se hoje, em parte devido à presença da televisão não interativa e unidirecional, se constata que a motivação para a leitura, e a capacidade de leitura, de nossos jovens já diminuíram bastante, o que dizer quando eles puderem interagir audiovisualmente com seus pares com os quais hoje se comunicam por correio eletrônico e por “bate-papos” escritos?

Será realístico esperar que um jovem que que tem acesso, mediante o seu computador, a 500 canais de televisão digital, em que vários dos programas permitem comunicação interativa e bidirecional, e que pode se comunicar com seus pares através de vídeo-fone (ou video mail) e que tem à sua disposição literalmente milhares de “bate-papos”, não mais necessariamente escritos, mas sim, envolvendo áudio e vídeo — será realístico esperar que esse jovem se interesse pela leitura convencional, do livro impresso, ou mesmo pela leitura não-convencional, feita na tela, e enriquecida por estruturas de hipertexto?

3. Explicitude e Imaginação

No entanto, será uma grande perda se nós não conseguirmos fazer com que os jovens se interessem pela leitura, tanto a convencional, linear, como a que o computador torna possível, a leitura do hipertexto.

Nós, os que crescemos em um ambiente em que o livro era a principal forma de acesso a mundos — imaginários ou reais — que extrapolavam os limites de nosso quotidiano presencial, isto é, que nos levavam a realidades, virtuais ou não, que não estavam circundadas pelas cercas demarcatórias do nosso espaço e do nosso tempo — nós, os que crescemos nesse ambiente, provavelmente nunca nos renderemos totalmente aos encantos (certamente inegáveis) do audiovisual.

O livro convencional exercita nossa imaginação de maneiras que a televisão, por mais rica que seja em resolução, detalhes, e cores, nunca o fará. Na realidade, quanto mais rica em densidade informacional for a tecnologia da televisão (ou do computador multimídia) provavelmente menos ela exercitará a nossa imaginação, porque os espaços do imaginário já terão todos sido preenchidos pela imaginação do diretor do programa que é transmitido. O programa de televisão é, e deverá permanecer, basicamente um “pacote” fechado.

O livro convencional, por outro lado, nos apresenta, por assim dizer, um enredo cujos detalhes audiovisuais têm que ser preenchidos pelo leitor. É o leitor, através de sua imaginação, que dá carne e osso à feição dos personagens, que elabora e define os contornos específicos das paisagens e dos ambientes.

As pessoas criadas em ambiente mais letrado do que audiovisual, quando, tendo lido um livro, vêem, posteriormente, a sua versão filmada, geralmente concluem que o filme é mais pobre do que aquilo que haviam imaginado. Por mais criativo que seja o diretor do filme, ele, ao filmar a história de um livro, cristaliza uma versão audiovisual daquilo que cada leitor pode construir por si próprio, que sempre deixa a desejar em relação ao que o leitor criativo do livro pode criar.

Por outro lado, quando vemos um filme e, posteriormente, lemos o livro em que foi baseado, dificilmente conseguimos exercitar nossa imaginação tão livremente como quando lemos o livro antes de ver o filme. Para quem viu a novela Gabriela antes de ler o livro de Jorge Amado, a figura de Gabriela terá sempre, e, talvez inevitavelmente, o rosto, o corpo, o jeito de Sônia Braga. O meio audiovisual tem mais densidade informacional do que o meio escrito, e, por isso, deixa menos espaço para a imaginação. [7]

4. Hipertexto

A Web, na Internet, é, em primeiro lugar, uma aplicação que faz uso de hipertexto. “Hipertexto” é um conceito inventado para designar texto que é lido de forma não linear. O conceito de certo modo existe há muito tempo, sem que tenha recebido um nome. Uma enciclopédia é, tipicamente, hipertexto: ninguém a lê começando no primeiro verbete iniciado com a letra “a” e terminando com o último verbete da letra “z”. O leitor procura uma enciclopédia porque está interessado em determinado assunto. A leitura do verbete correspondente pode levar o leitor associar o que está lendo com o assunto de outros verbetes, que ele vai consultar, em função das associações de idéias em sua mente, não da linearidade ou da lógica que o autor procurou imprimir ao texto.

Logo se percebeu que a aplicação do conceito de hipertexto poderia ser muito mais ampla, e que, em especial, ele poderia vir a servir como princípio organizador para um modelo de acesso ao enorme conjunto de informações disponíveis na Internet.

Sistemas de hipertexto, elaborados em papel ou eletronicamente, fazem uso de referências cruzadas. Numa enciclopédia impressa em papel, um verbete faz referência a outro, a bibliografia faz referência a materiais externos à enciclopédia, e, se algum artigo na enciclopédia é realmente bom, materiais externos (artigos e livros) podem fazer referência a ele. Além disso, a enciclopédia possui índices analíticos (por grandes temas) e remissivos (onde os principais conceitos, pessoas, ou eventos são listados, com uma indicação dos verbetes, ou dos volumes e páginas, em que são discutidos). No caso de sistemas de hipertexto eletrônicos, como é o caso da Web, as referências cruzadas são chamadas de “links” (elos de ligação). Se o leitor estiver usando uma interface gráfica, basta clicar em cima de um link (vamos deixar em Inglês, porque o termo já foi incorporado à nossa linguagem) e o sistema traz a informação ali referenciada.

Um sistema de hipertexto só tem os links que o autor introduziu – tantos quantos ele desejou. O leitor pode seguir qualquer link – mas fica, naturalmente, limitado aos links que o autor colocou no sistema. Por outro lado, índices analíticos e remissivos também funcionam como links, e, neste caso, o leitor tem oportunidade de saltar para qualquer parte do sistema. Também é possível, através de sistemas de indexação total do texto (que indexam todas as palavras), saltar para lugares que não foram antecipados pelo autor do texto, fato que torna possível ao leitor de certo modo criar o seu texto pessoal.

IV. Comentários Finais

Não me parece que possamos chegar, neste momento, a uma conclusão única acerca do impacto do computador sobre a educação, em geral, e a leitura, em especial.

No entanto, podemos arriscar algumas conclusões provisórias à guisa de comentários finais.

Se o termo “tecnologia” é definido de maneira ampla, como neste texto, o uso da tecnologia na educação não é algo novo: na verdade, é coexistente com a própria educação; [8]

Desde a invenção da escrita alfabética até o presente, a leitura, que é a contrapartida da escrita, tem sido parte integrante dos processos educacionais, sendo hoje quase impossível concebê-los à margem da leitura, cujo aprendizado, domínio e constante exercício tem sido pré-requisito fundamental para a educação;

O fenomenal sucesso das tecnologias audiovisuais, em especial depois da Segunda Guerra, exemplificado pela onipresença da televisão na vida das pessoas hoje, sugere que, pelo menos em parte, e especialmente para as novas gerações, o principal paradigma de obtenção de informação e, por que não, de educação, esteja se tornando predominantemente audiovisual, e não mais letrado, como o foi nos últimos 2.500 anos, e, em especial, nos 500 anos desde a invenção da imprensa por Gutenberg;

O aparecimento do computador como meio de comunicação, dadas as suas limitações iniciais para representar informações audiovisuais, e, conseqüentemente, sua ênfase na escrita, e dado o fascínio que sempre exerceu sobre crianças e jovens, levou muitos educadores a acreditar que ele poderia ensejar um renascimento do interesse na escrita e na leitura, em detrimento dos meios de comunicação audiovisuais;

A rápida transformação do computador em meio de comunicação multimídia, entretanto, nos leva a encarar com grandes reservas essa possibilidade, visto que as informações disponíveis na Internet, o correio eletrônico, os bate-papos, o “Internet-fone”, etc., tenderão a fazer cada vez mais uso da imagem e do som, em detrimento da escrita, e, portanto, da leitura;

Um dos grandes desafios da educação nos dias de hoje, portanto, é encontrar formas de não permitir que a transformação do computador em meio de comunicação multimídia acabe por decretar um declínio ainda mais acentuado do paradigma letrado na educação, pois isto provavelmente redundaria em um retraimento da imaginação, visto que os meios de comunicação de maior densidade informacional, como é o caso dos meios audiovisuais e da multimídia, caracterizam-se mais pela explicitude do que pela provocação à imaginação;

Nesse contexto, a tecnologia do hipertexto representa uma excelente perspectiva ainda não explorada educacionalmente;

A possibilidade de exploração educacional de temas relacionados à realidade virtual representa outra excelente perspectiva de uso educacional do computador, feita a ressalva de que as ferramentas de desenvolvimento de espaços virtuais também tenderão a ser mais voltadas para a multimídia do que para a escrita / leitura.

NOTAS

[1] Literalmente, não havia teatro antes da escrita – só improvisação. No teatro, portanto, a comunicação se dá em dois tempos: da fala imaginada pelo autor da peça para o texto escrito, e do texto escrito para a fala interpretada do ator. (Pressupõe-se, aqui, que ler uma peça não é equivalente a assistir a ela representada no teatro).

[2] PLATO. Phaedrus. Chicago: Bobbs-Merrill Company, Inc.. Tradução do grego por R. Hackforth e tradução do Inglês por Eduardo Chaves.. Acerca dessa passagem ver “From Internet to Gutenberg”, magnífica conferência apresentada por Umberto Eco na Academia Italiana de Estudos Avançados na América, no dia 12 de Novembro de 1996, disponível na Internet no seguinte endereço: http://www.italynet.com/columbia/internet.htm.

[3] É interessante também notar, neste contexto, que o que Sócrates considera uma desvantagem da escrita – o fato de que ela não responde às nossas perguntas – Mortimer J. Adler e Charles van Doren consideram uma vantagem: as perguntas que nós fazemos ao texto escrito, somos nós mesmos que temos que tentar responder – e isso é bom, porque nos desafia, porque nos torna ativos na leitura. Eis o que dizem, em seu livro How to Read a Book: “Ouvir uma série de preleções é, por exemplo, em muitos aspectos, como ler um livro, e ouvir um poema é como lê-lo. Muitas das regras formuladas neste livro [dedicado a como ler um livro] se aplicam à experiência de ouvir. Entretanto, há boa razão para se colocar mais ênfase na atividade da leitura e colocar menos ênfase na atividade da audição. A razão é que audição é aprendizado por [“from”] um ensinante presente enquanto leitura é aprendizado por [“from”] um ensinante ausente. Se você faz uma pergunta a um ensinante presente, ele provavelmente vai respondê-la. Se você fica perplexo por algo que ele diz, você pode se poupar o trabalho de refletir perguntando a ele o que ele quis dizer. Se, contudo, você formula uma pergunta a um livro, é você mesmo que vai ter que respondê-la! Neste aspecto, o livro é mais como a natureza ou o mundo. Quando você o questiona, ele só responde se você se dá ao trabalho de pensar e analisar”. ADLER, Mortimer J. e van DOREN, Charles. How to Read a Book. New York: Simon and Schuster, 1940. A citação está na p.13. O Aurélio (pelo menos na edição consultada) não registra “ensinante” — nem “aprendente”. Deveria fazê-lo: são termos que preenchem de forma significativa uma lacuna na língua portuguesa. É verdade, porém, que Adler e van Doren já estão falando de livros impressos, mas o que dizem se aplica também a livros manuscritos. Mas, com isso, chegamos à seção seguinte.

[4] Oralidade e Cultura Escrita – A Tecnologia da Palavra. Campinas, Papirus, 1982, 1998. Tradução do original Inglês por Enid Abreu Dobránszky. A citação feita está na p.95. O livro citado é LOWRY, Martin. The World of Aldus Manutius: Business and Scholarship in Renaissance Venice. Ithaca: Cornel University Press, 1979.

[5] A impressão e o livro impresso revolucionaram mais do que a educação. Sem eles não teria havido a Reforma Protestante, não teria surgido a ciência moderna, não teriam se fortalecido as línguas vernáculas modernas, não teriam surgido as literaturas modernas, como as conhecemos, não teria acontecido o Século das Luzes, não teriam aparecido os estados nacionais modernos, e, assim, provavelmente não teríamos tido todos os desenvolvimentos desses decorrentes (como a Revolução Americana, a Revolução Francesa, etc.).

[6] Note-se que quem faz observação como essa pressupõe que a função da pintura é representar a realidade de forma tão fidedigna possível. Neste caso, a fotografia, representando a realidade de forma ainda mais fidedigna do que qualquer pintura, tornaria esta forma de arte obsoleta.

[7] É verdade, porém, que mesmo o meio audiovisual pode optar por omitir detalhes, deixando espaço à imaginação. A diferença básica entre filmes eróticos e de sexo explícito está no grau de explicitude que estes possuem e que, naqueles, é preenchido pela nossa imaginação. Até certo ponto, o meio escrito também pode se valer desses recursos. O que torna Dom Casmurro um livro clássico é, em grande medida, a capacidade que ali demonstra Machado de Assis de sugerir, sem dizer, insinuar, sem explicitar, de não sucumbir à tentação de dar resposta a todas as indagações do leitor.

[8] O que torna a tecnologia até aqui usada (fala, escrita, livro impresso) transparente e, portanto, invisível para os educadores é o fato de que estão totalmente familiarizados com ela.

23 de Julho de 1999

(c) Copyright 1999 by Eduardo Chaves

Last revised: May 02, 2004

Transcrito aqui em Salto, 15 de Junho de 2016

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A Revolução da Desintermediação

Reblogando, a partir de um artigo publicado no meu blog Liberal Space em 15//2011 – vai fazer cinco anos em dois dias.

Liberal Space

Meu décimo quarto artigo no Blog das Editoras Ática e Scipione, publicado nesta segunda-feira passada (13 de Junho de 2011) em:

 http://blog.aticaescipione.com.br

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Extra ecclesiam nulla salus – “Fora da Igreja não há salvação”. (Dito de São Ciprião de Cartago, bispo cristão do terceiro século; e máxima geralmente aceita pela Igreja Católica na Idade Média e até mesmo depois – quem sabe até hoje?).

“Se eu quiser falar com Deus tenho que ficar a sós”. (Gilberto Gil, em sua canção “Se eu quiser falar com Deus”, de 1980).

Durante boa parte da história do Cristianismo, não foi assim como disse Gilberto Gil, nosso ex-Ministro da Cultura. Para falar com Deus, o fiel não podia ficar a sós: tinha de encontrar um intermediário. Na verdade, o intermediário é quem falava com Deus por ele. Padres, santos, a Virgem Maria, todos eles eram credenciados como intermediários no relacionamento e…

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Gurovitz  & Francine

Em artigo de 4/2/16 no “Globo”, Hélio Gurovitz criticou a ex-vereadora de São Paulo Soninha Francine, hoje coordenadora de políticas para diversidade sexual do Estado de São Paulo, por ter desistido de fazer a segunda fase do vestibular para a área de gestão em políticas públicas na Universidade de São Paulo alegando que “É absurdo uma pessoa que quer jornalismo ou geografia precisar saber calcular um cosseno” [ênfase acrescentada].

Não tenho procuração da Francine. Era petista e eu acho (mais ou menos como o Rubem Alves achava acerca do Protestantismo) que quem um dia foi petista vai sempre ser petista, mesmo que renegue alguns aspectos da ideologia. Prova é que ela hoje trabalha com o governador do PSDB Geraldo Alckmin, mas seu cargo é Coordenadora de Políticas para a Diversidade Sexual de São Paulo. (Quem tem interesse na biografia da Francine pode consulta-la na Wikipedia em https://pt.wikipedia.org/wiki/Soninha_Francine).

Acontece, porém, que na questão específica acerca da qual Gurovitz a critica, eu tendo a  concordar com a Francine – e, portanto, vou criticar o artigo de Gurovitz que termina da seguinte forma (cito o último parágrafo):

“É mais que razoável criticar os métodos de ensino de matemática e ciências, ou a forma como esses conhecimentos são cobrados no vestibular. Mas o fato de alguém não conhecer algo não o torna inútil ou dispensável. Apenas revela como, por trás de palavras belas ou da indignação, há tão-somente mentes obturadas para a diversidade do intelecto humano. Não há vergonha alguma na ignorância. A vergonha é orgulhar-se dela, em vez de remediá-la.”

Antes de discutir o último parágrafo de Gurovitz, vou citar o segundo, que esclarece a posição de Francine:

“Formada em cinema pela própria USP, Francine já publicara, em sua página no Facebook, um desabafo a respeito do vestibular. Elencava outras exigências que considerava absurdas, como funções logarítmicas, dilatação de gases, densidades de fluidos, geração de energia eólica e coisas do tipo. “Milhares de aspirantes às vagas de jornalismo, história, sociologia, psicologia, letras, direito, arquitetura, geografia etc. também serão frustrados em sua intenção de estudar na USP por causa dessa insanidade”, escreveu. O vestibular, dizia, se tornou um suplício, um tormento com “matérias inúteis”, indispensáveis por apenas cinco horas – e para nunca mais.”

o O o

A primeira crítica que Gurovitz faz a Francine é que “é lamentável que alguém popular entre os jovens, com uma mente aberta para tantas questões do mundo contemporâneo, seja incapaz de valorizar a importância do estudo” (ênfase acrescentada).

Primeira bola fora de Gurovitz: Francine, pelo menos nas passagens citadas, em nenhum momento se mostrou “incapaz de valorizar a importância do estudo”. Ela simplesmente ressaltou, com enorme bom senso, que o estudo de determinados conteúdos [na escola] e seu domínio [no vestibular] não deveria ser exigido [seja na escola, seja no vestibular] de pessoas cujo projeto de vida é tal que elas muito provavelmente nunca vão fazer uso desses conteúdos.

Longe de se mostrar incapaz de valorizar a importância do estudo, em geral, como tal, überhaupt, Francine defende a tese (muito sensata, em minha opinião) que o estudo (na escola) e os conhecimentos (no vestibular) que devem ser exigidos (ou seja, obrigatórios) devem ter relação com o projeto de vida de cada um, isto é, com aquilo que a pessoa quer ser e fazer na vida.

o O o

É enorme ingenuidade pretender, hoje, com a explosão do conhecimento que teve lugar nos últimos séculos e especialmente nas últimas décadas, que toda pessoa deva estudar tudo que existe para ser estudado, ou tudo que alguns metidos a sábios achem que toda pessoa deve saber ou saber fazer.

É necessário fazer uma seleção.

O próprio currículo da Educação Escolar Básica já faz uma enorme seleção.

Nos anos iniciais (digamos, o Ensino Fundamental I) a ênfase é colocada na aquisição de certas competências e habilidades básicas relacionadas, primeiro, com a língua escrita, segundo, com números. São os chamados 3 R’s dos americanos: Reading, ‘Riting, ‘Rithmetic. Depois (Ensino Fundamental II) acrescentam-se (a) a aquisição de conhecimentos básicos de ciências (saúde e meio-ambiente) e estudos sociais (história e geografia) e (b) o desenvolvimento de certas habilidades básicas na área das artes gráficas / visuais e na área da educação física e do esporte. No Ensino Médio as ciências ditas exatas são desdobradas em abstratas (matemática) e físicas (física, química e biologia) e os estudos sociais acrescentam sociologia e filosofia. Além disso, os Cursos Técnicos Profissionalizantes foram removidos da Educação Básica brasileira – e colocados à sua margem. Quem tem tempo e interesse, pode fazer o chamado “Integrado”, que é o estudo, ao mesmo tempo, do Ensino Médio “Acadêmico” e de um Curso Técnico Profissionalizante. Mas o “Integrado” não é obrigatório.

Basicamente isso. Muita coisa fica de fora desse currículo, não é verdade? Isso apesar de nossos ilustres parlamentares não se cansarem de tentar incluir como obrigatórios para todos os brasileiros conteúdos que a mim parecem exóticos (como estudar História da África porque muitos brasileiros são descendentes de Africanos que vieram para cá como escravos). Se isso faz sentido, por que não obrigar todo mundo, inclusive os descendentes de africanos, a estudar a História de Portugal, da Espanha, da Itália, do Japão, da Armênia, etc., porque muitos de nós somos descendentes de pessoas oriundas, como imigrantes (ou como donos pós-descobrimento ou pós-conquista, se preferem, no caso dos portugueses)?

Além disso, por que não se exigem na Educação Básica Escolar o estudo e a prática da música (canto individual e coral, composição, regência, iniciação a um instrumento musical, etc.), do teatro, da fotografia, do cinema, das artes manuais (marcenaria, carpintaria, mecânica, etc.), da lógica, da retórica, da oratória, para não falar da geologia, da arqueologia, ou mesmo da psicologia, da administração de empresas, etc.? Tudo isso fica fora da obrigatoriedade. O projeto de Base Curricular Comum em discussão obriga todo mundo a estudar na escola muito mais coisa que não faz sentido e as desobriga de saber muito mais coisa que faz sentido…

As razões para não incluir mais isso e muito mais aquilo na Educação Básica Escolar, além do absurdo que já é exigido, são basicamente duas:

  1. Seria demais exigir de todos o estudo e o domínio de todas essas áreas ou disciplinas – isto dentro de um tempo razoável, não mais do que onze ou doze anos;
  2. As pessoas são diferentes, em termos de descendência e origem, em termos de talentos naturais e interesses, e são criadas e vivem em ambientes distintos que ajudam a direcionar seus talentos e interesses para determinadas áreas, e não para outras, fatos que tornam sem sentido exigir de todos que estudem tudo e aprendam tudo que há para estudar e aprender.

Na verdade, como observei, é possível argumentar que aquilo que de fato se exige na Escola Básica brasileira já é demais. No contra-fluxo, há muito gente boa defendendo a tese de que, nos primeiros oito-nove anos de escola (dos seis ao quatorze anos, digamos), deveria exigir-se das crianças / adolescentes apenas o domínio do Trivium medieval:

  • Estudo e domínio da língua materna falada e escrita, tanto em termos de entendimento e compreensão como em termos de expressão;
  • Estudo e domínio da lógica como ferramenta de construção e crítica de argumentos, caracterizados estes como encadeamento de enunciados (em língua materna ou em formato simbólico) que permitem elaborar, propor e defender, bem como criticar, pontos de vista mais complexos;
  • Estudo e domínio da retórica como ferramenta que permite o uso da linguagem oral e escrita para apresentar, defender, e criticar argumentos, ou seja, para debater temas e questões importantes, em ambientes públicos, de forma convincente e persuasiva.

Só isso… Só dos quatorze anos em diante as pessoas iriam aprender as matemática, as ciências (naturais e humanas), as artes, e, naturalmente, a filosofia. Era por isso que, na Idade Média e mesmo no período da Reforma Protestante, tanta gente famosa entrava na universidade aos quatorze anos – com a excelente formação prévia fornecida pelo Trivium: Erasmo, Lutero e Calvino, por exemplo.

Logo, mesmo hoje já se deixa muita coisa de fora do estudo (na escola) e da aprendizagem (no vestibular) de nossos jovens vestibulandos. O fato de tanta coisa ser deixada de fora não significa que os que definiram essa exclusão sejam avessos ao estudo (como Gurovitz pretende insinuar que Francine Francine seja). Significa apenas que, neste contexto, menos é mais. Não adiante exigir que crianças e adolescentes estudem e aprendam coisas que, dados seus talentos e interesses, não estão interessados em aprender, e que, dado seu projeto de vida, provavelmente nunca virão a ter importância em sua vida posterior. É por isso que temos um currículo de Educação Básica Escolar já quase enciclopédico e as crianças e os adolescentes aprendem cada vez menos – e na Idade Média o currículo era enxuto e as crianças e os adolescentes aprendiam bem mais sobre aqueles áreas essenciais ao seu posterior desenvolvimento, estudo, e aprendizagem.

o O o

Deixando de lado a grosseria de Gurovitz ao chamar Francine de ignorante por duas vezes, ressalto o fato de que os exemplos dele para mostrar que é importante saber trigonometria para ser capaz de calcular o cosseno são ridículos:

“Sem saber o que é um cosseno, nenhum aluno de geografia jamais entenderá o que são latitude e longitude, nenhum arquiteto conseguirá desenhar nem mesmo uma planta simplória, nenhum jornalista terá condição de entender notícias triviais de astronomia. Para não falar nos próprios cineastas, que precisam calcular efeitos de luz ou fazer animações no computador.”

Mesmo que se conceda que saber calcular o cosseno possa ser importante para um navegador determinar latitude e longitude, para um arquiteto fazer uma planta, para um jornalista entender notícias de astronomia, e para um cineasta calcular os efeitos da luz ou fazer animações no computador, isso não quer dizer que quem não queira ser nada disso precise obrigatoriamente estudar trigonometria. Se meu projeto de vida é ser um Castro Alves ou um Jorge Amado, eu não preciso; se é ser um orador como Vieira ou um tribuno como Ruy Barbosa, não preciso; se é ser um educador como Anísio Teixeira ou Paulo Freire, não preciso; se é ser um compositor popular como Noel Rosa ou Chico Buarque, não preciso; se é ser um presidente da República como… deixa pra lá, não preciso; se é ser um professor universitário de filosofia ou literatura, não preciso; se é ser um político, não preciso; e assim por diante.

Além disso, saber calcular o cosseno hoje em dia é cada vez mais desnecessário porque a maior parte das pessoas que precisam calcula-lo dependem de calculadoras e computadores. Elas precisam saber quando e por que calcular um cosseno, mas isso aprendem sem precisar aprender a mecânica do cálculo. Quem cria um negócio ou é levado a gerencia-lo, aprende rápida e facilmente o essencial de matemática financeira, como, por exemplo, como calcular um ponto de equilíbrio. Aprende isso no contexto do seu desafio, no contexto de um problema que deseja ou precisa resolver. Isso não quer dizer que todo mundo deva estudar matemática financeira na Educação Básica.

O mesmo vale para Matemática não trigonométrica, que Gurovitz menciona em seus outros exemplos, selecionados a dedo para realçar áreas em que a Matemática é importante. Mas e as inúmeras outras áreas, a maioria, em que não é?

o O o

Diz Gurovitz em seu último parágrafo: “Não há vergonha alguma na ignorância. A vergonha é orgulhar-se dela, em vez de remediá-la.” Antes havia dito: “Ninguém é obrigado a saber tudo aquilo que Francine considera dispensável. Mas não pode se orgulhar disso. Ninguém se orgulha de cometer erros de ortografia. Por que então tanta gente, como Francine, se orgulha de ser ignorante em matemática e ciências afins?”

Certo: ninguém é obrigado a saber “tudo aquilo que Francine considera dispensável”. Gurovitz esquece-se de dizer que ninguém é obrigado a saber tudo aquilo que Gurovitz deseja ou considera necessário. Só devem ser obrigados a saber algo (Trigonometria, por exemplo) aqueles que têm necessidade e interesse de sabe-lo, dado o seu projeto de vida. Vivesse 50 anos antes, Gurovitz seria um intrépido defensor do estudo do Latim no Ginásio.

Além disso, é falacioso comparar a defesa que faz Francine da não-necessidade de estudar Trigonometria, e, portanto, de “ignorância” nessa área, com a ignorância de precisar saber fazer algo, e pretender saber faze-lo, com a comissão de erros crassos numa área que a pessoa professa conhecer, como é o caso dos erros de ortografia. Mas um ex-Chefe de Redação da Época talvez não tenha tido tempo para descobrir a diferença.

o O o

Por fim, o essencial do parágrafo final de Gurovitz, já citado no início. Ali ele acusa Francine de ter “a mente obturada para a diversidade do intelecto humano”. Será? Francine defende sua tese porque reconhece que as pessoas são diferentes umas das outras, tem necessidades e interesses diversos. Reconhece a diversidade não só do intelecto humano mas do resto de características humanas que dificilmente podem ser classificadas como intelectuais. Quem tem “a mente obturada para a diversidade do intelecto humano” é Gurovitz, que pretende fazer com que todo mundo estude, aprenda e eternamente saiba as mesmas coisas. Quem quer impor uma camisa de tamanho único a todo mundo é Gurovitz, não Francine.

o O o

Termino deixando dois recados para a Francine e uma recomendação para todo mundo.

Primeira recomendação para a Francine: em suas manifestações você desce o porrete, bastante bem, no Vestibular – mas apenas no Vestibular. O problema maior, Francine, não é o Vestibular: é a escola padronizada obrigatória, a escola linha-de-montagem que produz, como Henry Ford no início de sua carreira empresarial, apenas um modelo. Expanda o campo de alcance de seus canhões.

Segunda recomendação para a Francine, esta em relação ao cargo que ora exerce no Governo do Estado de São Paulo: o problema, Francine, não é promover a diversidade sexual. Diversos somos todos, e não apenas na área sexual. O problema é aumentar a liberdade dos indivíduos e reduzir o poder de interferir na vida dos indivíduos por parte do Estado – inclusive do governo estadual para o qual você trabalha, mas especialmente do Governo Federal, muito mais interferente. Precisamos, sim, de mais liberdade individual — de mais Liberalismo, no sentido clássico. A diversidade – sexual e de outros tipos – surgirá naturalmente do fato de que somos unicamente diferentes uns dos outros.

A recomendação.

Sugiro que os leitores leiam o artigo de Newton Campos no Estadão de 4 de Fevereiro de 2016:

http://educacao.estadao.com.br/blogs/a-educacao-no-seculo-21/diretora-do-mit-despede-se-para-iniciar-uma-universidade-sem-salas-de-aula/

Transcrevo-o aqui para maior facilidade:

“Diretora do MIT despede-se para iniciar uma universidade sem salas de aula.

Newton Campos

04 Fevereiro 2016 | 18:17

Christine Ortiz, professora e diretora dos cursos de pós-graduação do MIT (Massachusetts Institute of Technology) decidiu deixar esta famosa escola para iniciar um projeto ousado a partir do segundo semestre de 2016: Inaugurar uma nova universidade que questione os padrões universitários modernos, criando novas formas de interação e construção de conhecimento.

A notícia tem sido debatida nos corredores de muitas universidades pelo mundo. O que seria esta universidade “radicalmente” diferente que ela vislumbra? Em sua entrevista publicada esta semana no The Chronicle of Higher Education, chamou-me atenção um trecho que, em português, ficaria mais ou menos assim:

Basicamente, a ideia é que estejamos centrados na aprendizagem baseada em projetos, onde os alunos possam se envolver em projetos relevantes, de longo prazo e integrados entre si. Partindo desta premissa, toda a aquisição de conhecimento ocorreria online. Assim, os projetos deixariam de estar na periferia dos cursos, invertendo o modelo universitário atual. E acho que isso seria muito mais inspirador para os alunos, porque eles poderiam trabalhar desde o princípio nas áreas que lhes motivem, adaptando sua base de conhecimento aos projetos que queiram trabalhar.” (Ênfase acrescentada).

O conceito não é novo e tem sido proposto há anos por pessoas como o empresário brasileiro Ricardo Semler, quem foi palestrante no próprio MIT e fundou as escolas Lumiar. Mas acredito que a diferença aqui pode residir na enorme capacidade de mobilização de recursos que a comunidade científica e empresarial de Boston podem atrair para um projeto desta natureza. Fiquemos de olho.”

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Eis o artigo de Gurovitz:

http://g1.globo.com/mundo/blog/helio-gurovitz/post/o-preconceito-de-Francine-francine.html

Quinta-feira, 04/02/2016, às 06:37

Hélio Gurovitz

O preconceito de Francine Francine

A ex-vereadora Francine Francine, hoje coordenadora de políticas para diversidade sexual do Estado de São Paulo, prestou a primeira fase do vestibular da Fuvest no final do ano passado, para cursar gestão em políticas públicas na Universidade de São Paulo, depois desistiu de fazer a segunda fase. De acordo com a colunista Mônica Bergamo, do jornal “Folha de S. Paulo”, Francine criticou a prova nos seguintes termos: “É absurdo uma pessoa que quer jornalismo ou geografia precisar saber calcular um cosseno”.

Formada em cinema pela própria USP, Francine já publicara, em sua página no Facebook, um desabafo a respeito do vestibular. Elencava outras exigências que considerava absurdas, como funções logarítmicas, dilatação de gases, densidades de fluidos, geração de energia eólica e coisas do tipo. “Milhares de aspirantes às vagas de jornalismo, história, sociologia, psicologia, letras, direito, arquitetura, geografia etc. também serão frustrados em sua intenção de estudar na USP por causa dessa insanidade”, escreveu. O vestibular, dizia, se tornou um suplício, um tormento com “matérias inúteis”, indispensáveis por apenas cinco horas – e para nunca mais.

É lamentável que alguém popular entre os jovens, com uma mente aberta para tantas questões do mundo contemporâneo, seja incapaz de valorizar a importância do estudo. A ignorância de Francine é flagrante, como ela mesma admite. Sem saber o que é um cosseno, nenhum aluno de geografia jamais entenderá o que são latitude e longitude, nenhum arquiteto conseguirá desenhar nem mesmo uma planta simplória, nenhum jornalista terá condição de entender notícias triviais de astronomia. Para não falar nos próprios cineastas, que precisam calcular efeitos de luz ou fazer animações no computador.

Não apenas a trigonometria é um conhecimento fundamental em várias profissões. Ideias da matemática estão presentes em praticamente todas as atividades humanas contemporâneas, da literatura de David Foster Wallace às taxas de juros ou desemprego. Muitos dos problemas brasileiros podem ser atribuídos ao desconhecimento de matemática trivial por parte da população e, sobretudo, dos políticos. Dominar estatística, juros compostos e ordem de grandeza faz uma enorme diferença na hora de avaliar políticas públicas ou medidas econômicas.

O problema na visão de Francine não se reduz, contudo, apenas à ignorância. Reflete também o preconceito corrente na sociedade brasileira – e não apenas nela – a respeito do conhecimento de matemática e das ciências conhecidas como “duras”, ou “exatas”. Ninguém é obrigado a saber tudo aquilo que Francine considera dispensável. Mas não pode se orgulhar disso. Ninguém se orgulha de cometer erros de ortografia. Por que então tanta gente, como Francine, se orgulha de ser ignorante em matemática e ciências afins? O verdadeiro absurdo das declarações de Francine é o grau de arrogância que revelam.

Parte da responsabilidade por isso cabe aos próprios cientistas, que transformaram o conhecimento numa doutrina acessível apenas a iniciados. Ao longo do século XX, a cisão no universo intelectual entre mentes “literárias” e “científicas”, entre “exatas” e “humanas”, deixou sequelas profundas. Depois do século XIX, em que obras monumentais de cientistas como Sigmund Freud ou Charles Darwin eram notáveis também pelo talento literário de seus autores, o texto científico adquiriu seu caráter seco, formal e hermético.

Paralelamente, o mundo artístico passou a desprezá-lo como dispensável. Numa conferência influente de 1959, intitulada As Duas Culturas, o físico e romancista C.P Snow lamentava esse divórcio. Um escritor incapaz de entender as ideias de Einstein, dizia Snow, é tão limitado quanto um engenheiro que ignora o valor de Shakespeare. Continuou a haver exceções de ambos os lados. Entre os cientistas, nomes como o paleontólogo americano Stephen Jay Gould ou o neurologista britânico Oliver Sacks. Entre os literatos, o já citado David Foster Wallace ou Thomas Pynchon. Em geral, contudo, a opinião corrente reflete os preconceitos de Francine.

O cineasta George Lucas, da série “Guerra nas Estrelas”, foi um péssimo aluno de matemática, até entender que o problema era a forma como a disciplina era ensinada. Hoje dedica milhões de sua fortuna a aperfeiçoar o ensino de matemática e ciências. “Em vez de dizer ‘aprenda matemática’, você diz: ‘quero que você construa um avião, mas tem de ser um avião de verdade, porque vamos simulá-lo num computador; então você precisa aprender toda a ciência, toda a matemática e todo o necessário para ajudá-lo a construir esse avião’, disse Lucas numa entrevista. “Então eles aprendem, porque precisam como ferramenta e sabem por que estão aprendendo.”

É mais que razoável criticar os métodos de ensino de matemática e ciências, ou a forma como esses conhecimentos são cobrados no vestibular. Mas o fato de alguém não conhecer algo não o torna inútil ou dispensável. Apenas revela como, por trás de palavras belas ou da indignação, há tão-somente mentes obturadas para a diversidade do intelecto humano. Não há vergonha alguma na ignorância. A vergonha é orgulhar-se dela, em vez de remediá-la.

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Eis o artigo de Francine em sua página no Facebook:

https://web.facebook.com/soniafrancinemarmo/posts/1106953079323842

29 de Novembro de 2015

Soninha Francine

Como sempre, a prova da Fuvest foi sem cabimento. Eu não faço a mais puta ideia de como responder metade da prova. As perguntas olhavam para mim como se fossem escrita cuneiforme. Em algumas delas, mal havia um sinal, um signo, um vocábulo que eu reconhecesse. Não faz sentido.

É muito provável que eu não consiga cursar Gestão de Políticas Públicas por não saber calcular um cosseno, converter uma função logarítmica, calcular quantos centímetros o êmbolo se move para dentro da garrafa conforme a temperatura aumenta, o quanto a densidade do óleo é maior ou menor do que a da água baseada em quantos centímetros um sólido afundou dentro deles, calcular a geração de gigawatts de energia eólica em um ano conforme a velocidade do vento em m/s, saber qual solvente resulta na cristalização de determinada substância, saber qual é a fórmula que se aplica ao aumento de massa de uma gota d’água à medida de que ela desce pela nuvem e algumas coisas relacionadas a homozigoze, procariontes, citosina.

Milhares de aspirantes às vagas de Jornalismo, História, Sociologia, Psicologia, Letras, Direito, Arquitetura, Geografia etc. também serão frustrados em sua intenção de estudar na USP por causa dessa insanidade. A prova se chama “Conhecimentos Gerais”, quando na verdade testa conhecimentos razoavelmente aprofundados sobre todas as matérias do currículo. São professores fazendo provas que professores seriam capazes de responder. Por causa delas, dezenas de milhares de jovens perdem horas de sono, lazer, trabalho e prazer por meses seguidos. Deixam de namorar, estudar o que lhes apetece, aprender o que interessa. Conhecer a cidade, pessoas e o mundo. Praticar esporte, ser voluntários, ler com gosto e vontade, andar, dançar, ir ao cinema, jogar bola, viajar. Fazer nada.

É absurda a soma de horas e recursos desperdiçados. A frustração imposta a quem passou meses de esforço e sacrifício, a quem se diz: “você não pode ser jornalista, não gabaritou em química”. Esqueça a faculdade de Odontologia, você não soube responder qual a área do quadrilátero do plano que intercepta o poliedro no ponto P da aresta AD. Quer ser veterinária? Então trate de estudar mais, porque não soube determinar a fórmula que representa o valor de b em P (a,b), o centro de um círculo que tangencia as retas x=y e x=0, situado na parábola y = x². Ou isso, ou se vira pra pagar uma particular. E melhor não contar com o FIES, porque de repente na metade do curso o governo corta o financiamento.

Tenham dó. Vestibular não é só um suplício de 5 horas, é um tormento de anos a fio. Tanta coisa importante de se aprender, tantas coisas significativas para se fazer, e ficam nossos adolescentes e jovens enfiados em apostilas que tentam tornar fáceis e divertidas matérias inúteis e no entanto indispensáveis por aquelas cinco horas. E para nunca mais.

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Em Salto, 7 de Fevereiro de 2016

O Futuro da Escola na Sociedade da Informação – V

[ Abaixo, a segunda parte do terceiro capítulo do meu livro Tecnologia e Educação: O Futuro da Escola na Sociedade da Informação, cuja história é parcialmente descrita no primeiro post desta série. Esclareço, para facilitar a vida do leitor, que este livro foi escrito há quase exatamente 17 anos, nos meses de Novembro e Dezembro de 1998, a pedido do PROINFO, Programa de Informática na Educação do Ministério da Educação, que estaria publicando, em prazo curtíssimo, uma coleção de 20 livros sobre o tema “Informática para Mudança na Educação”. Para o resto da história, por favor, leia o início do primeiro post da série. Trata-se, portanto, de um texto “datado”, porque poucas coisas mudam tão rápido na nossa sociedade como a tecnologia. Infelizmente, a educação muda, quando muda, muito devagar. Só mais uma observação: faltam algumas fotos de tela que não consegui transferir para cá. Vou continuar tentando.]

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III. O Computador na Escola – Parte B

1. Premissas Básicas
[Está na parte A deste Capítulo]

2. Modelos de Utilização do Computador na Escola
[Está na parte A deste Capítulo]

A. O Computador como Ensinante
[Está na Parte A deste Capítulo]

B. O Computador como Aprendente
[Está na Parte A deste Capítulo III]

C. O Computador como Ferramenta de Aprendizagem

Nesta seção discutirei o computador como ferramenta de aprendizagem. Dois tipos de programas serão discutidos: pacotes aplicativos genéricos e CD-ROMs contendo obras de referência (Enciclopédias, Dicionários, Corretores Ortográficos, Corretores Gramaticais, etc.).

a. Pacotes Aplicativos Genéricos

Vejamos agora algo sobre o uso, em contextos educacionais, de pacotes aplicativos genéricos, como processadores de textos, planilhas eletrônicas, gerenciadores de apresentações, gerenciadores de bancos de dados, etc.

Normalmente, não se considera o uso desses aplicativos como tendo importante significado pedagógico. Contudo, muitos educadores e muitas escolas têm concluído que seu uso não só é uma maneira interessante e útil de introduzir os alunos ao computador, como é um excelente recurso para prepará-los para o uso regular do computador em suas vidas.

Mas o uso desses aplicativos pode ter significado pedagógico ainda mais profundo. Projetos pedagogicamente importantes podem ser desenvolvidos com o auxílio desses pacotes.

PROCESSADORES DE TEXTO E ASSEMELHADOS

Tomemos como exemplo, inicialmente, um processador de textos, como Microsoft Word.

Um adulto, quando redige profissional ou semi-profissionalmente, normalmente faz, primeiro um esboço, depois um rascunho, daquilo que vai escrever. Feito o rascunho, este é aprimorado, às vezes por um bom tempo. É fato normal para adultos que a primeira versão de um texto não saia perfeita, não seja vista como adequada, e precise ser modificada, alterada, aprimorada. Antes da versão final raramente um adulto que escreva profissionalmente se preocupa demasiado com a ortografia das palavras ou mesmo com sua sintaxe. Mesmo que um revisor profissional não vá fazer isso para ele, o autor geralmente deixa para o fim a tarefa de garantir que o texto saia sem erros ortográficos e sintáticos. É nesse momento, também, que ele verifica suas referências e dá, no texto, uma conferida geral.

Quando se trata de crianças aprendendo ou treinando redação nas escolas, porém, espera-se (ou pelo menos assim parece) que elas escrevam textos que tenham um conteúdo razoável, que estejam corretos ortográfica e gramaticalmente, e que exibam uma apresentação aceitável ¾  e isso tudo em uma primeira (geralmente única!) versão, realizada, às vezes, em tempo determinado e limitado!

Freqüentemente se esquece, nesse contexto, de que, para crianças mais novas, o ato físico de escrever é penoso e vagaroso. Desenhar as letras, até que se adquira prática, não é algo que se faça automaticamente ou com facilidade. Além disso, espera-se que a criança não erre na ortografia, nem na concordância, nem na regência, nem na colocação dos artigos e dos pronomes. Por fim, espera-se que a letra seja bonita, que o uso da borracha não deixe borrões, que o papel não fique amassado nem com orelhas, etc.

Com todas essas imposições e limitações, a criança acaba se concentrando nas exterioridades do ato de escrever e (compreensivelmente) se descuidando do conteúdo. Além disso, por não ter condições de revisar seu texto com facilidade, a criança acaba não desenvolvendo o “olho crítico” exigido de bons escritores.

Note-se que freqüentemente a criança não tem a menor dificuldade para contar oralmente um caso ou uma história. Ela em regra já se tornou perfeitamente competente no manejo da linguagem oral na época em que é alfabetizada e começa a aprender a redigir. O problema, portanto, não é falta de idéias e nem mesmo da capacidade de expressá-las. Isso a criança faz bem. O problema está em transformar as suas idéias em linguagem escrita, ou seja, em texto. E parte desses problemas diz respeito às condições em que a criança é forçada a produzir um texto, que são totalmente artificiais — não tendo a menor semelhança com as condições em que um adulto produz um texto profissionalmente (ou mesmo não profissionalmente).

A maioria desses fatos se altera radicalmente quando a criança tem acesso a um bom processador de texto. Com ele a criança não precisa se preocupar o tempo todo com caligrafia, rasuras e a apresentação do texto. Se o programa tem um verificador de ortografia, um divisor de sílabas, e um analisador gramatical, até a preocupação com ortografia e sintaxe pode ser provisoriamente eliminada do horizonte das preocupações da criança. A criança pode, no ato de redigir, concentrar-se na tarefa de encontrar alguma coisa para dizer e de dizê-la de forma interessante. Se não gostou do que escreveu da primeira vez, pode alterar sua redação até que esta fique de seu agrado. O texto impresso sempre sairá limpo e bonito, não importa o número e a natureza das alterações feitas. E tudo isso é acontece de maneira simples, e por que não, até divertida.

A experiência tem mostrado que crianças que têm dificuldades com redação podem, através do uso de um processador de textos, passar, em poucas semanas, de uma total rejeição da atividade de redação para um total envolvimento nessa tarefa, além de mostrar sensíveis melhoras na qualidade dos textos produzidos. Mudanças ainda mais sensíveis poderão ser observadas no caso de crianças portadoras de alguma deficiência física, que torna a escrita difícil ou mesmo impossível.

Depois que a criança já aprendeu a exprimir o que tem a dizer de forma escrita com facilidade comparável à que tem para dizê-lo oralmente, daí é a hora de incentivá-la a dominar melhor, sem auxílio da tecnologia, as ferramentas do ofício de escrever: a ortografia, a sintaxe, o estilo. É bem provável que, tendo desenvolvido o gosto pela escrita, ela nesse momento chegue a apreciar a importância de elaborar um texto correto e interessante.

Receiam, em geral, os professores, entretanto, que se a criança começar a redigir sem conhecer as regras de ortografia e sintaxe, e que se o computador se encarregar de corrigir os seus textos, ela nunca vai aprender a escrever corretamente sem o auxílio do computador. ílio do computador.

A esse tipo de colocação poder-se-ia retorquir que, pelos métodos tradicionais, a criança não aprende a redigir corretamente porque a maior parte das vezes nem sequer aprende a redigir. Mas esse seria um argumento um pouco fácil demais, embora aponte para o importante fato de que, mesmo sem o processador de texto, a maioria das crianças completa sua educação básica na escola sem saber o suficiente de ortografia e sintaxe, para não falar de estilo, e sem dominar técnicas de redação. Com o processador de texto é possível que mais alunos venham a dominar a arte de redigir, mesmo que precisem recorrer à máquina para corrigir seus erros gramaticais.

A questão mais importante que essa discussão levanta, entretanto, é a seguinte: a partir de que momento, na vida do aluno, é realmente essencial, hoje em dia, que ele aprenda escrever ortográfica e sintaticamente correto sem o auxílio do computador?

Note-se que não se está propondo que ele não precise aprender ortografia e sintaxe: está se admitindo que é importante que ele domine essas áreas, porque eventualmente pode estar distante de um computador, ou pode faltar eletricidade, etc. Além disso, mesmo que a grafia não transpareça necessariamente na fala, ela tem na pronúncia a sua contrapartida, e a sintaxe é visível (isto é, audível) na linguagem oral. Por isso, é preciso que o aluno, além de escrever corretamente, saiba falar corretamente [1] — e até agora nenhum computador foi inventado que corrija nossa pronúncia e os erros de sintaxe de nossa fala. O que se está indagando é quando é que o aluno deve vir a dominar a gramática no processo de aprendizado da redação. A tese que aqui se defende é a de que o aluno deve primeiro tomar o gosto por escrever e saber descrever as idéias que tem — a preocupação com a forma deve vir depois.

Note-se que discussão semelhante se pode travar em relação ao uso da calculadora no aprendizado de matemática. O que é mais importante: saber raciocinar e ser capaz de determinar quais operações são necessárias para a solução de um problema, ou aprender os algoritmos necessários para fazer as operações aritméticas, extrair raiz quadrada, etc.? A tese que aqui se defende, coerentemente com a que se defendeu no parágrafo anterior, é a de que dominar o processo de raciocínio é mais importante do que saber realizar as operações sem erro e sem o auxílio de uma calculadora. Quando o aluno tiver dominado o processo de solução de problemas, provavelmente ele mesmo se interessará por dominar os algoritmos necessários para realizar as operações. De qualquer forma, hoje em dia uma calculadora vai, com toda probabilidade, sempre estar ao seu alcance.

Isto posto, não resta dúvida de que toda tecnologia nos torna menos hábeis no uso de uma habilidade física ou mental que antes tínhamos. Como já se mostrou no primeiro capítulo, Sócrates reclamou da escrita, dizendo que ela iria prejudicar nossa memória. Provavelmente Sócrates estava absolutamente correto em sua afirmação de que nossa memória iria sofrer com a escrita: hoje não precisamos confiar tantas coisas à nossa memória, nem confiar tanto em nossa memória, quanto antigamente, porque podemos sempre recorrer a anotações, a diários, a agendas, a livros, a bases de dados, a computadores, à Internet, etc. Os alunos da Antigüidade ou mesmo da Idade Média, não tendo essas ajudas tecnológicas, tinham que depender exclusivamente de sua memória — e ela, conseqüentemente, era muito mais exercitada do que a nossa.

O automóvel tem feito com que andemos muito menos do que antes andávamos — em muitos casos, com sérios prejuízos para nossa saúde. Pessoas de locais onde o automóvel (ou algum meio de transporte público) não é amplamente utilizado, acham difícil de compreender que nas grandes cidades as pessoas se imponham o hábito de andar, sem destino algum, ao redor de um lado ou de um parque, apenas para manter a forma. Antigamente isso não era necessário porque as pessoas andavam o suficiente na realização de seu trabalho e de seus outros afazeres. A tecnologia, porém, tornou desnecessário andarmos tanto em nosso trabalho e em nossos outros afazeres. Por isso, para que nossa saúde não sofra, andamos sem destino algum, só por andar, por causa apenas do exercício.

Carrinhos que nos ajudam a carregar mercadorias no supermercado ou na feira, malas nos aeroportos e estações ferroviárias e rodoviárias, e, em casa, objetos pesados de um lado para outro também contribuíram para que ficássemos menos fortes e mais flácidos.

Como vimos, a tecnologia sempre foi, desde o início, inventada e usada para estender e aumentar os poderes do homem, facilitar seu trabalho ou sua vida, ou simplesmente lhe trazer maior satisfação e prazer.

Quando se fala em estender ou aumentar os poderes do homem, alguém poderia retorquir que, nos exemplos dados, a tecnologia estaria encolhendo e diminuindo os poderes do homem. O argumento deixa de levar em conta o fato de que o homem hierarquiza os seus poderes.

A escrita e a impressão podem até reduzir a capacidade de memorização do homem, mas estendem e aumentam, de maneira fantástica, sua capacidade de aceder à informação, de armazená-la, de transmiti-la — e isso, para ele, é mais importante e valioso do que reter a informação na memória.

O processador de texto pode até reduzir a capacidade de o homem invocar, de memória, a forma correta de uma palavra ou sentença, mas aumenta e estende sua capacidade de escrever, de exprimir-se, de colocar no papel aquilo que tem a dizer — e isso, para ele, é mais importante e valioso do que o conhecimento de regras gramaticais.

O automóvel pode até prejudicar nossa forma física se não contrabalançarmos o seu uso com algum exercício, mas aumenta e estende nossa capacidade de locomoção — e isso é mais importante e valioso para o ser humano do que a ausência de exercício provocada pelo automóvel.

E assim por diante.

Vejamos, agora, um outro uso de processadores de texto — embora ele não seja de todo dissimilar, porque, afinal, processadores de texto são usados para — processar texto!

Em uma classe de Língua Portuguesa, pode-se gastar um certo número de semanas, ou até mesmo um semestre inteiro, desenvolvendo, nos momentos em que se tem acesso ao computador, um projeto de jornal da classe.

Registre-se, inicialmente, que parte desse projeto pode ser desenvolvida longe do computador. O objetivo básico de um projeto de elaboração de jornal da classe não é ensinar tecnologia, mas, sim, ensinar os alunos a usar (como leitores e como editores) o meio de comunicação impresso. Para isso, parte do projeto deve envolver a leitura e a análise de jornais, para que os alunos venham a entender o que é um jornal, perceber o diferencial da redação jornalística (que difere, fundamentalmente, da narração de ficção, da redação científica, etc.). Os alunos devem entender que a vida útil de um jornal é efêmera, porque normalmente ninguém lê jornal velho, ainda que de apenas um dia. O professor pode comparar essa característica do jornal diário com a de revistas semanais, quinzenais, e mensais, bem como com o fato de que alguns livros continuam a ser lidos dois mil anos depois de haverem sido escritos e publicados pela primeira vez! A noção de “notícia” pode ser introduzida nesse contexto. Os alunos, ao longo desse exercício, devem aprender a distinguir as diferentes seções de um jornal: primeira página, ou seção de chamadas, editoriais, artigos assinados, colunas, entrevistas, reportagens sobre os eventos do dia anterior (na área política, econômica, social, criminal, esportiva, etc.), pequenas notícias, reportagens de fundo sobre assuntos de permanente interesse, entrevistas, quadrinhos, cadernos especializados (economia, esportes, cultura, ciência e tecnologia, agricultura, etc.), informações (cinemas, teatros, etc.), coluna social, classificados, e assim por diante. Durante a leitura dos jornais o professor deve chamar a atenção dos alunos para o estilo redacional do jornalista, mostrando que deve ser sucinto, objetivo, começar com a informação mais importante para captar a atenção do leitor, e ir desdobrando o assunto do essencial para o acessório, do fundamental para o detalhe, assim permitindo que quem leia apenas o primeiro parágrafo saiba o que realmente precisa saber sobre o assunto e que outros, que desejam maior profundidade, possam obtê-la, no nível desejado. Ainda nessa linha, o professor deve destacar a importância das manchetes, dos “olhos”, dos “boxes”, das fotografias, das ilustrações, etc. Neste ponto, o professor pode mostrar aos alunos como cada jornal tem seu próprio estilo visual e padrão gráfico. Se houver à disposição, o professor pode mostrar aos alunos os Manuais de Estilo e Redação dos principais jornais, para que os alunos se dêem conta de quão importantes são essas normas para manter a coerência de linguagem dos jornalistas. Neste processo o professor pode comparar como dois ou três jornais relatam a mesma notícia de forma diferente, mostrando as diferentes ênfases, nuances, e eventuais tendenciosidades. Na discussão o professor pode mostrar que os diferentes estilos de jornal em regra se relacionam com a o tipo de leitor do jornal, pode discutir com os alunos porque uma empresa como a Folha da Manhã publica dois jornais tão diversos quanto a Folha de S. Paulo e o Notícias Populares. O professor pode ainda mostrar aos alunos o papel das Agências de Notícias, de correspondentes nacionais e estrangeiros, de colunas que aparecem em vários jornais, do acesso a bancos de dados e sistemas de informação para ajudar os jornalistas a escrever suas matérias, da existência de bancos de fotografias e imagens, etc. Por fim, o professor pode discutir com os alunos as mudanças que estão sobrevindo aos jornais com a popularização da Internet, e mostrar a eles como os principais jornais brasileiros estão na Internet, uns de graça, outros pagos. Tudo isso é extremamente importante para que os alunos entendam o papel dos meios de comunicação impressos e como eles estão, hoje em dia, convergindo para os meios de comunicação digitais. Com isso se chega ao papel da tecnologia no processo de elaboração, impressão e distribuição de jornal. Havendo possibilidade, o professor pode agendar uma visita da classe a um jornal local, para que os alunos fiquem conhecendo, de primeira mão, como é feito, impresso e distribuído um jornal.

Ao mesmo tempo em que vão aprendendo a ler e a conhecer os jornais, os alunos vão planejando o seu próprio jornal. Planejar, no caso, envolve decidir se o jornal vai se voltar para a própria classe, para a escola, em geral, se terá matérias de interesse dos professores e dos pais, ou mesmo da comunidade em geral; definir quais as seções que o jornal vai conter e quem vai se responsabilizar por elas; estipular prazos para que os vários grupos colham seu material; escolher um estilo e padrão gráfico para o jornal, etc. Nesse momento devem ser escolhidos alunos para ocupar funções específicas, como redatores, revisores, digitadores, diagramadores, repórteres de campo, colunistas, responsáveis por seções ou assuntos específicos, etc.

É no momento da execução ou implementação do planejado que a tecnologia será de grande ajuda. Se os computadores disponíveis possuírem agendas ou gerenciadores de projetos, todos os eventos necessários para a publicação do jornal na data definida podem ser agendados e o fluxo do trabalho pode ser analisado para que se detectem eventuais pontos críticos, gargalos, sobrecargas de trabalho, etc. Os responsáveis pela digitação e diagramação, bem como pelas ilustrações e pelo tratamento de imagens, devem se familiarizar com suas ferramentas, se ainda não as dominam suficientemente bem. Se a escola possuir recursos para esse fim, pode-se adquirir uma câmera fotográfica digital para que sejam feitas fotografias de pessoas entrevistadas e que figurem na coluna social (se houver). Os responsáveis pela impressão poderão tomar as providências necessárias junto à gráfica da escola ou junto à gráfica que a escola indicar para imprimir o jornal — supondo que tenha tiragem que justifique imprimi-lo por meios convencionais e não pela impressora da escola.

Ao lidar com esses aspectos os alunos estarão aprendendo a dominar importantes ferramentas de trabalho — os softwares específicos. Mas os softwares estarão entrando no processo como as ferramentas que são: a ênfase está no domínio das habilidades e competências necessárias para criar um jornal, ou seja, para usar um meio de comunicação impresso para informar, orientar, persuadir ou entreter as pessoas.

Nesse processo os alunos estarão também se envolvendo com vários conteúdos, fato que torna esse projeto verdadeiramente interdisciplinar. Uma reportagem pode ser sobre a poluição do ambiente na cercania da escola — e os responsáveis terão forçosamente que lidar com questões relacionadas ao meio ambiente. Uma entrevista pode ser com um profissional de saúde sobre moléstias sexualmente transmissíveis, ou cuidados com alimentação, ou a necessidade de exercícios. Um acidente de trânsito que tenha acontecido próximo da escola, ou em que algum aluno tenha se envolvido, pode ser objeto de uma outra reportagem, que vai ensinar aos que se envolverem com a sua elaboração importantes princípios sobre segurança de trânsito. O guarda que cuida do trânsito na frente da escola (se houver) pode ser entrevistado no processo. A festa Junina da escola pode ser objeto de uma pesquisa sobre feriados religiosos e tradições folclóricas. E assim por diante.

É possível, também, usar esse tipo de projetos para aprender história, por exemplo. Um projeto interdisciplinar interessante seria fazer com que os alunos escrevam um jornal do passado. Num curso de história da Renascença e da Reforma, os alunos poderiam elaborar um jornal descrevendo um evento importante, como a convocação de Lutero para comparecer ao “Reichstag”, reunido em Worms, em Abril de 1521, diante do Imperador Carlos V. Uma reportagem descreveria o evento, como se o jornalista lá estivesse; um outro jornalista faria uma entrevista exclusiva com Lutero, explorando como ele se sentiu quando se recusou a retratar-se e disse ao Imperador: “Não posso agir de outra forma; aqui permaneço — Deus me ajude. Amém”; outro jornalista entrevistaria o núncio papal, para verificar como a Santa Sé reagiria ao pronunciamento de Lutero; ainda um outro entrevistaria Frederico, o Sábio, príncipe (“Eleitor”) da Saxônia, para explorar as implicações políticas da posição de Lutero para o posicionamento da Alemanha no Império; um artigo explicaria os eventos que levaram Lutero até ali; um artigo de fundo discutira os antecedentes da Reforma Protestante, apresentando proto-reformadores como João Huss e João Wyclif, bem como humanistas como Erasmo e o autor de Utopia, Tomás Morus; outro artigo de fundo poderia listar as práticas e doutrinas da Igreja Católica que levaram Lutero, originalmente um monge, a protestar; uma reportagem poderia investigar a popularidade de Lutero junto à população; um colunista poderia especular sobre o que Lutero, o Imperador, o Eleitor da Saxônia e a Igreja Católica fariam, a partir dali; um “box” poderia dar a cronologia dos eventos. E assim por diante. No processo, os alunos aprenderiam bastante história — de uma maneira bem mais interessante do que a tradicional; aprenderiam a fazer um jornal; e aprenderiam a usar Microsoft Word.

Projetos como os descritos abrangem várias habilidades e competências e, como visto, podem cobrir vários conteúdos. A familiarização com a tecnologia, aqui, se encaixa num contexto em que fica perfeitamente claro que a tecnologia é ferramenta, é meio, e que ela foi inventada para nos ajudar a fazer, de forma mais fácil, mais eficiente, mais eficaz e até mais agradável aquilo que temos que fazer.

GERENCIADORES DE APRESENTAÇÕES

Um gerenciador de apresentações, como Microsoft PowerPoint, é um software que nos ajuda a preparar transparências ou slides que venham a fazer parte de uma apresentação e que nos ajuda a fazer essa apresentação em público, exibindo as transparências ou slides na ordem ou seqüência desejada.

Da mesma forma que se ressaltou na seção anterior, o objetivo primeiro aqui não deve ser  aprender a usar o gerenciador de apresentações, mas, sim, entender o que é uma apresentação, como é que ela é elaborada, para que servem os apoios visuais representados por transparências e slides, e, eventualmente, os apoios audíveis representados por clips de som, efeitos sonoros especiais, etc.

Assim, o eventual aprendizado de como usar um gerenciador de informações deve ser feito no bojo de um projeto.

Imaginemos que o projeto possa ser preparar uma palestra sobre o Brasil para um grupo de estudantes estrangeiros. Pode-se imaginar, dependendo da escola, que os alunos vão passar um semestre de intercâmbio numa escola estrangeira e lá vão se lhes vai solicitar que façam a referida palestra. Ou pode-se imaginar que os alunos estão elaborando uma apresentação sobre o Brasil para alguém (o Diretor da escola, o Secretário da Educação do município, etc.) apresentar no exterior durante o curso de uma visita. Ou algo que o valha.

O importante aqui é começar familiarizando os alunos com apresentações. Um jornal, como vimos na seção anterior, é um meio de comunicação escrito. Uma apresentação é um meio de comunicação oral. Por isso, é importante que os alunos conscientemente assistam a algumas apresentações para observar e anotar como são feitas. Pode-se solicitar a um conferencista traquejado que faça para classe uma apresentação que normalmente faz para outras audiências. Ou pode-se instruir os alunos para que prestem atenção nas apresentações que o padre ou o pastor faz, na igreja, quando prega o seu sermão. Ou, naturalmente, pode-se pedir aos alunos que prestem atenção às aulas de seus professores — pelo menos agora eles terão uma boa razão para prestar atenção, não é mesmo?

É importante indicar para os alunos alguns dos aspectos aos quais eles deverão prestar atenção. Toda apresentação tem um tema ou um assunto. Algumas até têm um título explícito. Os alunos devem ser capazes de descobrir, apenas assistindo a uma apresentação, qual o seu tema ou assunto, ou qual seria o seu título, se ela o tivesse. Dois outros aspectos que merecem atenção em uma apresentação são o princípio e o fim. É difícil, mas essencial, criar um bom começo para uma apresentação: é ali que se cria o clima de comunicação com a audiência. Muitos apresentadores gostam de iniciar com uma historieta engraçada, para captar a atenção da audiência. Outros gostam de começar a apresentação com uma frase cheia de impacto — às vezes até chocante. Uma apresentação sobre o assunto deste texto para um grupo de professores poderia começar com esta frase: “Vou mostrar para vocês hoje que a escola está morta — apenas não foi enterrada ainda”. Inícios como este são arriscados — eles certamente chamam a atenção da audiência, mas podem, também, irritar e alienar vários dos presente. É preciso ter muito cuidado com frases assim. Até se mostrar, geralmente no final da apresentação, o que se quer dizer com a frase, o apresentador pode ter perdido boa parte da audiência. Alguns podem até se levantar e ir embora, dependendo do impacto negativo da frase. Depois do início, a parte mais difícil de uma apresentação é o término. A apresentação deve se encerrar com uma mensagem clara, sucinta, geralmente positiva, de que a audiência possa se lembrar por um tempo — o ideal seria para sempre. Muitos apresentadores sem prática terminam numa nota chocha. Outros parecem não saber como terminar e ficam se repetindo, dando a impressão de que estão tentando enrolar a audiência. Por isso, é preciso preparar bem o término: como numa ópera ou num concerto, a conclusão deve ser feita em grande estilo — sem exageros, mas de forma a causar impacto.

No entanto, o princípio e o fim vão ocupar apenas no máximo uns 10% do tempo alocado para a apresentação: o resto é o “meio”, a substância. Aqui é preciso mostrar aos alunos que a apresentação tem que ter objetivos claros e bem definidos, para que se possa saber o que incluir no corpo da fala, e o que deixar fora.

Com objetivos claros e bem definidos é possível listar os tópicos principais, sempre partindo de cima para baixo. Existem alguns grandes tópicos em que a apresentação se divide? Digamos que, no caso da apresentação sobre o Brasil, queiramos falar sobre aspectos naturais (tamanho do país, posição na América Latina, a grande costa e as praias, as cataratas do Iguaçu, os principais rios, etc.), a divisão política (número de regiões e estados, organização política, etc.), demografia (a população e sua distribuição e composição racial, a pirâmide populacional, a população economicamente ativa, a distribuição da renda, etc.), a flora e fauna (Floresta Amazônica, Pantanal, etc.), aspectos culturais (carnaval, futebol, principais religiões, etc.). Feito isso os grandes blocos da apresentação estão definidos e os principais sub-blocos já estão sugeridos. A seguir é preciso atacar cada sub-bloco. O que se vai falar sobre o tamanho do país? Vai se comparar o seu tamanho com o tamanho de outros países grandes, como os Estados Unidos, o Canadá, a Índia? Vão ser usados mapas? Vai se mostrar o quanto da América do Sul o Brasil ocupa? E assim vai. O mesmo deve ser feito com cada sub-tópico.

Em todo esse processo o professor precisa orientar os alunos acerca dos princípios que regem a organização lógica do material a ser apresentado. Isso é importante. Mas também importante é manter em mente os aspectos, digamos, retóricos da apresentação, isto é, o fato de que ela deve engajar e prender a atenção da audiência, comunicar algo importante a essa audiência, e, por fim, convencê-la de que aquilo que foi dito é verdadeiro, ou, pelo menos, razoável e crível. O professor deve mostrar a diferença entre lógica e retórica, entre aquilo que prova e aquilo que persuade. Muita falácia é extremamente persuasória e muito argumento impecável deixa de persuadir, e isto porque as pessoas aceitam ou deixam de aceitar uma determinada tese nem sempre, ou não tanto, em função de argumentos, mas em função de outros fatores. Dependendo da faixa etária dos alunos, algumas dessas questões podem ser discutidas com proveito.

Em seguida é preciso chegar ao nível do conteúdo mais específico, que vai aparecer em cada transparência. Ë preciso, aqui, que o professor oriente os alunos para o fato de que uma transparência ou slide não pode ter muito texto: deve, sim, em regra, conter apenas tópicos que organizem o assunto para a audiência e sirvam de orientação para o apresentador. Este não deve nunca ficar lendo grandes quantidades de texto da transparência. Em termos do número máximo de tópicos que deve figurar em uma transparência, há razoável consenso de que sete é o limite, cinco sendo o recomendável. O professor pode discutir com os alunos porque é que a mente humana não consegue reter muito mais do que cinco tópicos simultaneamente.

Pronto (ainda no papel) o conteúdo de cada transparência é preciso rever o material, a seqüência, etc., garantir que tudo está em ordem e se encaixa. Tudo estando certo, agora é a hora de começar a trabalhar com o gerenciador de apresentações. Entre as tarefas a serem realizadas está a definição de uma transparência mestre, que vai definir o estilo (cor de fundo, cor de letra, fonte, tamanho de letra, etc.) de todas as outras, dos efeitos de transição de uma transparência para outra (é preciso ser comedido aqui e não variar de efeito de transição a cada transparência), dos efeitos sonoros especiais (aqui, mais cuidado ainda: nada irrita tanto do que barulhinhos que nada acrescentam, só distraem a audiência), animações, etc.

Preparada a apresentação, é preciso ensaiá-la: ver se tudo está como deveria estar, medir o tempo que se leva para ir do começo ao fim, verificar se não acontecem coisas inesperadas, etc. É aqui que se detecta se o apresentador não comete erros de pronúncia, se não tem dificuldades na dicção de determinadas palavras, se não se enrosca com nomes próprios, etc. É aqui que se determina, também, se a apresentação não está monótona, em função do tom de voz do palestrante, ou cansativa, em virtude do seu timbre, etc. Cuidado especial deve ser tomado com as chamadas “pausas sonoras”, os “nés”, os “ãs”, os “entendes” e, também, com a linguagem corporal: postura, gestos, trejeitos, etc. Esse contexto é especialmente adequado para a discussão de muitas questões importantes para quem vai falar em público e para quem se interessa pelo processo de comunicação.

O segredo de uma boa apresentação está no preparo de quem a faz: se ele conhece bem o assunto e está bem ensaiado, meio caminho já está andado.

Da mesma forma que concluímos no final da seção anterior, ao longo do processo de preparação, e elaboração e realização de uma apresentação os alunos aprendem habilidades e competências importantes na área de comunicação oral e, especialmente, de comunicação em público que podem lhes ser de utilidade para o resto da vida. Além disso, vão precisar se enfronhar bem em uma série de conteúdos de outras disciplinas curriculares (no caso, geografia física e humana), fato que faz desse projeto um projeto interdisciplinar. Por fim, vão aprender a usar PowerPoint — como a ferramenta que PowerPoint é, não como um fim em si.

PLANILHAS ELETRÔNICAS

Uma planilha eletrônica é um software que permite que a tela seja dividida em um conjunto de linhas e colunas, com as quais é possível realizar os mais variados cálculos (não só aritméticos, mas estatísticos, de matemática financeira, etc.). Parece pouco provável que um software desse tipo, voltado principalmente para pessoal de finanças, possa interessar alunos em sala de aula. Entretanto, se for concebido um projeto interessante, para cujo desenvolvimento uma planilha é necessária, os alunos podem se beneficiar, e muito. Microsoft Excel é o software mais popular dessa categoria.

Um projeto interessante, especialmente para alunos do Ensino Médio, seria simular o funcionamento de um pequeno negócio, para que os alunos pudessem entender como se define, por exemplo, o ponto de equilíbrio, no qual o negócio não dá prejuízo mas ainda não dá lucro. Esse projeto familiarizaria os alunos com uma série de conceitos importantes na sociedade de hoje, os ajudaria a entender notícias acerca da situação econômico-financeira das empresas do país, e os prepararia para lidar com esse tipo de problema quando estiverem fora da escola, seja como empregados, seja, um dia, possivelmente, como empresários.

Para isso, a melhor estratégia é começar com algo pequeno, dentro da realidade dos alunos. Digamos que grupos de alunos possam ser formados para, cada um deles, definir a viabilidade de um pequeno negócio. Digamos que um caso típico seja a montagem de um carrinho de para vender cachorro quente na frente da escola.

Para isso, há, primeiro, que planejar. Alguns alunos são encarregados de pesquisar o preço de um carrinho que possa ser usado para vender cachorro quente, um guarda-sol, uma banqueta, etc. (materiais permanentes e, portanto, investimentos). Outros alunos são encarregados de averiguar os preços de salsicha, pão, mostarda, molho de tomate, refrigerantes, etc. (materiais de consumo). Neste caso, é recomendável que verifiquem a variação dos preços em função da quantidade, consultando, para tanto, empresas que vendem no atacado. Um terceiro grupo de alunos é encarregado de verificar junto à Prefeitura e em outros órgãos governamentais, quais os procedimentos a serem seguidos, e as taxas a serem pagas, para poder abrir um negócio desse tipo na frente da escola. Se algum aluno tiver um pai ou um parente que seja Contador o trabalho é extremamente facilitado aqui. A mesma fonte poderá informar acerca de eventuais custos mensais regulares, incluindo impostos e taxas.

Levantados os custos e outras exigências burocráticas, é preciso, agora, começar a trabalhar em cima de projeções sobre o número de cachorros quentes que será possível vender por dia, nos diferentes meses do ano. É preciso levar em conta, nessa análise, os meses de férias, em que provavelmente não se venderá quase nada, os fins de semana e os feriados, em que o movimento provavelmente será menor — a menos que a escola esteja perto de algum outro local que atraia as pessoas (como um quarteirão comercial, um shopping, etc.

Com esses dados em mãos é possível começar a preparar uma planilha em Microsoft Excel para calcular as despesas fixas (prestações do carrinho, por exemplo) e os custos variáveis (o custo de tudo aquilo que vai na preparação de um cachorro quente mais o custo de um refrigerante). Digamos que no primeiro ano de operações haja uma despesa fixa de 175,00, que é o pagamento da prestação do carrinho. Além disso, constata-se que, se esses produtos forem comprados em quantidades mínimas de 500 unidades, uma salsicha sai por 0,10, um pãozinho por  0,05, e um refrigerante em lata por 0,30. Estima-se que se gaste mais 0,05 por cachorro quente para mostarda, molho de tomate, guardanapo e um plástico para que o molho não escorra nas mãos e nas roupas do cliente. Assim, percebe-se que o custo unitário de um cachorro quente e um refrigerante é de 0,50 (comprando-se os insumos em lotes de 500 — o que exigira um capital de giro inicial da ordem de 250,00). Uma pesquisa na concorrência mostra que o preço praticado para um produto desse tipo é 1,25 para o cachorro quente e  1,00 pelo refrigerante. Assim, seguindo esse preço, provavelmente será possível vender um cachorro quente e um refrigerante por 2,25. O lucro bruto por unidade, será, portanto, de 1,75. Como a despesa fixa foi projetada em 175,00 mensais, percebe-se que será necessário vender 100 cachorros quentes e refrigerantes por mês para cobrir essas despesas. Se deixarmos de lado outras despesas que não foram computadas (impostos e taxas mensais, ida até fornecedores para comprar material, armazenamento do estoque, etc., para não falar no tempo de quem vai operar o carrinho, que se presume seja o proprietário), 100 cachorros quentes por mês representam o ponto de equilíbrio. Se, num dado mês, forem vendidos apenas 100 cachorros quentes, o proprietário do carrinho empata: não tem prejuízo, mas também não tem lucro, naquele mês. Se ele vender menos, tem prejuízo; se vender mais, tem lucro. (Como nos meses de férias provavelmente o movimento será menor ou mesmo nulo, mas as despesas fixas continuarão, é preciso elevar um pouco esse ponto de equilíbrio para que possa haver reserva de caixa para os meses em que não for possível gerar receita suficiente para cobrir as prestações do carrinho).

Com base nesses dados, e supondo que um mês tenha 20 dias úteis, o proprietário do carrinho tem que vender, em média, 5 cachorros quentes por dia útil para empatar. Parece fácil.

É possível fazer uma pesquisa de mercado entre os colegas da escola inteira, para ver quantos teriam interesse de comprar um cachorro quente e um refrigerante por 2,25, e quantas vezes por mês acham que o fariam. A mesma pergunta poderia feita mudando o preço para 2,00. (Já que está se fazendo uma pesquisa de mercado, é possível também perguntar que outro produto os potenciais clientes gostariam que o carrinho de cachorro quente vendesse: salgadinhos, chocolates, doces, etc. Assim já se começa a pensar na expansão e diversificação do negócio).

Imaginemos que, com base na pesquisa feita entre os colegas, se constate que é viável vender uma média de 20 cachorros quentes e refrigerantes por dia útil por 2,25 e 25 cachorros quentes e refrigerantes por dia útil por 2,00. O que seria mais interessante?

A planilha de Microsoft Excel, que já deve ter sido usada para armazenar e manipular as informações coletadas, pode agora ser usada para fazer simulações:

  1. Se forem vendidos em média 20 cachorros quentes e refrigerantes por dia útil, num mês de 20 dias úteis, ao preço de 2,25 cada “pacote”, o lucro bruto, ao final do mês, será de 525,00, ou seja, de 58,33% da receita bruta de 900,00.
  2. Se forem vendidos em média 25 cachorros quentes e refrigerantes por dia útil, num mês de 20 dias úteis, ao preço de 2,00 cada “pacote”, o lucro bruto, ao final do mês, será de 575,00, ou seja, 57,50% da receita bruta de 1.000,00.

Ou seja: vale mais a penas cobrar menos e vender mais — princípio importante para quem está num negócio como esse. E por aí se vai. Naturalmente, nem todos os professores vão querer usar um exemplo assim tão descaradamente capitalista. Mas não há como negar que nossa sociedade é capitalista e mesmo os vendedores ambulantes precisam fazer esse tipo de cálculo para não quebrar. Assim, não parece haver dúvida de que o projeto tem méritos, em termos da educação dos alunos, e o aprendizado de Microsoft Excel está embutido, como meio, numa discussão bastante interessante.

Na verdade, Microsoft Excel poderá até ser usado para responder a perguntas mais interessantes:

  1. Quantos cachorros quentes e refrigerantes precisariam ser vendidos, em média, por dia útil, a 2,00 o pacote, para se ter um lucro mensal de cerca de 1.500,00, por exemplo? Microsoft Excel possui fórmulas que fazem esse cálculo de maneira rápida e transparente. A resposta é 56 unidades. Nesse caso o lucro bruto seria de 67,16% sobre uma receita bruta de 2.233,33.
  2. Quantos cachorros quentes e refrigerantes precisariam ser vendidos, em média, por dia útil, a 2,00 o pacote, para se ter um lucro mensal de pelo menos 0,70% sobre a receita, por exemplo? Aqui também Microsoft Excel dá a resposta de forma rápida e transparente. A resposta é 88 unidades. Nesse caso o lucro bruto seria de 2.465,00 sobre uma receita bruta de 3.520,00.

Note-se que à medida que as vendas sobem, o peso relativo das despesas fixas (175,00 por mês) diminuem ao ponto de quase não ter mais significado prático. No último exemplo, vimos que para ter um lucro mensal de 70% sobre a receita bastaria vender 88 unidades por dia útil, em média. E para ter um lucro mensal de 75% sobre a receita, mantido o preço de 2,00 por unidade?

A resposta aqui é inesperada e assusta a ponto de parecer errada: a resposta é que nem que sejam vendidos mais de 100 milhões de cachorros quentes por dia útil o proprietário jamais terá um lucro mensal de 75% sobre a receita. A razão, passado o susto inicial, é fácil de ver. Os custos variáveis são de exatamente 25%. O ganho em cima de cada unidade é, portanto, de 75% do preço unitário de venda. Como, porém, é necessário abater despesas fixas mensais de 175,00, nunca o lucro bruto chegará a ser realmente 75% da receita, por menores que sejam as despesas fixas, desde que, naturalmente, elas existam.

Vendendo 438 unidades por dia útil, porém, se alcança um lucro bruto de 74%/ sobre uma receita de 17.520,00. Vê-se claramente por quê, não é verdade? O 1% de diferença entre 74% e 75% de 17.520,00 será exatamente 175,20, ou seja, um pouquinho a mais do que o necessário para abater as despesas fixas de 175,00!

Uma vez mais registre-se que o computador, num projeto como esse, entra como ferramenta. O objetivo do projeto não é ensinar informática — é ensinar alguma outra coisa. Um projeto assim confirma o princípio de que o importante não é “aprender a computar”, mas, sim, “computar para aprender”.

GERENCIADORES DE BANCOS DE DADOS

Gerenciadores de bancos de dados, como Microsoft Access, são programas extremamente úteis mas bem menos excitantes, de certa forma, do que os três que acabamos de ver. Um gerenciador de banco de dados permite que armazenemos dados no computador, gerenciemos esses dados (alterando-os, acrescentando dados novos, eliminando dados), selecionemos sub-conjuntos dos dados existentes, elaboremos relatórios, etc.

Um projeto interessante que pode ser desenvolvido envolvendo gerenciadores de bancos de dados é a organização e informatização do acervo da biblioteca da escola. A maior parte das escolas possui uma biblioteca, mas geralmente o acervo está meio desorganizado e cadastrado apenas em fichas de papel (quando tanto). Como as escolas, até mesmo as públicas, hoje começam a receber computadores, vários professores poderiam se reunir com o responsável pela biblioteca para montar um projeto interdisciplinar, envolvendo naturalmente os alunos, para cadastrar, no computador, o acervo, de modo que os usuários possam encontrar os livros de seu interesse mais facilmente. Normalmente um projeto desse pode ser desenvolvido apenas com um gerenciador de banco de dados, sem haver necessidade de programação. Um passo seguinte do projeto seria, naturalmente, desenvolver um programa que gerencie empréstimos e faça estatísticas de uso, mas esse projeto já é mais complexo, porque envolve programação.

Os méritos de um projeto como o indicado são muitos. Em primeiro lugar, a biblioteca da escola fica informatizada — mas esse não é o seu maior mérito. Em segundo lugar, os alunos se envolverão num projeto em equipe, sob a coordenação de professores e do responsável pela biblioteca. Em terceiro lugar, e mais importante, os alunos serão levados, sem que se sintam pressionados a isso, a se familiarizar com o acervo da biblioteca e a manusear os livros, para que possam determinar, em cada caso, a categoria em que o livro deve ser classificado. Com isso os alunos certamente vão encontrar livros que despertam seu interesse, com os quais dificilmente iriam travar conhecimento se não fosse pelo projeto. Alguns deles certamente desenvolverão o gosto pela leitura a partir do projeto. Muitos vão criar o hábito de freqüentar a biblioteca da escola com regularidade, porque ali estará sendo exibido o resultado de um esforço que foi em parte seu. Todos os anos o projeto pode ter continuidade, em formas um pouco diferentes. Os alunos podem fazer mutirões pela comunidade para coletar livros para a biblioteca. Os alunos podem escrever para editoras para solicitar doação de livros para a biblioteca. Depois de cadastrar e incorporar os novos livros ao acervo, os alunos (sempre sob a coordenação dos professores e do responsável pela biblioteca), poderão celebrar um Dia do Livro, para o qual convidarão toda a comunidade, que se sentirá motivada a atender o convite porque doou livros para a biblioteca. Um gráfico na parede pode indicar o crescimento do acervo da biblioteca desde o início do projeto. Nesse processo, o gerenciador de bancos de dados desempenha um papel pequeno — mas proporcional à sua função de ferramenta.

CONCLUSÃO

Programas aplicativos genéricos, apesar de não terem sido desenvolvidos com objetivos pedagógicos em vista, podem ser instrumentos poderosos e versáteis na área da educação. Se usados com inteligência e competência, podem tornar-se um excelente recurso pedagógico  à disposição do professor em sala de aula. De que maneira os professores os usarão depende, porém, de seu conhecimento do potencial desses programas, de sua criatividade e de sua filosofia de educação.

Alguns professores vão apenas ensinar os seus alunos a usar esses programas, como se aprender a usá-los fosse um objetivo pedagógico suficientemente valioso. Não resta dúvida de que é um objetivo pedagógico valioso — mas há outras formas de os alunos aprenderem a usar esses aplicativos que insere o seu aprendizado no bojo do desenvolvimento de projetos que, estes sim, contribuem para o desenvolvimento de habilidades e competências e para o domínio de conteúdos que, em seu conjunto, são extremamente valiosos do ponto de vista pedagógico.

Dado o fato de que os equipamentos inevitavelmente serão limitados na maioria das escolas, os professores deverão tomar decisões e definir prioridades para fazer desses equipamentos o melhor uso possível, do ponto de vista pedagógico. Para que essas decisões sejam tomadas com conhecimento de causa, é necessário que saibam o que esses programas podem e o que não podem fazer, o que pode ser feito melhor com o auxílio deles e o que pode muito bem ser feito sem eles. Só assim os professores farão o computador servir aos objetivos educacionais por eles fixados.

b. Obras de Referência

Hoje existem no mercado, em grande número, obras de referência que são de grande utilidade na educação, dentro e fora da sala de aula. Entre estas destacam-se dicionários, enciclopédias, corretores ortográficos, corretores gramaticais, conjugadores de verbo, tradutores, etc.

DICIONÁRIOS

Existem no mercado vários dicionários em CD-ROM. Esses dicionários geralmente são versões eletrônicas de obras conceituadas e bem conhecidas em sua forma impressa.

Há dicionários de Português (como o Aurélio), há famosos dicionários de línguas estrangeiras, como o Webster (Americano) e o Oxford (Britânico) para o Inglês, o Larousse e o Robert para o Francês, e outros.  Há também dicionários que traduzem de uma língua para a outra, como, por exemplo, o Michaelis, do Português para o Inglês e vice-versa.

Essas ferramentas são extremamente úteis, porque o acesso a elas, em seu formato impresso, é freqüentemente difícil e até mesmo canhestro. Valendo-se dos recursos de multimídia facilmente disponíveis hoje, muitos dicionários incluem a pronúncia correta dos verbetes.

ENCICLOPÉDIAS

As principais enciclopédias tradicionais já foram convertidas para formato eletrônico, com ou sem adaptações, como é o caso da Encyclopaedia Britannica. Enciclopédias mais simples (como as várias que existem em Português) não sobreviverão se continuarem a ser distribuídas apenas em formato impresso. Na verdade, o CD-ROM decretou a morte lenta das enciclopédias convencionais, que são de manuseio difícil e desajeitado, ocupam enorme espaço, e custam caro. Algumas enciclopédias em CD-ROM que chegaram a custar, algum tempo atrás, em CD-ROM, quase mil dólares, e que custavam em papel bem mais, hoje custam menos de 50 dólares.

Já começam a ser desenvolvidas enciclopédias apenas para distribuição em formato eletrônico. A enciclopédia Encarta, da Microsoft, foi a primeira enciclopédia feita exclusivamente para distribuição em CD-ROM: não há nem nunca houve uma Encarta em papel. Num caso assim o uso de recursos de multimídia é muito maior, porque já foi projetado desde o início, diferentemente do que acontece com as enciclopédias originalmente distribuídas em papel e que agora são convertidas para formato eletrônico.

A grande vantagem da enciclopédia eletrônica é a facilidade com que ela pode ser pesquisada, pois em regra todas as palavras utilizadas nela (exceção feita a artigos, conectivos, preposições, etc.) estão indexadas.

Se quem projetou a enciclopédia se preocupou  em enriquecê-la com a maior quantidade possível de referências cruzadas (links), a enciclopédia também pode ser pesquisada hoje no formato hipertexto.

CORRETORES ORTOGRÁFICOS

O corretor ortográfico que vem com Microsoft Word é razoável, embora tenha seus problemas (como, aliás, todos, em Português). Eis, por exemplo, algumas palavras perfeitamente legítimas, encontradas neste texto, que o corretor ortográfico de Microsoft Word refugou: câmera/câmeras, concebível, conceitual [2], confiantemente, confortavelmente, conscientemente, conseqüentemente, decodificação, destrói [3], desumanizante, devocional, diagramar, enaltecedoras, enormemente, enriquecedores, garotinho, indisponibilidade, indistinguível, itinerantes, oralidade, primatas, retransmissoras, retroagindo.

CORRETORES GRAMATICAIS

Existe um corretor gramatical que funciona com Microsoft Word que foi desenvolvido pela Itaú Tecnologia S/A (Itautec), originalmente para acompanhar o seu próprio software de processamento de texto, Redator.

Como a maior parte dos corretores gramaticais hoje existentes, porém, o programa tem que ser aperfeiçoado bastante ainda para ficar próximo de bom. Vamos usá-lo neste próprio texto, para mostrar algumas das sugestões que ele faz.

  1. Numa frase como “D. O Computador como Ambiente de Aprendizagem”, ele reclama que não há ponto final no final, embora a frase seja claramente título, estando formatada como título em Microsoft Word;
  2. Numa frase como “a. O Computador como Hipertexto” ele reclama que a frase não se inicia com maiúscula, deixando de perceber que se trata de ordenação de título e que a frase, realmente, se inicia com “O”, que está em maiúscula;
  3. Numa frase “seria hipermídia” ele faz uma observação sem sentido de que “Neste caso, é preferível a concordância de ‘seria’ com ‘hipermídia’” [4];
  4. Na frase “traduções menos literais [de “home page”] poderiam ser Primeira Página, Página Inicial, . . .” ele observa que “se ‘poderiam ser’ estiver se referindo a ‘Página’, verifique a concordância de número”;
  5. Na frase “emissoras de rádio transmitem seus programas via satélite” ele observa que “se ‘via’ estiver se referindo a ‘programas’, verifique a concordância de número” — pressupondo que “via” é verbo na frase;
  6. Na frase “plebiscitos e referendos são feitos instantaneamente” ele observa que “se ‘feitos’ estiver se referindo a ‘plebiscitos’ e ‘referendos’, verifique a concordância de número”. Aqui a referência está certa — mas a concordância também está certa: o programa não percebe que “feitos” é plural;
  7. Na frase “dezenas de locais diferentes, espalhados ao redor do mundo”, ele observa: “se ‘espalhados’ estiver se referindo a ‘dezenas’, verifique a concordância de gênero”;
  8. Na frase “A abertura da maioria dos grandes programas de televisão, os próprios programas, até os comerciais, tornaram-se . . .” ele observa: “se ‘tornaram-se’ estiver se referindo a ‘abertura’, verifique a concordância de número”;
  9. Na frase “computadores são extremamente confiáveis” ele observa: “se ‘confiáveis’ estiver se referindo a ‘computadores’, verifique a concordância de número”. Aqui a referência está certa — mas a concordância também está: o programa não percebe que “confiáveis” é plural.

E assim por diante.

O pior de tudo é que o programa, em termos de sintaxe, aparentemente só verifica concordância, e, no caso deste texto, só chamou a atenção para concordâncias que estavam absolutamente corretas. Assim, além de o programa ser pouco imaginativo, ainda é fraco em termos de detectar aquilo que se propõe a detectar.

Além disso, quando foi interrompida a revisão, sem que fosse concluída, o programa de revisão travou Microsoft Word, fazendo com que se perdessem as alterações feitas desde a gravação anterior.

Esse desempenho indica que provavelmente ainda vamos ter que esperar um bom tempo até que tenhamos corretores gramaticais realmente úteis.

Corretores gramaticais em Inglês estão bem à frente. Alguns corrigem sintaxe, estilo e até mesmo informam se o texto está “politicamente correto” ou não, assinalando supostos exemplos de sexismo, racismo, etc. Alguns desses corretores gramaticais deixam o usuário ver as regras usadas pelo programa e até mesmo suspender ou alterar essas regras. Programas que fazem isso podem ser bastante úteis no aprendizado de sintaxe, pois permitem que o aluno veja, de forma concreta, como diferentes regras gramaticais se aplicam ao texto.

CONJUGADORES DE VERBOS

O mesmo programa mencionado no item anterior tem um módulo que conjuga verbos. Basta selecionar um verbo no texto e selecionar a opção “Conjugar verbo” para que o programa apresente o verbo todo conjugado, em todos os tempos e modos (inclusive o imperativo negativo).

Quando a forma verbal é inequívoca, o conjugador funciona razoavelmente bem, conjugando corretamente até mesmo verbos irregulares como “caber” ou pouco comuns como “argüir”.

Tropeçou, porém, no verbo “aguar” dando, no presente do indicativo, apenas a terceira pessoa do singular, “água”. Na verdade, as únicas formas verbais corretas desse verbo foram as do particípio passado.

Além disso, se lhe for dado um verbo reflexivo, ele informa que o verbo é desconhecido. O mesmo verbo, sem a partícula “se”, geralmente é conjugado de forma correta.

No caso de formas verbais que são comuns a mais de um verbo, como “vir”, o programa selecionou, aparentemente de forma arbitrária, um verbo. Se a forma verbal selecionada for “vir” ele conjuga o verbo “ver”, não o verbo “vir”. Para que ele conjugue o verbo “vir” é preciso lhe fornecer uma forma verbal inequívoca, como “vier”.

O programa é bastante útil para quem tem dificuldades de conjugação, desde que se tenha cuidado com os verbos mais difíceis, como os irregulares, os defectivos, etc. — que, entretanto, por serem os mais difíceis são exatamente aqueles em que mais ajuda é necessária.

TRADUTORES

Programas tradutores começam a se tornar mais populares e (talvez porque) mais competentes. Existem programas tradutores do Inglês para todas as outras línguas ocidentais importantes em termos de número de falantes (Espanhol, Francês, Italiano, Alemão, Português), e vice-versa. Entretanto, para traduzir do Alemão para o Português, e vice-versa, ainda é necessário usar o Inglês como mediador — isto é, traduzir do Alemão para o Inglês e do Inglês para o Português, e vice-versa. Este fato complica o processo e aumenta consideravemente a possibilidade de erros.

Programas tradutores, quando nos permitem examinar e mesmo alterar as regras usadas para traduzir, podem ser excelentes ferramentas pedagógicas no ensino de línguas, pois mostram como a alteração de regras gramaticais podem alterar drasticamente o sentido do texto e, conseqüentemente, a tradução.

D. O Computador como Ambiente de Aprendizagem

Nesta seção vamos discutir a Internet, que rapidamente se constitui no mais importante ambiente de aprendizagem do mundo moderno.

Vamos considerar a Internet de dois pontos de vista:

  • como um ambiente de aprendizagem que permite o desenvolvimento e o uso de sistemas de hipertexto;
  • como um ambiente de aprendizagem que é um forum global e permanente de comunicação e troca de idéias.

No primeiro caso, a principal aplicação é a World Wide Web (literalmente, “Teia de Amplitude Mundial”), comumente chamada apenas de Web. No segundo caso, as principais aplicações são Correio Eletrônico, Grupos (ou Listas) de Discussão e Bate-Papos (“Chats.”). Vamos concentrar nossa atenção nas duas primeiras, deixando Bate-Papos de lado, porque ainda pouco usados no contexto educacional.

a. Hipertexto

A Web, como todas as outras aplicações da Internet, é uma aplicação que utiliza o modelo Cliente-Servidor. Isso quer dizer que para que a Web funcione, um computador tem que funcionar como Servidor de Informações e outro como Cliente. No devido momento isso ficará claro. Antes, porém, vamos procurar conceituar a aplicação, isto é, dar uma idéia geral do que ela faz.

HIPERTEXTO

A Web é, em primeiro lugar, uma aplicação que faz uso de hipertexto. É preciso, portanto, explicar, rapidamente, o que é hipertexto. “Hipertexto” é um conceito inventado para designar texto que é lido de forma não linear. O conceito de certo modo existe há muito tempo, sem que tenha recebido um nome. Uma enciclopédia é, tipicamente, hipertexto: ninguém a lê começando no primeiro verbete iniciado com a letra “a” e terminando com o último verbete da letra “z”. Você procura uma enciclopédia porque está interessado em determinado assunto. Digamos que você quer saber quer saber um pouco mais sobre a Segunda Guerra Mundial. Você procura o verbete correspondente (digamos, “Guerra Mundial, Segunda”) e começa a ler. Ao ler, você encontra uma referência ao fato de que os termos em que o Tratado de Versalhes foi redigido acabaram por tornar a Segunda Guerra inevitável. Sua história está meio enferrujada, e, por isso, você vai procurar o verbete “Versalhes, Tratado”. Se encontrá-lo, provavelmente será levado a procurar o verbete “Guerra Mundial, Primeira”. Ao ler o verbete sobre a Primeira Guerra Mundial, fatalmente encontrará uma referência ao fato de que o assassinato do Arquiduque Francisco Ferdinando, da Áustria, e sua mulher, em 28 de junho de 1914, em Sarajevo, foi o estopim que deflagrou o conflito. Você acha interessante o fato, porque Sarajevo tem estado no noticiário, ultimamente, em virtude dos conflitos na ex-Iugoslávia (Croácia, Bósnia, Herzegovínia, Macedônia, etc.). Você decide ler o verbete “Sarajevo”. Lá, entre outras coisas, se faz referência ao fato de que Sarajevo (então na Iugoslávia) foi a sede dos Jogos Olímpicos de Inverno de 1984. Você decide verificar quem foi campeão de hóquei no gelo naquela Olimpíada (digamos que no verbete “Jogos Olímpicos”) e descobre que a União Soviética ganhou a medalha de ouro, a Tchecoslováquia a medalha de prata, e a Suécia a medalha de bronze. Como você não sabia que a Suécia era boa em hóquei sobre o gelo você… — vamos parar aqui, não é verdade? Você pode até mesmo ter perdido o fio da meada, indagando-se como é que, estando inicialmente interessado na Segunda Guerra Mundial, você agora está lendo sobre hóquei e as Olimpíadas.

Mas hipertexto é isso: é a leitura de um texto de forma a seguir as associações de idéias do leitor e não a linearidade ou a lógica que o autor procurou imprimir ao texto. No caso de uma enciclopédia, que não tem um autor só, a lógica de quem a produz é colocar artigos em verbetes que são classificados em ordem alfabética, e, depois, dotá-la de um índice analítico. Se fôssemos ler uma enciclopédia linearmente, começaríamos no “a” e terminaríamos no “z”. Não o fazemos, como também não o fazemos com dicionários e outras obras de referência.

Como dizíamos, o conceito de hipertexto existe há muito tempo: o que foi inventado recentemente foi o termo para designar o conceito — algo que, segundo tudo indica, foi feito por um indivíduo chamado Ted Nelson. O interessante, porém, é que, criado o nome, e chamada a atenção para esse estilo de leitura, percebeu-se que a aplicação do conceito poderia ser muito mais ampla, e que, em especial, ele poderia vir a servir como princípio organizador para um modelo de acesso ao enorme conjunto de informações disponíveis na Internet. O gênio que percebeu isso foi Tim Berners-Lee, o pai da Web.

Se, no exemplo dado, acerca da Segunda Guerra, você estivesse usando uma enciclopédia eletrônica, poderia ter visto uma fotografia do Arquiduque, examinado o mapa da Bósnia-Herzegovínia (será que dá para traçar?), ouvido o hino nacional da Suécia, e, talvez, até visto um clip de vídeo da decisão de hóquei nos Jogos Olímpicos de Inverno de 1994, em Lillihammer, Noruega. Isso seria hipermídia. Assim que se imaginou o modelo de hipertexto como forma de organizar as informações textuais na Internet, ele foi quase que imediatamente estendido para não só texto, mas desenhos, gráficos, fotografias, sons e, eventualmente, vídeo. Virou hipermídia.

Bom, voltando ao assunto, a Web é uma aplicação que faz uso de hipertexto e hipermídia. Daqui em diante, quando falarmos em hipertexto, ficará implícito que se refere a hipertexto ou hipermídia.

“LINKS”

Sistemas de hipertexto, elaborados em papel ou eletronicamente, fazem uso de referências cruzadas. Numa enciclopédia impressa em papel, um verbete faz referência a outro, a bibliografia faz referência a materiais externos à enciclopédia, e, se algum artigo na enciclopédia é realmente bom, materiais externos (artigos e livros) podem fazer referência a ele. Além disso, a enciclopédia possui índices analíticos (por grandes temas) e remissivos (onde os principais conceitos, pessoas, ou eventos são listados, com uma indicação dos verbetes, ou dos volumes e páginas, em que são discutidos).

No caso de sistemas de hipertexto eletrônicos, como é o caso da Web, as referências cruzadas são chamadas de “links” (elos de ligação). Se você estiver usando uma interface gráfica, basta clicar em cima de um link (vamos deixar em Inglês, porque o termo já foi incorporado à nossa linguagem) e o sistema traz a informação ali referenciada. Os links geralmente são representados por texto que aparece na tela em cor diferente, ou sublinhado, ou em tipo gráfico distinto daquele usado para o restante do texto. Uma imagem ou um gráfico pode, porém, também representar um link. Geralmente se sabe que um texto, uma imagem ou um gráfico representa um link porque se convencionou que o ponteiro do mouse muda de forma quando passa em cima de um link: deixa de ser uma flechinha e passa a ser uma mãozinha com o indicador apontando — ou algo parecido.

Um sistema de hipertexto só tem os links que o autor introduziu — tantos quantos ele desejou. O leitor pode seguir qualquer link — mas fica, naturalmente, limitado aos links que o autor colocou no sistema. Por outro lado, índices analíticos e remissivos também funcionam como links, e, neste caso, o leitor tem oportunidade de saltar para qualquer parte do sistema.

PÁGINAS E “HOME PAGES”

A Web usa entidades chamadas de “páginas” para ordenar o acesso a grandes blocos de informação. Qualquer instituição ou indivíduo que queira se tornar um Provedor de Informações para a Web deverá montar essas páginas de informação. O que se chama de página é, portanto, na realidade, um documento, armazenado em um arquivo específico no servidor. O que se chama de “Home Page” é a primeira página de um sistema. Uma tradução literal dessa expressão para o Português não fica bem: teria que ser “Página Lar” (que é horrível) ou “Página Natal” (visto que em Inglês se chama a cidade natal de “home city”, o país natal de “home country”, etc.) — mas também essa solução deixa a desejar. Traduções menos literais poderiam ser Primeira Página, Página Inicial, Página de Rosto, Página Matriz, Página Principal, Página Portal (ou Portão), ou Página Central. Como, porém, nenhuma dessas traduções é muito adequada, e o brasileiro gosta de usar expressões em Inglês, Home Page deve ficar Home Page mesmo aqui no Brasil.

Como as sugestões de tradução indicam, a Home Page é a página que alguém encontra ao visitar um Servidor Web — geralmente chamado de um “site” Web (“site” [pronunciado “sáit”] querendo dizer “local”, não “sítio”). (Servidores Web serão discutidos na subseção seguinte). Os links do sistema de hipertexto da Web são colocados em uma página e eles remetem a outros locais da mesma página ou, mais freqüentemente, a outras páginas — no mesmo site ou em outros.

SERVIDORES WEB (“WEB SERVERS”)

Um Servidor Web é um computador equipado com software adequado que armazena as páginas Web de uma instituição (ou mesmo de um indivíduo) e gerencia o acesso a elas por parte dos usuários.

Na verdade, um Servidor Web pode armazenar as páginas de várias instituições e indivíduos, desde que elas estejam bem organizadas em diferentes diretórios. A localização das Home Pages de cada instituição ou indivíduo será feita em função do diretório e/ou do nome do arquivo, mas todas elas estarão compartilhando o mesmo Servidor.

Na verdade, é possível dar nomes (na realidade, “apelidos”) diferentes ao mesmo computador, de modo que, para o público externo, dá-se a impressão de que há vários Servidores Web, quando, na realidade, há apenas um, com vários apelidos.

NAVEGADORES WEB (“WEB BROWSERS”)

Um Navegador Web é um software que permite que os usuários “naveguem” pela Web, contatando Servidores Web para visualizar as páginas neles armazenadas.

Os diferentes Navegadores Web têm características distintas, havendo uma competição muito grande para ver quem consegue implementar mais inovações. O primeiro Navegador Web gráfico foi Mosaic, feito por Marc Andreessen, quando ainda estudante da Universidade de Illinois, e distribuído gratuitamente. Depois de formado, Marc Andreessen criou, com um sócio capitalista, uma empresa, que hoje se chama Netscape Communications, que desenvolveu um novo Navegador Web, Netscape Navigator, que se tornou um dos mais populares do mercado.

A poderosa Microsoft, porém, possui um navegador chamado Microsoft Internet Explorer, que ela distribui gratuitamente. Hoje Microsoft Internet Explorer e Netscape Navigator competem para ver quem controla o mercado.

UM SISTEMA GLOBAL

O caráter revolucionário da Web está no fato de que o sistema de hipertexto montado é, em princípio, de âmbito mundial. É por isso a aplicação se chama “World-Wide Web”, ou “Teia de Amplitude Mundial” — a teia, no caso, sendo formada pelos links. Uma página aqui do Brasil pode ter um link para uma página nos Estados Unidos, ou na França, ou no Japão, ou na Índia, ou em Israel. Desde que o outro computador esteja na Internet e seja um Servidor Web, o sistema de hipertexto montado não tem limites geográficos: abrange o mundo inteiro.

Para os computadores contendo as páginas que fazem os links não faz diferença onde está o computador que armazena as páginas às quais esses links levarão: basta que tenha um endereço ou um nome válido na Internet.

Para o usuário das páginas que possuem links, também não faz diferença que o link leve de uma página em Campinas para uma página em Cingapura, porque os links têm, escondidos atrás de si, o endereço ou o nome do computador que contém a página que é chamada, bem como a indicação do diretório e do nome do arquivo que armazena aquela página. Um sistema chamado de Localizador Universal de Recursos (Universal Resource Locator, URL) na Internet permite que computadores se localizem e sejam capazes de identificar os diretórios e os arquivos para os quais se fez o link.

UM SISTEMA INDEPENDENTE DE PLATAFORMAS

O sistema de hipertexto da Web também não se limita pelo fato de você estar usando um PC e o Servidor Web da NASA ser uma estação Alpha, o Servidor Web da UNICAMP ser uma estação Sun, o Servidor Web de uma agência de publicidade ser um Macintosh, o servidor de uma empresa ser um PC rodando Windows NT ou mesmo Linux. Se o Servidor Web é um computador conectado à Internet, as páginas de qualquer outro Servidor podem ter links com as páginas contidas nele e qualquer usuário pode ter acesso a elas.

A razão para essa independência de plataformas está no protocolo básico utilizado por aplicações Web, a saber, o Protocolo HTTP (HyperText Transfer Protocol, ou Protocolo de Transferência de HiperTexto). Se um computador utilizar esse protocolo, pode se comunicar com qualquer outro computador que esteja utilizando o mesmo protocolo, não importa o seu porte, fabricante, ou modelo.

HISTÓRICO

A viabilização de uma rede de computadores que se interconecta de modo a formar uma teia de amplitude mundial foi feita por Tim Berners-Lee, do CERN (Centre Européen de Recherches Nucleaires, conhecido em Inglês como European Laboratory of Particles Physics), que, em 1990, criou o Protocolo HTTP e desenvolveu a linguagem HTML (HyperText Markup Language, ou Linguagem de Marcação de HiperTexto), que é usada para o desenvolvimento de páginas Web.

Mas o que tornou a Web realmente popular foi o desenvolvimento de excelentes navegadores (“browsers”), com interface gráfica, aos quais já fizemos menção.

Estima-se que o número de computadores conectados à Internet em Julho de 1998 se aproximava dos 40 milhões, segundo dados fornecidos por Network Wizards (www.nw.com/zone/WWW/top.html).

Destes perto de 40 milhões de computadores cerca de 26 milhões estão nos Estados Unidos, o Japão ficando em segundo lugar com cerca de 1.350.000 de computadores, e o Brasil em 18º lugar, com aproximadamente 165 mil, bem à frente da Rússia, que tem cerca de 130 mil (vide dados fornecidos pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil: www.cg.org.br/PosicBRMundohtm.htm#Posição). Em termos das Américas, o Brasil fica em terceiro lugar (atrás dos Estados Unidos e do Canadá).

No Brasil, mais importante do que os números é a taxa de crescimento. Em Janeiro de 1996 só havia cerca de 17.500 computadores conectados à Internet (vide http://www.cg.org.br/growth.htm). Em dois anos e meio houve um crescimento de quase 1000%.

UTILIZAÇÕES

Nesta seção serão discutidas brevemente as principais utilizações de aplicações Web. O enfoque, em geral, é mais voltado para quem quer colocar informações na Internet do que para quem quer aceder a essas informações.

Marketing

Do ponto de vista das instituições, a utilização mais importante da Web, hoje, é para fins de marketing — uma nova modalidade de marketing direto. A Web tornou-se a principal forma de veicular, eletronicamente, informações sobre uma instituição: sua missão, seu posicionamento, os principais produtos e serviços que oferece ao mercado. Vários analistas de mercado têm afirmado, categoricamente, que a instituição que desejar ter ou manter uma posição forte no mercado global não pode abrir mão de ter um endereço e uma Home Page atraente na Web.

Quando os órgãos de imprensa falam, hoje, em estar “na Internet”, ou “conectado à Internet”, eles querem se referir à Web. A revista Exame de 17 de Janeiro de 1996 tinha na capa a seguinte chamada: “Você tem um negócio e ainda não aderiu à Internet? Preocupe-se”. As empresas, ou as instituições, qualquer que seja a sua natureza, recorrem à Web para distribuir informações aos seus potenciais clientes e ao público em geral. A Web está se tornando, assim, a face mais pública das instituições.

Diferentemente do marketing mais agressivo envolvido na publicidade tradicional, que entra onde não é chamada, o marketing na Internet tem uma filosofia diferente, mais sutil. A idéia não é impingir algo (um comercial na TV, um outdoor, um anúncio no rádio ou no jornal) a quem preferiria não recebê-lo: é, ao contrário, fazer com que o potencial cliente, ou o público em geral, se sinta suficientemente atraído para se dar ao trabalho de visitar o site da instituição. O marketing envolvido na propaganda tradicional é semelhante a uma visita, freqüentemente não desejada, que chega em casa sem avisar, freqüentemente num momento inconveniente. O marketing envolvido na Web é mais como um convite insinuante — algo como “Venha me visitar, quando você quiser, e veja, em primeira mão, o que tenho para lhe oferecer… Você não vai se arrepender”. O usuário da Internet vai visitar uma vez — afinal, não custa nada. Se a promessa envolvida no convite não se cumprir, ele não volta mais. Mas se ele gostar da visita, provavelmente vai voltar sempre. Conseguir que um usuário visite ao site de uma instituição é equivalente a conseguir que um transeunte entre na sua loja — meio caminho andado para vender-lhe algo, ainda que seja apenas uma boa imagem, decorrente de um tratamento primoroso.

Uma forma de atrair um transeunte eletrônico para o site de uma instituição  é fazê-lo visual e graficamente atraente. Outra forma é oferecer-lhe brindes, se ele for até lá. Entre as coisas que são dadas aos visitantes dos sites Web estão, no caso de empresas de software, programas grátis. Outras instituições oferecem listagens ou diretórios de sites de interesse na Web, ou notícias e outras informações — enfim, qualquer coisa que possa motivar o usuário a visitar o site, e, tendo visitado, voltar mais vezes.

Até mesmo instituições não comerciais, como as Universidades públicas, têm usado a Web para fazer seu marketing institucional. Há, na verdade, entre elas, uma competição acirrada — sobre qual delas terá o Servidor Web mais visitado! Escolas se orgulham do número de visitas ao seu site.

Cadastramento de Interessados

O passo seguinte é cadastrar os visitantes ao site. Os Servidores Web mantêm, em sua maior parte, estatísticas sobre quantas pessoas visitaram o site. Alguns coletam até o Nome do computador dos visitantes. Mas muitas instituições querem mais informações sobre eles: nome, endereço, telefone, interesses específicos, razão pela qual visitaram o seu site, etc.

A versão atual da linguagem HTML permite construir páginas que contenham formulários e a maior parte dos navegadores Web permite, hoje, visualizar esses formulários como uma tela de entrada de dados (que é o que são). Desta forma, é possível solicitar aos visitantes ao site que deixem seu “cartão de visita”, isto é, preencham um breve formulário que contenha dados sobre eles e seus interesses. Com esses dados, que são armazenados diretamente em uma base de dados, a instituição pode analisar melhor o que os visitantes ao seu site estão procurando, enviar a eles visitantes material adicional, mais personalizado, tanto pelo correio convencional como por Correio Eletrônico, melhorar a qualidade de suas páginas, para que se ajustem melhor aos interesses dos visitantes, etc.

Comercialização

Para instituições comerciais (empresas) o passo seguinte é, naturalmente, vender produtos pela Web. Isso já acontece, de forma generalizada. Elas exibem seus produtos em seu site, mostram detalhes técnicos sobre eles, divulgam opiniões de clientes satisfeitos, e dão a possibilidade ao visitante de encomendar os produtos, pagando com cartão de crédito.

No caso de alguns produtos, como CDs, o cliente pode até ouvir um clip das músicas, se a página foi preparada de modo a possibilitar isso e ele possui hardware e software que permita a reprodução de sons. Software e livros são produtos de alta comercialização na Internet. Mas até automóveis e imóveis podem ser comprados pela Web.

Tem se criado muita polêmica sobre o fornecimento de números de cartão de crédito pela Internet. A Rede, afirma-se, ainda não é segura de modo a impedir que terceiros, não envolvidos na transação, ilegalmente capturem o número de seu cartão de crédito (ou qualquer outra informação mais confidencial ou delicada). Isso é verdade, mas o perigo tem sido um pouco exagerado.

Primeiro, a maior parte de nós não tem muita preocupação em mandar o número de cartão de crédito num fax — que é mil vezes menos seguro do que a Internet. Nas lojas, poucos de nós nos preocupamos em solicitar que o papel carbono usado nos seja entregue — até porque o funcionário da loja fica com uma cópia do formulário. Logo, o problema tem sido um pouco exagerado em função das notícias espalhafatosas sobre crime na Internet.

Segundo, já existe software que permite que, ao fornecer uma informação mais confidencial, o usuário/cliente entre num modo de transação seguro, em que as informações são codificadas, de modo a tornar mais difícil o seu deciframento, mesmo que capturadas. Embora esse software ainda não esteja implementado em todos os Servidores e Clientes, ele, eventualmente, ajudará a diminuir o risco de uso indevido de informações — se bem que nunca será possível eliminar, totalmente, esse risco.

Terceiro, embora haja o risco (pequeno) de alguém capturar o número de seu cartão de crédito (ou de sua senha) e de usar o seu cartão (ou a sua senha) indevidamente, na Internet ninguém rouba seu carro, leva você ou alguém de sua família como refém, ou lhe dá um tiro, quando você está fazendo compras (ou consultando o saldo de sua conta corrente). [5]

Atendimento e Suporte

Se uma instituição, comercial ou não, precisa dar suporte aos seus clientes, a Web, hoje, acoplada ao Correio Eletrônico, suplanta, de muito, os antigos BBS (Bulletin Board Systems) e os números de telefone 800 (a instituição paga) e 900 (quem faz o telefonema paga). Grandes empresas de software, como a Microsoft, puderam reduzir o preço de seus produtos consideravelmente porque passaram a dar suporte, gratuito, aos seus clientes, através da Web. O cliente não paga e a Microsoft não tem que arcar com o custo de linhas 800. Além disso, é possível disponibilizar, através da Web, correções, atualizações, versões novas, informações sobre como evitar ou corrigir problemas, etc.

A Receita Federal incentiva a declaração de Imposto de Renda pela Internet: custa-lhe bem menos do que processar as declarações em papel ou mesmo em disquete.

Disponibilização e Busca de Informações

Disponibilização e Busca de Informações são dois lados da mesma moeda. Do lado do Provedor de Informações, ele as disponibiliza; do lado do usuário, ele as busca. Esse, talvez, o uso mais generalizado da Web no momento — e o que mais interessa aos usuários.

Há informações de todos os tipos disponíveis na Web: textos de jornais e revistas (do dia e de dias anteriores), bancos de dados de bibliotecas, artigos acadêmicos e científicos, livros inteiros cujo copyright expirou (entre os quais está tudo escrito há mais de 50 anos), legislação, planos, projetos, e relatórios de todos os tipos, especificações técnicas de produtos, manifestos, informações de cunho pessoal, textos, fotos e vídeos eróticos e pornográficos, etc.

A Internet caminha rapidamente para se tornar o grande repositório onde se armazenará tudo o que for publicado no mundo, o termo “publicar” sendo, talvez, inadequado, por sua associação com material impresso, mas sendo adequado no seu sentido de “tornar público”, divulgar.

Inscrições, Reservas, Acompanhamentos

Numa outra linha, através da Web é possível:

  • Fazer inscrições em congressos, feiras, e outros eventos;
  • Fazer reservas em vôos de companhias aéreas, em shows de teatro, competições esportivas, etc.;
  • Acompanhar o andamento de processos (como, por exemplo, onde está o pacote enviado através de um serviço de courier, ou como andam os investimentos feitos em ações ou no banco).
Pesquisa

A pesquisa, tanto nas Universidades como nos Centros de Pesquisa e Desenvolvimento das empresas, não teria o mesmo nível e a mesma qualidade sem a Internet, em particular sem a Web.

Curiosidade

A Web é, também, comumente utilizada apenas para matar a curiosidade. Neste caso, os usuários navegam, de forma mais ou menos aleatória, indo atrás do que lhes parece interessante, sem um plano definido de antemão. Fazendo isso, provavelmente vão encontrar informações úteis, às vezes até valiosas, ou então divertidas. É possível que também encontrem matérias de extremo mau gosto e até mesmo grosseiras.

Entretenimento

O entretenimento na Internet, em especial através da Web, tenderá a crescer, à medida que a infra-estrutura da Rede e os recursos dos usuários permitirem transferência mais rápida de grandes quantidades de vídeo. “Vídeo Sob Demanda” (“Video on Demand”) deverá ser uma das grandes aplicações do futuro, decretando o começo do fim das vídeo-locadoras.

POTENCIAL DA WEB PARA A EDUCACÃO otencial da Web para a Educação

Deixamos Educação para o fim porque o potencial da Web aqui mal começa a ser explorado. Não há a menor dúvida, entretanto, de que esse potencial é enorme, abrangendo vários aspectos da Web e da tecnologia usada para implementá-la.

Um primeiro aspecto do potencial da Web para a área da educação — o mais evidente — está no fato de que, como ressaltamos há pouco, a Internet, especialmente através da Web, caminha rapidamente para se tornar o grande repositório que armazenará todo tipo de informação que for tornada pública no mundo daqui para frente. Com isso, tanto professores e alunos vão estar recorrendo a ela o tempo todo para buscar informações: os primeiros para preparar suas aulas e para melhor poder ajudar os seus alunos; estes, para poder realizar seus trabalhos escolares e desenvolver projetos pessoais.

Está ficando cada vez mais claro que a tarefa de transmitir informações aos alunos ocupará cada vez menos o tempo da escola e dos professores. As informações necessárias para o aprendizado dos alunos, para que estes desenvolvam os projetos em que vão estar envolvidos, vão estar disponíveis na Internet e aos alunos competirá ir atrás delas, não ficar esperando que os professores as tragam até eles. Os professores, por seu lado, precisarão saber orientar os alunos, não só sobre onde encontrar as informações, mas, também, sobre como avaliá-la, analisá-la, organizá-la, tendo em vista os objetivos educacionais propostos. Mas a Internet, através da Web,  certamente estará no centro de toda essa atividade.

Um segundo aspecto do potencial educacional da Internet, em especial da Web, está no Ensino à Distância (ou, na área de treinamento, no “Just-In-Time Training”). Mais e mais as pessoas estarão recorrendo a alternativas remotas para obter a instrução de que necessitam, que envolverá, não grandes módulos de ensino, como os atuais (cursos de duração de um semestre ou mesmo um ano), mas, sim, micro-módulos, bem específicos, com objetivos bem definidos e precisos, e elaboradas com o cuidado com que hoje se desenvolvem programas de televisão com de uma hora de duração.

Digamos que uma pessoa queira ou precise aprender o essencial acerca de técnicas de negociação para enfrentar uma complicada negociação com um cliente difícil: Vai procurar um serviço de Ensino à Distância (ou Just-in-Time Training) na Web e encontrar um micro-módulo que, em uma ou no máximo duas horas, lhe ensine, de forma clara, precisa e prática, o que ela precisa saber para se sair bem da situação que tem que enfrentar.

Ou imaginemos que uma pessoa ande tendo problemas com a administração do tempo, ou a organização de informações, ou o gerenciamento de pessoal, ou a criação de gráficos em três dimensões em Microsoft Excel, ou o comportamento de filhos adolescentes, ou a compreensão da doutrina marxista da dialética, da teoria pedagógica de Rousseau, ou da teoria política de Marsílio de Pádua, ou seja lá o que for. Haverá sempre na Internet um módulo de Ensino à Distância feito sob medida, que vai ensinar o que se deseja aprender, nem mais, nem menos. Se a pessoa depois desejar mais, pode buscar um módulo intermediário, depois um avançado, e assim por diante, aprendendo sempre o que precisa saber quando precisa saber, na dose certa. Vai acabar o ensino de grandes quantidades de informação que a pessoa não sabe, naquele momento, para que serve e que, quando descobre para que serve, já esqueceu. Informação não é algo que se possa estocar para um período de necessidade: quando a informação não é útil, em função de necessidades reais, ela geralmente é esquecida.

Os micro-módulos de Ensino à Distância vão ser eficazes porque não vão envolver apenas textos, mas também som e imagem. Quando necessário, eles incluirão acesso a documentos, transferência instantânea de arquivos, comunicação via Correio Eletrônico, assim aumentando exponencialmente a eficácia da instrução.

Essa possibilidade interessa a professores e demais educadores não só porque eles, e eventualmente seus alunos, podem ser usuários desses serviços de Ensino à Distância, mas, também, porque eles podem eventualmente ser prestadores desses serviços. Professores e demais educadores com visão precisam estar explorando novas formas de prestar serviços à sociedade e esta é certamente uma das mais promissoras.

Um terceiro aspecto do potencial da Web para a área da educação é relacionado ao anterior. Mesmo quando não há necessidade de Ensino à Distância, a tecnologia da Web pode ajudar o professor a organizar o seu trabalho com os alunos. Mais e mais os professores terão, dentro da escola, seu próprio site, que pode até mesmo ser interno (na Intranet da escola), mas preferencialmente deve ser externo (na Internet, para que os alunos, de casa, possam ter acesso a ele). Esse site vai servir de ponto de convergência para os contatos com os alunos. Ali o professor abrirá diretórios específicos para cada classe e colocará em cada diretório as informações, os textos, as referências, os links que os alunos daquela classe precisarão usar para o desenvolvimento de seus projetos. Os vários diretórios do site do professor conterão informações sobre o andamento dos vários projetos dos alunos e os trabalhos que os alunos forem realizando vão sendo colocados ali para que outros membros da equipe ou da classe possam ter acesso a eles. Essa uma forma simples e fácil de fazer com todos tenham acesso ao trabalho de todos. Comunicações genéricas, dirigidas aos alunos de todas as classes, serão colocadas na Home Page do professor ou em locais especialmente designados. Comunicações dirigidas a apenas uma classe serão colocadas em local combinado no diretório daquela classe. As várias classes poderão ter grupos de discussão sobre assuntos de interesse, que poderão ser gerenciados a partir do site do professor. Para saber o que está ocorrendo em uma determinada classe, basta olhar o site do professor, porque este conterá tudo o que é relevante, registrado diariamente. Embora esse tipo de procedimento certamente vá começar primeiro nas universidades, é certo que, com o tempo, ele se estenderá para todos os níveis de ensino.

Um quarto aspecto do potencial da Web para a educação está no uso de ferramentas de desenvolvimento de sites para que cada classe desenvolva projetos que envolvam a construção de sites. Nesses projetos a ênfase, naturalmente, não vai estar no desenvolvimento em si, mas na execução do projeto.

Um professor de ciências pode atribuir aos alunos, num dado semestre, o projeto de elaborar material informativo e educacional sobre, digamos, os cuidados com o meio ambiente. Cada aluno, ou cada grupo de alunos, fica, assim, encarregado de pesquisar um determinado tópico relacionado ao tema e de preparar uma página para o site do projeto. Um pequeno grupo de alunos fica encarregado de gerenciar o desenvolvimento do site, cobrando dos colegas a entrega de seus materiais e fazendo com que tudo seja disposto de forma a que todos possam ter acesso à contribuição de todos.

Um professor de língua portuguesa pode, num dado semestre, atribuir aos alunos o projeto de elaborar um pequeno romance em hipertexto. Neste caso, pode-se discutir com os alunos o tema e o desenvolvimento do romance. Em cada “forquilha” importante da história, os alunos decidirão quantas opções vão ser seguidas. Cedo na história, por exemplo, personagem A, uma moça, se encontra com personagem B, um rapaz. Esta é uma “forquilha”. Um grupo de alunos ficará encarregado de desenvolver a opção que leva os dois personagens a se apaixonarem; outro grupo ficará encarregado de desenvolver a opção que leva os dois personagens a se tornarem inimigos mortais. Cada um desses “ramos” da história vai, em seu desenvolvimento, ter novas “forquilhas”, em que “sub-ramos” serão criados. A história, assim, se tornará um sofisticado “Você Decide”, em que em vários momentos cruciais (as “forquilhas”) o usuário escolherá uma ou outra opção (nada impedindo de haver mais de duas). Ao mesmo tempo, tudo isso pode ser disposto na forma de um site, em que os vários “ramos” e “sub-ramos” serão representados por páginas diferentes, para as quais se farão links que dependerão da escolha dos usuários. Assim, os alunos estarão desenvolvendo um projeto, trabalhando em equipe, aprendendo a redigir textos coletivos e a escrever “romances hipertexto”, dominando ferramentas de desenvolvimento de sites, e explorando o potencial da tecnologia Web.

Esses poucos exemplos — que certamente podem ser complementados por vários outros — mostram que, apesar de tudo o que se diz sobre o potencial da Web para instituições comerciais (empresas), seu potencial para a educação talvez seja ainda muito maior: apenas não foi ainda muito explorado porque se tem concentrado demais apenas no potencial da Web como fonte de informação.

b. Comunicação e Fóruns de Discussão

Correio Eletrônico

A Internet vem servindo, desde o seu início (em 1969), como um sistema de troca de mensagens ou Correio Eletrônico (chamado, em Inglês, de “Electronic Mail”, ou, simplesmente, de “E-Mail”). Embora esta não tenha sido a principal aplicação prevista para a Internet pelos seus criadores, ela acabou se tornando, rapidamente, a mais popular — embora hoje sua popularidade sofra a concorrência da Web.

A principal função de um sistema de Correio Eletrônico é permitir que os usuários de uma rede (no caso, das redes que formam a Internet) enviem mensagens eletrônicas uns para os outros. Uma mensagem normalmente é um bilhete ou uma carta, mas ela pode ser acompanhada de arquivos “fechados”, que funcionam como “anexos”, nos quais pode ser incluído qualquer conteúdo. Esses anexos podem ser, por exemplo, documentos gerados por um processador de texto (relatórios, projetos, etc.), planilhas eletrônicas, gráficos, esquemas, plantas, desenhos, arquivos de som e de imagem, até clips de vídeo.

Para que possa haver troca de mensagens eletrônicas, através da Internet, várias condições precisam ser preenchidas.

  1. As pessoas precisam ter acesso à Internet, através de um computador pertencente a uma rede permanentemente conectada à Internet, ou, então, através de um computador que possua um modem e que aceda a um Provedor de Acesso à Internet por uma linha discada (telefone). (Numa escola, se os computadores estiverem em rede e a rede estiver conectada à Internet, todos os usuários dos computadores da rede podem, em princípio, ter acesso a Correio Eletrônico).
  2. Cada rede permanentemente conectada à Internet e cada provedor de acesso precisa ter pelo menos um computador ligado na Internet 24 horas por dia, sete dias por semana, que funcione como “Agência de Correio”, bem como um responsável por essa agência: o Chefe do Correio, ou o “PostMaster”. (É sempre possível, porém, usar uma agência de correio de terceiros, como, por exemplo, a do provedor).
  3. Cada pessoa que deseja se tornar um usuário do Correio Eletrônico precisa receber um “Endereço Eletrônico”, que geralmente é o seu nome de usuário na rede (ou de acesso ao provedor), mais o caractere especial @ (pronunciado “arroba”), mais o nome do domínio ao qual está sujeito o computador que funciona como a agência do correio do usuário — tudo sem espaço. Eis um exemplo de endereço eletrônico: chaves@mindware.com.br. Aqui o nome de domínio ao qual está vinculada a agência de correio é “mindware.com.br”. Quando se usa um provedor para aceder à Internet geralmente o nome de domínio é o do provedor (“uol.com.br”, por exemplo).
  4. Cada usuário da rede precisa ter acesso a um software (geralmente chamado de “Correio Eletrônico”) que lhe permita compor e enviar as mensagens que desejar remeter, bem como receber, ler e armazenar as mensagens que lhe forem enviadas. Esse software deve estar instalado em seu computador.

Se uma mensagem é enviada de um usuário para outro e ambos estão cadastrados na mesma agência de correio, a mensagem vai do computador do remetente para a agência de correio e desta para o computador do destinatário  — mesmo que os correspondentes se sentem lado a lado e a agência de correio esteja em outro andar do prédio. Isso acontece porque Correios Eletrônicos são sistemas de comunicação assíncrona via rede. Isso significa que, para uma determinada pessoa mandar uma correspondência para outra, não é necessário que esta esteja com seu software de Correio Eletrônico carregado, nem mesmo que esteja com seu computador ligado. A mensagem que lhe é enviada fica armazenada na agência de correio (que é o Servidor de mensagens) e, quando o destinatário da mensagem ligar o seu computador e carregar o software de Correio Eletrônico (que é o Cliente), será informado de que há mensagem esperando por ele. Nesta ocasião ele poderá lê-la, apagá-la, responder a ela, reenviá-la para outro usuário, ou arquivá-la em uma “Pasta Eletrônica”.

Se os dois usuários (remetente e destinatário) estão conectados a uma mesma rede local (o que provavelmente será verdade se ambos estão cadastrados na mesma agência de correio), a mensagem estará disponível para o destinatário na agência de correio quase instantaneamente. Se o destinatário estiver com seu computador ligado e o software de Correio Eletrônico carregado, ele receberá a mensagem uns poucos segundos depois de ela ter sido remetida.

Se uma mensagem é enviada de um usuário para um outro usuário, cadastrado em uma agência de correio diferente, a mensagem vai do computador do remetente para a sua agência do correio, desta para a agência de correio do destinatário, e desta para o computador do destinatário — passando, provavelmente, no processo, por vários outros computadores, caso os dois usuários estejam em localidades bem distantes (digamos, um em Campinas, SP, o outro em Hong Kong, China). Também neste caso (com maior razão) não é necessário que o destinatário esteja com seu software de Correio Eletrônico carregado, nem mesmo que esteja com seu computador ligado — na verdade, se estiver em Hong Kong, provavelmente vai estar dormindo quando seu correspondente de Campinas lhe enviar a mensagem. A mensagem que lhe é enviada fica armazenada na sua agência do correio e, quando ele ligar o seu computador e carregar o software de Correio Eletrônico, será informado de que há mensagem esperando por ele. Nesta ocasião ele poderá lê-la, apagá-la, responder a ela, reenviá-la para outro usuário, ou arquivá-la em uma “Pasta Eletrônica”.

Se os dois usuários (remetente e destinatário) estão conectados a redes locais diferentes (o que provavelmente será verdade se eles estão cadastrados em agências de correio distintas), a mensagem poderá levar algum tempo para ficar disponível para o destinatário na sua agência de correio. É difícil prever exatamente quanto tempo, porque o tempo depende da distância entre as duas agências de correio, do número de computadores que agem como intermediários, da quantidade de tráfego na rede e do grau de ocupação dos computadores que intervêm no processo, etc. Em dias de semana, em horários de pico, pode levar até algumas horas; em fins de semana, ou à noite, pode levar não mais do que alguns minutos. De qualquer maneira, se o destinatário estiver com seu computador ligado e o software de Correio Eletrônico carregado quando a mensagem chegar à sua agência de correio, ele a receberá quase que imediatamente, não havendo demora nesse segmento do percurso.

O software de Correio Eletrônico (cliente) permite que o usuário realize diversas tarefas:

  • Prepare suas mensagens, usando um Editor de Texto embutido no próprio software (que geralmente é um processador de texto não muito sofisticado) e as envie, assim que redigidas;
  • Envie uma mensagem que consista de um texto preparado anteriormente com um processador de texto próprio (digamos, Microsoft Word);
  • Envie, como anexo à mensagem, um arquivo qualquer;
  • Envie cópia de uma mensagem para terceiros;
  • Envie uma mesma mensagem para vários usuários ao mesmo tempo (“circular”);
  • Responda a uma mensagem sem ter que endereçá-la;
  • Envie uma mensagem recebida de um usuário para outro usuário (o chamado “reenvio”);
  • Armazene em disco as mensagens recebidas e uma cópia de mensagens enviadas;
  • Organize as mensagens armazenadas em disco em pastas eletrônicas personalizadas;
  • Pesquise as mensagens armazenadas por destinatário, remetente, assunto, data ou conteúdo;
  • Elimine mensagens ou cópias de mensagens não mais desejadas;
  • Mantenha um Livro de Endereços eletrônico com os endereços eletrônicos das pessoas com as quais se comunica com freqüência.

A seguir, algumas telas do software Microsoft Outlook Express, que é um software de Correio Eletrônico (cliente) que é fornecido junto com Windows 98.

Esta é a tela principal de Microsoft Outlook Express. Ela possui três painéis. No da esquerda são exibidos os nomes das pastas eletrônicas usadas para arquivar as mensagens. No painel da direita são exibidas informações sucintas sobre as mensagens armazenadas na pasta eletrônica selecionada (no caso, “Inbox”, ou Caixa de Entrada, onde ficam as mensagens recebidas que não foram ainda arquivadas em pastas eletrônicas nem eliminadas). Para cada mensagem recebida há informação sobre quem a enviou, o assunto que o remetente usou para identificar a mensagem, o dia e a hora do recebimento. O painel de baixo exibe o início da mensagem selecionada (no caso, um usuário com nome “tech-man98”, cujo domínio é “usa.net”.

Esta tela é a utilizada para compor ou redigir uma mensagem. Chega-se a ela clicando duas vezes no primeiro ícone da barra de ferramentas da tela anterior.

Nessa tela, há um cabeçalho, com quatro campos. O primeiro deve conter o endereço eletrônico do destinatário. Se o destinatário está cadastrado no livro de endereços, basta colocar o nome; caso contrário é preciso colocar o endereço eletrônico completo. O preenchimento desse primeiro campo é, obviamente, imprescindível. O segundo campo (de preenchimento facultativo) pode conter o nome ou endereço eletrônico de alguém a quem se queira mandar uma cópia da mensagem. (“Cc” geralmente quer dizer “Com cópia”, em Português; em Inglês as iniciais indicam “Carbon copy”, ou, no caso de mensagens eletrônicas, em que não faz sentido falar em papel carbono, “Cópia de cortesia”). O terceiro campo é idêntico ao segundo exceto pelo fato de que os nomes ou endereços eletrônicos ali inseridos serão ocultados do destinatário. Usa-se esse campo caso se deseje enviar uma cópia da mensagem para terceiros sem que o destinatário tenha conhecimento do fato. (O “B” em “Bcc” quer dizer “blind”, ou “cego” — na verdade, “invisível”). O quarto campo (também de preenchimento facultativo, mas altamente recomendado) deve conter uma frase que descreva o conteúdo da mensagem. “Subject”, naturalmente, quer dizer “Conteúdo” ou “Assunto”. Se a mensagem que estiver sendo enviada for uma resposta a outra mensagem, Microsoft Outlook Express já coloca “Re:” (para “Reply” / “Resposta”, ou “Reference” / “Referência”) mais o assunto da mensagem original. Se a mensagem que estiver sendo enviada foi recebida de uma pessoa e está sendo encaminhada a outra, Microsoft Outlook Express coloca “Fwd:” (para “Forward” / “Reenvio”) mais o assunto da mensagem original. Outros programas, ou este mesmo programa em Português, pode usar convenções um pouco diferentes.

Embaixo do cabeçalho há o espaço em que se redige a mensagem. Uma vez redigida, um clique no primeiro ícone da barra de ferramentas é suficiente para enviá-la.

Esta tela contém uma mensagem recebida. Os campos do cabeçalho contêm, respectivamente, o nome do remetente, a data e a hora em que a mensagem foi enviada, o endereço eletrônico do destinatário e o assunto (que é uma resposta a uma mensagem enviada). Embaixo do cabeçalho fica o texto da mensagem. Se ele não couber todo no espaço previsto, é preciso rolar o texto, clicando na barra de rolagem à direita do espaço. Neste caso, como a mensagem recebida é uma resposta, um trecho da mensagem original, à qual aqui se responde, é inserido no corpo da mensagem, para que o destinatário se lembre do que se trata.

Esta é a tela do livro de endereços. Na janela principal há, do lado esquerdo, o nome da pessoal, e, do lado direito, o endereço eletrônico.

Há duas outras coisas (relacionadas) que precisam ser mencionadas. A primeira diz respeito à Etiqueta na Rede (que os americanos chamam de “Netiquette”). A segunda diz respeito aos chamados “Smileys” ou “Emoticons”.

Quando nos comunicamos pessoalmente, temos uma série de pistas, geralmente visuais e auditivas, sobre como devemos conduzir nossa conversa. Se temos diante de nós uma senhora distinta, bem vestida, com um timbre de voz agradável e uma dicção clara, nossa linguagem provavelmente será diferente da que usaremos para conversar com um menino de doze anos, versado na gíria mais recente. Sabemos (em geral) usar a linguagem certa para cada interlocutor ou cada ocasião. Se usamos uma linguagem mais agressiva e percebemos que nossos interlocutores se ofendem ou, pelo menos, levantam as sobrancelhas, provavelmente vamos moderar a linguagem (a menos que pretendamos deliberadamente agredi-los). Às vezes podemos abrandar uma palavra mais forte (ou mesmo um palavrão) com um tom de voz manso e uma inflexão carinhosa, ou com um leve sorriso nos lábios e um olhar brincalhão, que, no conjunto, permitam que nossos interlocutores entendam nossa intenção. Gestos, toda a nossa linguagem corporal, subsidiam (ou às vezes contrariam!) nossa linguagem falada, e normalmente sabemos como decodificar todos esses sinais.

No caso do Correio Eletrônico, como no caso do correio convencional, temos que nos valer apenas da linguagem escrita, e a maioria de nós perdeu, ou nunca adquiriu, o hábito de escrever cartas bem e eficazmente. Assim, nós, hoje, em regra, escrevemos como falamos — e, às vezes, principalmente no caso do Correio Eletrônico, nos damos mal: somos mal compreendidos, ou totalmente incompreendidos, e, o que é pior, às vezes ofendemos os outros, sem querer, com a nossa linguagem. Isso acontece porque uma mensagem eletrônica não carrega consigo o tom de voz, a inflexão, o sorriso, o olhar que quem a redigiu exibiria se estivesse dizendo, de viva voz, o que está escrevendo. Além disso, porque é tão fácil responder rapidamente a uma mensagem eletrônica, freqüentemente o fazemos de “cabeça quente” (quando não gostamos do que recebemos), e o resultado é que acabamos nos engajando em guerras verbais, com ofensas lançadas de lado a lado. Isso acontece especialmente nos Grupos de Discussão que serão discutidos na subseção seguinte.

Por essas e outras razões, foi se desenvolvendo, na Internet, um Código de Etiqueta na Rede — o chamado “Netiquette Code”. Não vamos entrar nos detalhes desse código, porque isso iria levar à discussão de uma série de questões alheias ao objetivo do texto [6].

O que se chama em Inglês de “Smileys” ou “Emoticons” poderia ser chamado em Português de “Ícones de Emoção”: são figuras desenhadas com as teclas do computador que têm como objetivo introduzir alguma “emoção” no frio texto escrito. Aqui estão algumas delas:

🙂          indica que quem escreveu está brincando ao escrever o que precedeu — não leve a sério o que foi dito. (Alguns programas de Correio Eletrônico) já convertem esse sinal automaticamente em J).

😐           indica, transcrevendo trecho de uma mensagem, em resposta, que o leitor não entendeu.

😮         indica, transcrevendo trecho de uma mensagem, em resposta, que o leitor ficou surpreso.

😯        indica, transcrevendo trecho de uma mensagem, em resposta, que o leitor ficou chocado.

😦          indica que quem escreveu está triste.

:-<         indica que quem escreveu está irritado.

:-#         indica que quem escreveu está disposto a manter segredo sobre o assunto.

0:-)        indica que quem escreveu está isento de culpa em relação ao assunto.

:-\           indica que quem escreveu está indeciso.

%-(        indica que quem escreveu está tristemente confuso.

😀         indica que quem escreveu está rindo.

;-(          indica que quem escreveu está com vontade de chorar (a lágrima está quase caindo…).

😉          indica que quem escreveu está piscando (maliciosamente?) ao escrever o que precedeu.

Além dos ícones de emoção, a comunidade da Internet desenvolveu algumas convenções que ajudam a dar nuances ao texto escrito. Uma delas, talvez a mais importante, é o uso de maiúsculas. Por convenção tácita (isto é, informalmente estabelecida), o uso de maiúsculas significa que a pessoa está “dizendo” aquele trecho em voz mais alta — talvez até gritando. Por isso, nunca se deve escrever uma mensagem toda em maiúsculas. O interlocutor pode responder, de mau humor, dizendo que não é preciso gritar…

Grupos de Discussão

Um Grupo de Discussão é uma aplicação dependente de mensagens, e, por isso, é às vezes chamado de “Conferência Eletrônica” (com boa razão, como se verá, se o termo “Conferência” for entendido mais no sentido de “discussão entre várias pessoas” do que no sentido de “palestra”).

Grupos de Discussão funcionam da seguinte maneira. Um usuário de Correio Eletrônico deseja “conversar” com pessoas interessadas em um determinado assunto ou discutir determinado tema. Cria, portanto, no computador que funciona como agência de correio da rede, um Grupo de Discussão, que recebe um determinado nome — como se fosse um nome de usuário. A partir desse momento qualquer usuário da Internet pode subscrever a esse Grupo de Discussão e, depois de fazê-lo, vai poder mandar mensagens para o grupo e vai receber cópia de todas as mensagens mandadas ao grupo pelos seus membros. Assim será colocada em curso uma discussão permanente do assunto — uma verdadeira conferência eletrônica.

Ilustremos. Digamos que alguém esteja interessado em criar um Grupo de Discussão sobre o uso de Tecnologia na Educação. Cria, portanto, no computador que funciona como agência de correio do domínio “mindware.com.br” um Grupo de Discussão ao qual dou o nome de “Edutec”. O endereço eletrônico do Grupo de Discussão passa a ser “edutec@mindware.com.br”.

Até aí o processo é simples. A pessoa quer, porém, que outras pessoas participem do Grupo de Discussão. Para que outros usuários da Internet possam subscrever ao Grupo de Discussão, eles precisam interagir com um módulo normalmente chamado Gerenciador de Listas (“List Manager”, ou “listmgr”, abreviando) do software que gerencia a agência de correio. A interação dos usuários com o Grupo de Discussão se faz através envio de mensagens ao listmgr, que é o Gerenciador dos Grupos de Discussão que ficam naquela agência de correio. Para subscrever a Edutec, a pessoa envia uma mensagem para “listmgr@mindware.com.br”, cujo conteúdo é o seguinte:

join edutec

O listmgr, ao receber a mensagem, vai identificar o endereço eletrônico de quem enviou a mensagem e incluí-lo na lista de assinantes de edutec (razão porque esses Grupos de Discussão são freqüentemente chamados de “Listas de Discussão”). A partir desse momento, a pessoa vai poder mandar mensagens para “edutec@mindware.com.br” — elas serão encaminhadas para todos os assinantes do Grupo de Discussão. Também a partir desse momento, qualquer mensagem mandada para o Grupo de Discussão por outros assinantes será encaminhada para o novo membro do grupo [7].

Quando a pessoa não mais desejar participar do Grupo de Discussão, envia uma nova mensagem para listmgr, cujo conteúdo é o seguinte:

leave edutec

Recebendo essa mensagem, o listmgr removerá o endereço do remetente da lista de assinantes do Grupo de Discussão edutec e ela não mais receberá as mensagens dirigidas ao grupo.

Nem todos os Grupos de Discussão são iguais. Alguns admitem que quem não é assinante possa enviar mensagens ao grupo, outros não. Alguns não são moderados: toda e qualquer mensagem enviada para o grupo é distribuída aos assinantes, na forma em que foi enviada. Assim, se o remetente foi inconveniente, rude, usou palavrões, expressões racistas, sexistas, ou de qualquer outra natureza, todos vão receber a mensagem e, provavelmente, uma guerra verbal terá início. Por causa disso, alguns Grupos de Discussão são moderados: o criador do grupo, ou alguém que o suceda como administrador do grupo, recebe as mensagens dirigidas ao grupo, as lê e, se necessário, as edita antes de distribuí-las aos assinantes. Esse procedimento faz com que vários dissabores sejam evitados. Entretanto, exige muito mais tempo e envolvimento do administrador do grupo (que vai ter que agüentar reclamações por vezes iradas de quem teve mensagens “censuradas”), e, de certo modo, vai contra o espírito libertário, quase que anárquico, que normalmente impera na Internet. Alguns Grupos de Discussão são moderados apenas “de leve”: o administrador não censura aspectos substantivos da discussão, nem mesmo a linguagem, mas impede a distribuição de mensagens que nada acrescentam à discussão (como, por exemplo, mensagens em que um usuário apenas endossa o que outro escreveu dizendo algo como “Taí — gostei!”, ou coisa que o valha).

Como é que os usuários da Internet ficam sabendo da criação de um novo Grupo de Discussão? Normalmente através de mensagens eletrônicas, de páginas Web, de revistas especializadas, ou de palavra de boca.

Potencial dos Fóruns de Discussão para a Educação

Do que foi dito acerca de Correio Eletrônico e Grupos de Discussão fica claro que seu potencial para a educação pode ser muito grande. O processo educacional envolve, necessariamente, comunicação, e o Correio Eletrônico e os Grupos de Discussão são ferramentas de comunicação.

Em muitas escolas, o Correio Eletrônico já é usado para que professor e alunos, e alunos entre si, se comuniquem uns com os outros. Neste caso, se professor e alunos têm acesso à Internet a partir de suas casas, a comunicação pode acontecer até mesmo fora dos horários de funcionamento da escola. Em Universidades, o Correio Eletrônico muitas vezes se torna uma via suplementar importante de comunicação do professor com a classe e dos alunos entre si e com o professor (especialmente porque, na Universidade, o conceito de “classe” tende a desaparecer com o regime de matrícula por disciplinas: poucos são os alunos que cursando exatamente as mesmas disciplinas num dado semestre).

Para facilitar a discussão dos temas de interesse da classe, é possível criar um Grupo de Discussão dos alunos da classe. Nesse caso, cada mensagem é distribuída automaticamente a todos e a contribuição de cada um pode ser apreciada por todos — com a vantagem de que fica permanentemente registrada. Se o Grupo de Discussão for complementado com um site Web (ainda que apenas na Intranet da escola), é possível colocar no site material de leitura, comunicados, links para outros sites de interesse, etc.

Num plano mais amplo, porém, professores e alunos podem se beneficiar da comunicação com pessoas de fora da escola (de outras escolas, de Universidades, ou mesmo de fora de instituições educacionais), da participação em Grupos de Discussão mantidos fora da escola, etc. Alguns empreendimentos já se especializam em colocar alunos de país em contato com alunos de outro país que tenham interesses afins, para que um possa se familiarizar com a cultura e a língua do outro. (Naturalmente, num caso assim, a língua pode ser uma barreira. Este fato, longe de contradizer, corrobora a afirmação feita atrás de que o domínio da língua materna, do Inglês e do Espanhol é hoje indispensável — não só em contextos comerciais, mas até, e, talvez, especialmente, em contextos educacionais).

NOTAS

[1] Todo professor sabe que a criança que aprende a falar em ambientes onde se cultiva o falar correto, tanto em termos de pronúncia como de gramática, cresce, em regra, falando corretamente, mesmo sem aprender as regras de pronúncia e gramática. Se além de ouvir uma linguagem corretamente falada, ela desenvolve o hábito da boa leitura, ela, com grande probabilidade, vai, além de falar certo, também escrever corretamente, porque não só seus ouvidos estarão treinados: seus olhos também.

[2] O Aurélio também não registra “conceitual”, apenas “conceptual”.

[3] Nisto tem o apoio do Aurélio que especifica que a forma correta é “destrui”, ao dizer que o verbo “destruir” se conjuga como “atribuir”.

[4] A observação só faria sentido se “hipermídia” fosse um termo plural, o que, etimologicamente, seria o caso. Na prática, porém, “hipermídia” e “multimídia” têm uso consagrado no singular.

[5] Já que estamos falando de segurança, é bom mencionar dois outros problemas de segurança, além do aqui tratado (captura de informação transmitida online). O primeiro é o problema de invasão de um computador, ou, através dele, de uma rede, com conexão direta à Internet. Esse problema é sério. Até mesmo computadores da NASA têm sido invadidos. Há, hoje em dia, vários procedimentos que visam a impedir, ou, pelo menos, a dificultar, essa invasão. Normalmente se refere a eles pelo nome genérico de “firewalls” (paredes de incêndio) — a metáfora é a da construção de paredes de incêndio ao redor do computador para evitar que invasores possam penetrá-lo. Esse problema, contudo, basicamente não afeta quem se conecta à Internet via linha discada. O segundo problema é a transmissão de vírus — e esse problema afeta mesmo os usuários conectados via linha discada. Todas as vezes que se transfere um arquivo de um computador para outro, especialmente se o arquivo é executável (do tipo .EXE, por exemplo), há o risco de transmissão de vírus. A única proteção, neste caso, é usar um antivírus no arquivo antes de usá-lo. É preferível usar um antivírus que detecte vírus em arquivos comprimidos (“zipados”), sem precisar antes descomprimi-los, porque os arquivos que são “baixados” (descarregados) da Internet estão, em geral, comprimidos (para ser transferidos mais rapidamente).

[6] Mas há até mesmo livros com nomes como Toward an Ethics and Etiquette for Electronic Mail e The Elements of E-mail Style que discutem a questão em profundidade. O primeiro, de autoria de Norman Z. Shapiro e Robert H. Anderson, é publicado pela Rand Corporation, em convênio com a National Science Foundation (Santa Monica, CA, 1985). O segundo, de autoria de David Angell e Brent Heslop, é publicado pela Addison-Wesley Publishing Company (Reading, MA, 1994).

[7] A propósito, o Grupo de Discussão “Edutec” existe de fato e o leitor pode participar dele seguindo o procedimento descrito.

Eduardo O C Chaves
Campinas, Dez/98

Transcrito aqui em Salto, 3 de Fevereiro de 2016

O Futuro da Escola na Sociedade da Informação – III

[ Abaixo, o segundo capítulo do meu livro Tecnologia e Educação: O Futuro da Escola na Sociedade da Informação, cuja história é parcialmente descrita no primeiro post desta série. Esclareço, para facilitar a vida do leitor, que este livro foi escrito há quase exatamente 17 anos, nos meses de Novembro e Dezembro de 1998, a pedido do PROINFO, Programa de Informática na Educação do Ministério da Educação, que estaria publicando, em prazo curtíssimo, uma coleção de 20 livros sobre o tema “Informática para Mudança na Educação”. Para o resto da história, por favor, leia o início do primeiro post da série. Trata-se, portanto, de um texto “datado”, porque poucas coisas mudam tão rápido na nossa sociedade como a tecnologia. Infelizmente, a educação muda, quando muda, muito devagar. ]

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II. O Computador como Tecnologia Educacional

1. O Computador como Tecnologia Bélica

É sabido e notório que o primeiro computador foi desenvolvido como parte do esforço de guerra dos Estados Unidos na década de 40. Concluído apenas em Fevereiro de 1946, não pode ser usado na Segunda Guerra Mundial. Um enorme investimento, aparentemente sem utilidade agora. Mesmo assim, no quadro de insegurança que se gerou ao final da guerra, com a União Soviética controlando boa parte da Europa, um segundo projeto também foi encomendado e financiado pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos, e, portanto, pelas Forças Armadas americanas. Nenhum desses computadores foi fabricado em linha em uma empresa: eles foram feitos em laboratórios universitários, apenas um de cada espécie.

O primeiro computador eletrônico foi desenvolvido sob a coordenação de John W. Mauchly e J. Presper Eckert na Escola de Engenharia Moore da Universidade de Filadélfia. Recebeu o nome de ENIAC — Electronic Numeric Integrator and Calculator. Como o seu nome indica, o ENIAC era apenas uma calculadora sofisticada. Seu objetivo principal e maior era o de calcular trajetórias balísticas, para que as bombas arremessadas pelos Aliados na Europa tivessem melhores chances de alcançar os alvos a que se destinavam. Como vimos, não deu tempo de testá-lo em condições reais de uso.

Apenas para dar uma idéia das diferenças entre este primeiro computador eletrônico e os computadores de hoje, o ENIAC requeria um espaço de cerca de 175 metros quadrados (1500 pés quadrados), pesava 30 toneladas, e possuía mais de 18.000 válvulas (transistores e circuitos integrados ainda não existiam). Para operá-lo era necessário ativar cerca de 6.000 mil interruptores, que estavam dispostos em 40 painéis da altura de um ser humano e que controlavam perto de 1.500 relês. O ENIAC era capaz de manipular 300 números por segundo e de multiplicar dois números em três milisegundos (três milésimos de um segundo), assim diminuindo de 15 minutos para 30 segundos o tempo necessário para calcular a trajetória de artilharia, bombas e mísseis.

Julgado pelos padrões de hoje, entretanto, o ENIAC não era muito eficiente. Em termos de velocidade de cálculo, a sua, quando comparada à dos computadores de hoje, era ridiculamente baixa. Uma calculadora eletrônica programável de hoje, que custa relativamente pouco, calcula bem mais rapidamente do que o ENIAC o fazia. Em termos de energia, então, seu consumo era da ordem de 140.000 watts (140 kilowatts), o suficiente para manter uma pequena estação geradora de energia elétrica ao seu lado. Consta que, quando ele era ligado, a intensidade das luzes de Filadélfia enfraquecia. O calor gerado por ele colocava sérios desafios para os engenheiros responsáveis por sua refrigeração. Sua capacidade de memória era extremamente pequena: apenas o equivalente a cerca de vinte palavras de dez caracteres.

As suas válvulas se queimavam com tal rapidez que consta que havia técnicos responsáveis exclusivamente pela detecção e substituição das válvulas queimadas. Com o número de válvulas que possuía, não tinha condições de funcionar por muito tempo antes que uma válvula se queimasse. Um crítico do projeto chegou a fazer os seguintes cálculos. Havendo 18.000 válvulas no sistema, e sendo a vida útil de uma válvula em média de 3.000 horas, depois de um certo tempo haveria uma válvula queimada a cada 15 minutos; como se levavam em média 15 minutos para detectar e trocar uma válvula queimada, o ENIAC teria que ficar parado a maior parte do tempo!

Mas o pior era a inflexibilidade do ENIAC. Ele não era programável através de programas elaborados com a ajuda de linguagens de programação, como hoje se faz, e, conseqüentemente, não usava programas, no sentido que o termo possui atualmente. Ele armazenava dados, mas, para que executasse uma tarefa, as instruções a serem seguidas tinham que ser implementadas manualmente, no equipamento, alterando-se a configuração dos interruptores do painel — isto é, mexendo na máquina, propriamente dita. Havia, como vimos, cerca de 6.000 desses interruptores no ENIAC, e eles precisavam ser manualmente “reprogramados” (atividade que levava cerca de dois dias) para que o ENIAC deixasse de executar uma tarefa e passasse a executar uma outra. A noção de uma máquina controlada por programa, no sentido atual do termo, e, portanto, por software, por algo que não é matéria, rígida (“hardware”), mas é lógica, imaterial (“software”), ainda não havia emergido.

Foi tarefa do famoso matemático John von Neumann húngaro-alemão-americano introduzir a inovação de um computador controlado por software, ao conceber o computador que representou o estágio seguinte da evolução dos computadores, o EDVAC — Electronic Discrete Variable Automatic Computer. A novidade desse equipamento é que ele podia utilizar vários programas diferentes, que ficavam armazenados em sua memória, juntos com os dados, e que eram executados à medida que fossem necessários, sem precisar alterar fisicamente os interruptores do painel. O EDVAC, portanto, era bem mais flexível do que o ENIAC, pois todas as instruções necessárias para o seu funcionamento ficavam armazenadas dentro dele mesmo. A memória do computador seria, dessa forma, usada não só para armazenar dados, mas, também, para armazenar as próprias instruções  que o computador deveria obedecer para fazer algo de útil ou interessante. Assim, em vez de ser necessário alterar interruptores manualmente, cada vez que se desejasse que a máquina executasse uma tarefa diferente, a máquina, em fração de segundos, “leria” as instruções armazenadas em sua memória, que a instruiriam a fazer algo diferente.

A partir desse momento o computador passou a ser, em princípio, uma máquina, além de rápida (para os padrões da época),  altamente flexível, pois não havia mais limite para as tarefas que poderia vir a executar. Ele  se tornou capaz de alterar seus próprios padrões de operação, sem precisar esperar que seus interruptores fossem alterados manualmente. Podia, assim passar de um problema para outro, ou de uma fase para outra de uma mesma tarefa, sem intervenção externa. Podia, até mesmo, alterar a seqüência das instruções a serem executadas, dependendo dos resultados do próprio processamento.

Nesse momento o computador passou a ser um sistema integrado de hardware e software, de equipamento e programas. O hardware, a parte sólida, dura, “hard”: o equipamento, propriamente dito, com seus componentes físicos, eletromecânicos e eletrônicos; o software, a parte não sólida, intangível, que, por oposição, foi chamada de “macia”, “soft”, o programa, a lógica.

2. O Computador como Tecnologia Empresarial

Essa inovação de von Neumann abriu as portas para novos usos do computador. Logo se percebeu que era possível conectar sensores a ele de modo que pudesse controlar processos industriais. Ao mesmo tempo se percebeu que era possível dar às letras do alfabeto códigos numéricos e, assim, fazer com que o computador manipulasse texto e não apenas números. Assim, tornou-se viável fabricar computadores comercialmente, para vendê-los para indústrias, empresas de comércio e serviços e órgãos administrativos do governo.

O primeiro computador desenvolvido em escala comercial foi o UNIVAC — Universal Automatic Computer, fabricado pela Remington Rand, que havia comprado uma companhia que Mauchly e Eckert (os criadores do ENIAC) haviam criado. O projeto de desenvolvimento do UNIVAC contou com a participação dos criadores do ENIAC. O primeiro UNIVAC foi entregue em 14 de junho de 1951 e o cliente foi o Serviço de Recenseamento dos Estados Unidos (US Census Bureau). Porque a clientela visada pelo UNIVAC não eram, primariamente, as instituições militares, os institutos de pesquisa, ou as faculdades de engenharia, o UNIVAC foi otimizado para aplicações tipicamente comerciais. Mais tarde a divisão de computadores da Remington Rand passou a chamar-se Sperry Corporation que, mais tarde, recebeu o nome de Sperry-Univac, em honra ao primeiro computador comercial.

Note-se que a IBM, durante esses anos estratégicos em que várias companhias estudavam a possibilidade de desenvolver um computador comercial, ainda não acreditava plenamente que houvesse mercado para ele. Consta que um estudo especializado encomendado pela empresa nessa época concluía que o mercado de computadores era extremamente restrito, constituindo-se apenas de corporações militares, grandes universidade e institutos de pesquisa. O relatório teria dito que no mundo não haveria mercado para mais do que uns quinze computadores, razão pela qual a IBM não se interessou por atuar na área — quase ficando de fora dela para sempre. Só em meados da década de 1960 a IBM lançou um computador de sucesso (o System /360) e entrou para valer na guerra pelo mercado de informática, que acabou ganhando — até que, na década de 90, quase soçobrou.

Num certo sentido, o relatório feito para a IBM não estava de todo errado. Dado o alto custo de fabricação de um computador, e dada, também, a sua confiabilidade relativamente baixa (porque a tecnologia digital ainda estava em sua infância), os primeiros computadores não foram sucesso imediato de venda. Custou para que as empresas e os órgãos burocráticos do governo (para não falar de outras instituições) percebessem a grande utilidade que máquina poderia ter. As companhias aéreas estiveram entre as primeiras a perceber a grande utilidade do computador e de um bom sistema de banco de dados, especialmente quando se tornou claro que os terminais do computador podiam estar distantes dele, ficando a ele conectados através de fios dedicados ou até mesmo através dos fios das companhias telefônicas.

Eventualmente, a confiabilidade dos equipamentos aumentou, a demanda cresceu, e o preço baixou — e o computador se tornou um grande sucesso comercial. Várias aplicações até então impensáveis começaram a surgir: sistemas de contabilidade, folhas de pagamento, bancos de dados de vários tipos (clientes, fornecedores, estoque, etc.). Na área industrial, os sistemas de controle de processos industrial começaram a criar os fundamentos do que se tornaria a área de automação industrial e robótica.

3. O Computador como Meio de Comunicação

Ao mesmo tempo, porém, começou a se perceber, pouco a pouco, o potencial do computador para áreas que até aquele momento não haviam sido cogitadas. Por um bom tempo a tecnologia somente evoluiu na direção de máquinas cada vez maiores e mais potentes (chamadas computadores de grande porte, ou “mainframes”, às vezes “super mainframes”) que concentravam o processamento, ficando os usuários limitados ao uso de terminais “burros” (porque não realizavam nenhum processamento, dependendo totalmente do computador central), se bem que remotos — às vezes extremamente remotos.

Um pequeno indício do que estava por vir pode ser visto quando, no início da década de 70,  algumas companhias começaram a fabricar “minicomputadores”— que, apesar do nome, eram máquinas relativamente grandes, quando comparadas às de hoje. Na época a IBM já dominava o cenário (era a “gigante”) e as empresas que começaram a se aventurar pela área de minicomputadores (chamadas, por contraste, de “sete anãs”) eram: Sperry-Rand (a fabricante do UNIVAC), Control Data, National Cash Register (NCR), Honeywell, Burroughs, General Electric e RCA. Depois surgiu a Digital Electronic Corporation (DEC), fabricante dos famosos PDPs e, depois, da linha DEC. Várias dessas empresas (General Electric e RCA, por exemplo) não mais atuam na área de computadores.

Mas a maior revolução estava reservada para o final da década de 70. No ano de 1975 uma empresa começou a comercializar um computador em forma de kit — o Altair. Foi um sucesso — se bem que apenas entre engenheiros e aficionados da arte, que tinham condições de montar o kit e, depois, de usar o computador resultante. O grande mérito do Altair foi mostrar a outros empreendedores que havia mercado para computadores baratos e pequenos — que fossem percebidos como máquinas pessoais. Assim, no final de 1977, em tempo de pegar a febre das compras de fim de ano, a Commodore Business Machines (fabricante de calculadoras), a Radio Shack (rede de materiais eletrônicos para hobbystas) e a Apple Computers (fundada por dois adolescentes em uma garagem) lançaram computadores pessoais no mercado: respectivamente, o PET (Personal Electronic Transactor — mas a sigla tem um significado em Inglês: mascote), o TRS-80 (TRS representando Tandy-Radio Shack, Tandy sendo o nome do franqueador das lojas Radio Shack), e o Apple II (sem que jamais tivesse havido um Apple I).  O sucesso foi instantâneo. De repente toda empresa de alta tecnologia parecia estar disposta a lançar um computador no mercado. A primeira versão de uma linguagem de programação para esses computadores foi desenvolvida por um jovem, Bill Gates, que abandonou seu curso superior em Harvard porque teve a visão (que o tempo mostrou ser correta) de que o software, um dia, seria mais importante do que a máquina em si. A companhia que ele criou se chamava Microsoft — software para computadores.

Mas nem todas as empresas de alta tecnologia lançaram computadores de imediato: a IBM resolveu pagar para ver. Esperou até 1981 para lançar o seu computador, o IBM PC (Personal Computer), que consagrou a sigla “PC” e se tornou um sucesso imediato de vendas. Mas a IBM fabricou um computador sem realmente acreditar nele. Por isso, fabricou-o com componentes do mercado, sem usar uma parte sequer que fosse propriedade sua. Além disso, a IBM contratou a Microsoft (até então empresa pequena, sem projeção) para desenvolver o Sistema Operacional (software indispensável para o funcionamento do computador) e não exigiu exclusividade: deixou que a Microsoft pudesse vender o software a quem quisesse.

O fato de que o hardware do PC era feito de componentes facilmente encontráveis no mercado fez com que no mundo inteiro surgissem, rapidamente, “clones” do PC. E a Microsoft estava lá para vender-lhes o mesmo Sistema Operacional que a IBM usava, porque esta não havia exigido exclusividade. O resto é história. Os clones do PC da IBM dominaram o mercado.  A IBM ficou apenas com uma pequena fatia do mercado de computadores (embora fosse, por um tempo, a maior fatia — a explicação é que havia centenas de concorrentes).

Nem o sucesso do IBM PC acordou a IBM. Por muito tempo ela ainda colocou mais fé nos seus computadores de grande porte, achando que os computadores iriam servir apenas para que os usuários de sistemas de grande porte ganhassem acesso aos equipamentos centrais. Isto é, a IBM, que, batizando de IBM PC um computador de tecnologia relativamente simples (havia equipamentos com tecnologia muito mais sofisticada no mercado), deu credibilidade ao mercado de computadores, mostrando que era um mercado sério nos quais as empresas poderiam investir, achava, ela mesma, que os computadores serviriam apenas como terminais de equipamentos maiores — terminais não mais burros, mas ainda assim terminais, que serviriam apenas para levar e trazer dados entre grandes máquinas centrais e seus terminais. A IBM quase pagou com a sua própria sobrevivência o seu segundo grande erro — o primeiro foi demorar a entrar no mercado de computadores. Hoje, quase vinte anos depois, após drástica reengenharia e reposicionamento no mercado, a IBM está novamente forte — sem bem que mais enxuta e com sérios concorrentes em todas as áreas em que antigamente dominava absoluta.

Mas os computadores causaram uma revolução.

Em primeiro lugar, mostraram que computadores não eram apenas para profissionais de informática, mas para qualquer pessoa que tivesse algo a fazer e que encontrasse um software que o ajudasse a fazer melhor ou mais eficientemente o que tinha que fazer.

Em segundo lugar, porque os computadores rapidamente ganharam interfaces gráficas [1] que os equipamentos de grande porte levaram mais de dez anos para conseguir — e nem todos conseguiram ainda. A Xerox, em seu Palo Alto Research Center (PARC), em Palo Alto (perto de Cupertino onde era a sede da Apple, no Vale do Silício, na Baía de São Francisco), tinha desenvolvido, sob a inspiração de Douglas Engelbart, do Stanford Research Institute (SRI), uma interface gráfica para o seu computador chamado Alto: várias janelas simultaneamente na tela, menus que descem ou irrompem na tela, ícones, mouse, etc. A Xerox, por razões que até hoje desafiam os historiadores, nunca realmente comercializou o seu sistema seriamente. Steve Jobs, da Apple, foi lá, gostou e copiou — e dali surgiu (depois do fracassado Lisa) o famoso Apple Macintosh, que fez um tremendo sucesso, especialmente com artistas gráficos, técnicos de editoração, profissionais de marketing, pessoal interessado em fotografia, cinema, e vídeo. Na área de digitalização e sintetização do som o Macintosh não foi tão bem sucedido, mas aí entrou o Amiga, da Commodore, talvez um dos computadores mais interessantes que jamais tenham sido feitos, mas que teve um público também específico demais: o pessoal de som (e, por extensão, de vídeo). Por atraírem públicos muito especializados, o Macintosh e o Amiga nunca se tornaram grandes sucessos comerciais nos escritórios. Ali o IBM PC e seus clones reinaram soberanos. Mas o Macintosh e o Amiga dividem o crédito de terem inventado multimídia.

Levou anos para a Microsoft conseguir copiar a interface do Macintosh — só sendo bem sucedida em 1990, com a versão 3.0 de Windows. De lá para cá o sucesso passou a ser da Microsoft: a guerra do software suplantou a guerra do hardware — como Bill Gates, todo-poderoso acionista principal da Microsoft soube que seria o caso, muito cedo em sua vida, quando não tinha ainda 20 anos. Esse “insight”, muito trabalho, um bocado de sorte, e práticas concorrenciais agressivas, fizeram dele hoje nada menos do que o homem mais rico do mundo.

Para nossa finalidade aqui o importante é que os computadores, especialmente depois que se interligaram em rede, e principalmente depois que a Internet deixou de ser um brinquedo acadêmico, passando a ser usada comercialmente, acabaram fazendo do computador um meio de comunicação — na verdade, o meio de comunicação por excelência. É importante entender como isso ocorreu.

Primeiro foi a impressão a sucumbir, porque o texto foi se tornando mais e mais digital, até que, em contextos profissionais, não se concebia mais um texto escrito a mão ou a máquina. Com o surgimento dos computadores e de processadores de texto amigáveis, não intimidatórios, foi decretado o fim da máquina de escrever e começou a revolução em escritórios, redações de jornais e revistas, editoras, casas de todos aqueles que escrevem e em quase todo lugar em que se usa a escrita. A arte de escrever mudou, como mudou a arte de editar (e de  “editorar”, isto é, de formatar, diagramar, fazer “paste up”, de, enfim, preparar um texto para impressão). Jornais de mais de 200 páginas começaram a ser publicados aos domingos, as revistas se multiplicaram, cresceram de tamanho, ficaram mais atraentes, a distribuição ficou mais rápida até o ponto em que hoje podemos ler os jornais e as revistas na Internet antes de que cheguem às bancas. Publicar um livro, depois de concluído o texto, virou questão de semanas, quando não de dias, quando antes era questão de meses, quiçá de um ano. E os textos passaram a exibir fontes raras e exóticas, gráficos, desenhos, uma série de adornos e atrativos que antes exigiam muito trabalho braçal. A impressão também foi computadorizada, decretando o fim das tipografias, dos linotipos, das antigas fotocompositoras. Hoje não se concebe a impressão sem o computador.

Enquanto isso, o som ia se tornando digital, ou por digitalização (conversão do som analógico em digital) ou por sintetização (produção ou geração de um som  já digital). De um lado, o surgimento dos CDs ajudou decisivamente nesse processo. Pouca gente punha fé, no início, em que as pessoas fossem abrir mão de suas velhas coleções de discos de vinil — long-plays, compactos e até mesmo discos de 78 rotações. Mas o CD chegou e venceu — mais do que venceu, tirou a concorrência do mapa. A fita cassete ainda resiste por causa de toca-fitas em carros — mas o CD vai ganhar ali também. Junto com os CDs vieram os teclados eletrônicos, as guitarras eletrônicas — e suas interfaces “MIDI” (Musical Instrument Device Interface), que permitem que o som gerado por esses instrumentos seja gravado em disquete e/ou transportado diretamente para um computador. Hoje as rádios e os telefones transmitem som digital, e os fios telefônicos, as antenas de micro-ondas, os satélites, e as ondas eletromagnéticas em geral carregam som digital. Através da Internet podemos ouvir a Jovem Pan no Japão, a 98 FM no Alasca.

Com um pouco de atraso a imagem foi se digitalizando. A fotografia convencional vive hoje seus últimos dias. Quem vai querer lidar com filmes, que precisam ser revelados, que correm o risco de serem velados pela luz ou de terem as cores distorcidas porque havia químicos demais ou de menos nos líqüidos usados para revelá-los? As câmeras digitais estão aí para ficar. As fotos são gravadas em chips de memória, em disquetes e, daqui a pouco, em mini CDs. As câmeras de vídeo vão estar se digitalizando rapidamente. Veremos em casa a TV digital, assistiremos a filmes a partir de DVDs (Digital Video Discs), filmaremos nossos filhos e nossos netos com câmeras de vídeo que vão gravar os sinais com tecnologia óptica em mini-discos capazes de armazenar horas da mais nítida imagem, em 16 milhões de cores e com som digital.

Os meios de comunicação impressos (incluindo não só a imprensa, mas também o correio), sonoros (incluindo não só o rádio e os discos, mas também o telefone), e visuais todos convergiram para o computador. Multimídia passou a ser uma realidade. Você vai ouvir a voz e ver a pessoa com quem você conversa ao telefone. Seu aparelho de televisão virá com uma câmera digital que transmitirá os seus sinais para grandes centrais retransmissoras através dos mesmos cabos ou satélites que trazem a imagem e o som da televisão para sua casa, em mais de 500 canais. As vídeo-locadoras atuais deixarão de existir, porque os filmes serão “baixados” de grandes servidores de vídeo, o preço da locação sendo cobrado em sua conta de comunicação (não mais de telefone ou de televisão a cabo). A Internet, como hoje a conhecemos, deixará de existir, porque rádio, televisão, vídeo, acesso a banco de dados, telefone (vídeo-fone), vídeo-jogo, tudo estará chegando através dos mesmos meios físicos que hoje nos trazem a Internet ou, certamente, algo bem mais aperfeiçoado.

O computador deverá mudar de nome — porque o nome ainda dá a entender que o computador tem que ver com um aparelho que faz cômputos, cálculos, contas, quando, na verdade, ele é hoje, mais do que qualquer coisa, um macro-meio de comunicação.

E educação, não nos esqueçamos, é um processo que envolve comunicação em várias de suas manifestações — em especial na educação escolar.

4. O Computador como Tecnologia Educacional

Qualquer que seja o nome que venha a ter o equipamento que vai coordenar e gerenciar o centro nevrálgico de informações e comunicações de nossas casas, de nossos locais de trabalho, e até mesmo de nossa própria pessoa (pois em breve não saberemos mais andar sem nosso computador ultra-portátil, que terá um telefone móvel embutido), ele vai estar presente no nosso trabalho, qualquer que seja, no processo de recebimento e de transmissão de informações, seja qual for o seu tipo, nos meios de comunicação de massa (em que um se comunica com muitos) e de comunicação pessoal (em que um se comunica com o outro), nos processos decisórios, especialmente naqueles em que os indivíduos, pelo seu voto, escolhem seus governantes ou, melhor ainda, em plebiscitos e referendos instantâneos, resolvem eles mesmos o que deve ser feito, no pagamento de contas e no recebimento de salários ou honorários, nos momentos de diversão e entretenimento.

É concebível, diante desse quadro, que as pessoas não venham a usar o computador para aprender e, em contrapartida, para ensinar à distância? Dificilmente. A escola atual pode até resistir — mas se o fizer, pagará o preço bastante alto de deixar de ser o locus privilegiado da educação em nossa sociedade — que, segundo muitos, já deixou de ser há algum tempo.

Nossa época está sendo chamada por Peter Drucker, um dos mais perceptivos analistas do cenário contemporâneo, de uma Segunda Renascença. É importante entender porquê, mesmo que para isso tenhamos que rapidamente recapitular alguns fatos que já discutimos quando falamos da evolução da tecnologia.

A.    O Livro Impresso e a Primeira Renascença

Eis o que diz Drucker, em As Novas Realidades:

“Quarenta anos atrás Marshall McLuhan apontou pela primeira vez que não foi a Renascença  que transformou a universidade medieval, e sim o livro impresso. . . . Assim como o livro impresso era a ‘alta tecnologia’ da educação no século XV, também o computador, a televisão e o vídeo-cassete estão se tornando a alta tecnologia do século XX. Esta nova tecnologia está fadada a ter um profundo impacto sobre as escolas e sobre o modo como aprendemos” [2].

Segundo Peter Drucker, a força motriz da primeira Renascença foi uma tecnologia que, em retrospectiva, se vê como claramente educacional: o livro impresso.

O livro, como vimos, revolucionou a educação nos séculos XV e seguintes: tornou possível o ensino à distância e o auto-aprendizado sistemático.

“Desde o início, o livro impresso forçou as escolas a modificarem drasticamente o que ensinavam. Antes dele, a única maneira de aprender era copiar laboriosamente manuscritos ou ouvir palestras e recitações. Subitamente eis que as pessoas podiam aprender lendo” [3].

Além disso, o livro permitiu que se difundisse a sábia noção de que mais importante do que memorizar grandes quantidades de informação é saber onde encontrar, rápida e eficientemente, a informação desejada, quando ela se faz necessária.

O livro impresso, como vimos, também estimulou o fortalecimento das várias línguas nacionais e tornou possível o desenvolvimento das literaturas no vernáculo. Além do livro, propriamente dito, a impressão estimulou o debate de idéias, o embate panfletário, o aparecimento de jornais e revistas, etc. Ou seja, a impressão, como tecnologia, tornou possível a imprensa, como meio de comunicação de massa. Sem esta não teria havido a Reforma Protestante, a ciência e a filosofia moderna, o movimento deísta, que, tempo depois, culminou no Iluminismo, o aparecimento de uma rica literatura de filosofia política (Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu, os Artigos Federalistas, nos Estados Unidos, e a Enciclopédia, na França) que acabou levando à Revolução Americana e à Revolução Francesa.

Como bem ressalta Drucker, a primeira Renascença foi um período de enorme vitalidade intelectual em que se disseminou uma sede de conhecimento nunca dantes vista:

“O livro impresso provocou no Ocidente um tal amor pelo conhecimento e uma tal vontade de aprender que o mundo jamais vira antes e nunca mais viu desde então. O livro impresso permitiu que pessoas de todas as posições sociais pudessem aprender conforme o seu ritmo natural, na intimidade de suas casas ou na companhia congenial de outros leitores de mesmo espírito. Permitiu também que pessoas separadas umas das outras pela distância e pela geografia pudessem aprender juntas” [4].

B.    O Computador e a Segunda Renascença

Segundo Drucker, estamos vivendo uma época semelhante neste final de século XX. E da mesma forma que foi uma tecnologia com grande potencial educacional que se constituiu na força motriz da primeira Renascença, agora é o computador, uma tecnologia eminentemente educacional, que está alimentando a segunda Renascença.

O computador, mais do que o livro, está tornando viável o ensino à distância e o auto-aprendizado. Mas o computador, como o livro antes dele, vai alterar o que se passa dentro da sala de aula também.

“Nós vivemos hoje os estágios iniciais de uma revolução tecnológica similar [à da primeira Renascença], e talvez ainda maior. O computador é infinitamente mais ‘amistoso’ do que o livro impresso, especialmente para crianças. Sua paciência é ilimitada. Não importa quantos erros o usuário possa cometer, o computador está sempre pronto para outra tentativa. Ele está sob o comando do aluno de uma maneira que nenhum professor em sala de aula pode estar. Numa sala de aula movimentada, um professor raramente tem tempo para uma criança em especial. O computador, por sua vez, está sempre disponível, não importando se a criança é rápida, lenta, ou normal para aprender, não importando se ela acha essa matéria fácil e aquela difícil, não importando se ela deseja aprender coisas novas ou se deseja rever algo já visto anteriormente. E, ao contrário do livro impresso, o computador permite uma variação infinita. Ele é divertido” [5].

Drucker bem aponta que o computador de hoje é bem diferente do que será o computador de amanhã, que incorporará a televisão e o vídeo — e, por isso, se tornará uma tecnologia educacional ainda mais potente:

“Mas há também a televisão e, com ela, todo um mundo de pedagogia visual. Há mais horas de pedagogia comprimidas em um comercial de trinta segundos do que a maioria dos professores conseguem colocar em um mês de lecionar. O assunto, ou matéria, de um comercial de TV é bastante secundário; o que importa é a habilidade, o profissionalismo e o poder de persuasão que nele existem. Portanto, as crianças chegam hoje à escola com expectativas que fatalmente serão desapontadas e frustradas. Elas esperam dos professores um nível de competência muito além do que a maioria deles poderão jamais oferecer. As escolas serão cada vez mais forçadas a usar computadores, televisão, filmes, fitas de vídeo e fitas de áudio. O professor será cada vez mais um supervisor e um mentor — talvez aproximando-se bastante do que ele era na universidade medieval vários séculos atrás. O trabalho do professor será ajudar, orientar, servir de exemplo, incentivar. É bem possível que o seu trabalho deixe de ser primordialmente transmitir a matéria em si” [6].

O computador está tornando possível a criação de comunidades virtuais de trabalho e de aprendizado que transcendem os limites do espaço. O computador está abrindo acesso a informações independentemente de onde, em qualquer lugar do mundo, elas se encontrem. O computador está aproximando as pessoas, ao eliminar a distância física entre elas. O computador está derrubando as paredes de nossas salas de aulas e os muros de nossas escolas.

Estamos no início dessa revolução. O computador tem pouco mais de 50 anos. Mas ele transformará o mundo muito mais drasticamente do que o mundo foi transformado do século XV ao século XX, e em muito menos tempo. Pergunta Drucker — mas a resposta ele a conhece:

“Será que os computadores e a nova tecnologia juntas produzirão uma explosão semelhante [à que aconteceu nos séculos XV-XVIII] na vontade de aprender? Qualquer pessoa que tenha visto um garotinho de sete ou oito anos passar horas diante de um programa de matemática num computador, ou mesmo uma criança ainda menor assistindo ‘Vila Sésamo’, sabe que a pólvora para tal explosão está se acumulando. Mesmo que as escolas façam o máximo possível para abafá-la, a alegria de aprender gerada pelas novas tecnologias terá o seu impacto. Nos Estados Unidos e no Japão, as escolas, depois de trinta anos de feroz resistência às novas tecnologias, mostram-se cada vez mais dispostas a empregá-las, a incorporá-las em seus métodos de ensino e a criarem o desejo de aprender que, em última análise, é a essência da educação” [7].

A última frase é essencial: o desejo de aprender é essencial para a educação, pois é a força motriz que nos leva a nunca estar satisfeitos com o nível das habilidades, das competências e do conhecimento que temos e nos impulsiona a buscar cada vez mais, tanto no plano quantitativo quanto no qualitativo.

5. Sociedade, Tecnologia, Educação, e Escola

Nesta seção procuraremos analisar em mais detalhe como os desenvolvimentos que vimos analisando se aplicam à educação e à escola.

A. A Sociedade da Informação

Está claro, de tudo o que foi dito, que vivemos hoje numa sociedade em que a informação é o ingrediente básico e as tecnologias que nos ajudam a lidar com a informação são essenciais. Podemos chamar essa sociedade por vários nomes: “Sociedade da Informação”, “Sociedade Informatizada”, “Sociedade Pós-Industrial”, “Sociedade Pós-Capitalista”, etc. Vamos preferir a expressão “Sociedade da Informação” porque coloca ênfase onde ela é devida: na informação, e não na tecnologia usada para processar e mover essa informação.

O que caracteriza a Sociedade da Informação (que, segundo alguns analistas, teve seu início por volta de 1955, nos Estados Unidos) é o fato de que nela a maior parte das pessoas economicamente ativas trabalha no processamento de informações (lato sensu, envolvendo a comunicação) ou no relacionamento entre pessoas (como no comércio, no lazer, e no turismo), não na produção de bens materiais. Há os que prevêem que, por volta do ano 2015, nos países desenvolvidos, haverá, no máximo, apenas cerca de 5% da população economicamente ativa trabalhando no setor agropecuário e industrial [8]. Os restantes 95% estarão trabalhando em atividades em que o processamento de informações e as relações entre as pessoas são essenciais.

B. A Educação na Sociedade da Informação

Em seu sentido mais genérico educar é preparar os indivíduos para a vida — como pessoas, como cidadãos e como profissionais (como trabalhadores, no sentido amplo do termo) [9].

A educação, é sabido, nem sempre se realizou em escolas, como as que hoje conhecemos. Ela se realizou, durante muito tempo, no lar, na igreja, na comunidade, no mundo do trabalho, através de mecanismos não-formais.

Na Sociedade da Informação, dado o papel importante que nela desempenham as tecnologias de informática (computação, telecomunicações, meios de comunicação de massa), a educação tende a extravasar as paredes da sala de aula e os muros da escola e a ter lugar através de várias instituições (novamente a família, mas também as associações comunitárias, as igrejas, os sindicatos, as empresas, os cursos livres de curta duração, etc.) ou, então, através de mecanismos de educação não-formal, como os meios de comunicação de massa e as várias formas de educação mediada pela tecnologia (sem contato presencial) [10].

Além disso, a educação, na Sociedade da Informação, é um processo permanente, que, portanto, não se esgota no período de permanência da criança, do adolescente e do jovem na escola, mesmo que essa permanência seja altamente relevante em termos educacionais. A educação, na Sociedade da Informação, começa no nascimento e só termina com a morte da pessoa. Além disso, é constante: numa sociedade densa em informações e conhecimentos e rica em possibilidades de aprendizagem, as pessoas aprendem desde que acordam até a hora em que vão dormir — havendo até mesmo métodos subliminares que pretendem ajudar as pessoas a continuar a aprender enquanto dormem. [11]

A educação, na Sociedade da Informação, é também difusa: as pessoas se educam enquanto trabalham, enquanto assistem à televisão ou ouvem o rádio, enquanto realizam as atividades normais do dia-a-dia, enquanto viajam, enquanto se divertem. Não há muita distinção entre educação e trabalho, entre educação e lazer. Ninguém interrompe o seu trabalho ou o seu lazer para educar-se: a educação permeia todas as suas atividades, sem limites claros entre uma coisa e outra.

Na Sociedade da Informação, quando a educação exige contato com outras pessoas, esse contato é em grande parte virtual, viabilizado pela tecnologia, feito à distância, sem a necessidade da presença física dos envolvidos num mesmo local, numa mesma hora. E os contatos são objetivos e rápidos, provavelmente envolvem múltiplas pessoas, e acontecem em função de necessidades de aprendizado muito específicas, resultantes das atividades que as pessoas estão exercendo. O aprender, na Sociedade da Informação, está intimamente ligado ao fazer, porque o fazer não é mais predominantemente manual, mas envolve importantes e essenciais componentes de informação e conhecimento — e, portanto, exige, necessariamente, aprendizagem, ou seja, educação.

Há estudos que comprovam que as pessoas retêm, em média, cerca de 10% daquilo que ouvem (por exemplo, em aulas), cerca de 20% daquilo que vêem (por exemplo, em leituras), e cerca de 70% daquilo que fazem (por exemplo, em atividades e projetos em que estão envolvidas e em que têm interesse). As pessoas em regra se esquecem do que ouvem, lembram-se um pouco do que lêem, mas geralmente compreendem o que fazem, e, porque compreendem, aprendem mais facilmente e dificilmente se esquecem depois.

Erram, portanto, os que imaginam que a maior contribuição que a tecnologia pode trazer à educação é viabilizar o ensino à distância [12], a sala de aula virtual, a escola sem paredes ou sem muros. As pessoas que assim pensam acreditam que a tecnologia possa fazer funcionar, como que por passe de mágica, um modelo que não funciona mais nem mesmo com o contato presencial. O que se procurará mostrar na seção seguinte é que o modelo escolar atual, que hoje é ineficaz e ineficiente, não passa misteriosamente a funcionar bem apenas porque vem a ser mediado pela tecnologia. Usar tecnologia sofisticada mantendo o modelo escolar atual é equivalente a asfaltar uma trilha de bois, para usar a expressão de Hammer e Champy, já citada.

C. O Futuro da Escola na Sociedade da Informação

A sociedade, nos últimos séculos, tem atribuído à escola a tarefa de educar (isto é, como vimos, de preparar os indivíduos para a vida — para sua vida como pessoas, como cidadãos e como profissionais). Mas a sociedade na qual os alunos de hoje vão viver suas vidas pessoais, atuar como cidadãos, e exercer uma profissão está mudando muito mais rapidamente do que a escola, e esta, a menos que tome medidas urgentes para acompanhar as profundas mudanças que estão ocorrendo na sociedade, corre sério risco de se tornar obsoleta. O fato de que adolescentes e jovens inteligentes e capazes, que conseguem ter excelente desempenho em atividades para as quais estão motivados, se desinteressam da escola a tal ponto que, sem precisar, preferem arrumar um emprego qualquer a ter que aturá-la, é a mais séria condenação da escola que se pode imaginar. A escola, ao invés de estimular a curiosidade e a vontade de aprender dos alunos, acaba por abafá-las. [13]

O que está errado na escola não é o contato presencial, que em si é bom, mas, sim, o modelo educacional que a escola hoje incorpora, que pressupõe:

  • que a educação seja um processo que tem um início e um fim ao longo da vida das pessoas;
  • que a aprendizagem seja algo que acontece predominantemente em contextos formais e em decorrência de processos intencionais de ensino e instrução;
  • que as pessoas têm os mesmos estilos e ritmos de aprendizagem, isto é, aprendem todas da mesma forma e no mesmo ritmo e que, portanto, estão todas prontas para determinados tipos de aprendizado no mesmo momento;
  • que as pessoas não são intrinsecamente inclinadas a aprender e que, portanto, o processo de ensino e aprendizagem precisa ser construído em cima de mecanismos artificiais de recompensas e punições que ajam como motivadores externos;
  • que, com esses mecanismos de recompensas e punições, as pessoas conseguem aprender os mais diversos conteúdos, em grandes blocos, e reter esse aprendizado, mesmo quando não têm o menor interesse nesses conteúdos ou neles não vêem a menor relevância para seus projetos de vida;
  • que as pessoas conseguem aprender habilidades e competências importantes de forma basicamente passiva, apenas ouvindo um professor ou lendo um texto, sem se envolver em atividades e projetos que exercitem essas habilidades e competências, obrigando-as a praticá-las em situações concretas e realistas;
  • que o contato presencial do professor com os alunos, e dos alunos uns com os outros, em uma sala de aula, é indispensável para a educação e necessariamente benéfico para o aluno, em termos pedagógicos.

Esse modelo foi construído para servir à Sociedade Industrial, que já cedeu lugar à Sociedade da Informação. Alvin Toffler descreve muito bem esse modelo de escola:

“Educação de massa foi a máquina engenhosa construída pela sociedade industrial para produzir o tipo de adulto de que ela necessita, . . . um sistema que, em sua própria estrutura, simulava essa sociedade. O sistema não emergiu instantaneamente. Mesmo hoje ele ainda retém elementos da sociedade pré-industrial. Contudo, a idéia de agrupar grandes massas de estudantes (matéria-prima) para serem processados por professores (trabalhadores) em uma escola centralizada (fábrica) foi uma solução de gênio industrial. Toda a hierarquia administrativa da organização, à medida que foi aparecendo, seguia o modelo da burocracia industrial. A própria organização do conhecimento em disciplinas permanentes foi fundada em pressupostos industriais. As crianças marchavam de lugar em lugar e se assentavam em locais preestabelecidos. O sinal tocava para anunciar a hora de mudanças. A vida interna da escola assim se tornou um espelho antecipatório da sociedade industrial, uma introdução perfeita a ela. As características mais criticadas da educação hoje — sua regimentação, sua falta de individualidade, os sistemas rígidos de disposição física da sala de aula, de agrupamento das crianças por classes e séries, de notas, o papel autoritário do professor — são exatamente as características que fizeram da escola pública de massa um instrumento tão efetivo de adaptação à sociedade industrial.” [14]

Nenhum dos pressupostos desse modelo de educação escolar se sustenta hoje na forma em que a escola os incorpora.

Como vimos, a educação das pessoas tende a ser, na Sociedade da Informação, um processo permanente, constante, difuso, predominantemente não-formal, que é centrado mais nas próprias pessoas do que em professores e instrutores, que ocorre em decorrência de sua participação em atividades e projetos interessantes e motivadores mais do que como resultado do ensino deliberado, que envolve modos de aprendizagem mais ativos do que passivos, que é focado mais no domínio de habilidades e competências do que na absorção passiva de conteúdos, que acontece mais em doses homeopáticas, em função de necessidades ou interesses variados, ou, então, em processos de total imersão, quando um projeto absorve totalmente as energias das pessoas, do que em grandes blocos compartimentados em função de exaustivos planos curriculares que têm por objetivo o domínio de todo um programa sistemático de estudos.

As vantagens do contato presencial entre professores e alunos têm sido enormemente exageradas. Exceto por permitir o desenvolvimento de algumas amizades duradouras, os anos escolares são normalmente percebidos como chatos e intermináveis e os contatos com os professores raramente são vistos como enriquecedores (com honrosas exceções). Além disso, não há nada necessariamente impessoal nos contatos virtuais: grandes amizades, e mesmo profundas paixões, têm acontecido e se desenvolvido através de contatos inicialmente virtuais.

Numa sociedade em que a educação tem as tendências apontadas na seção anterior e nesta, a escola que opera no modelo indicado corre sério risco de se tornar, nas palavras de Gilberto Dimmenstein, uma “fábrica de obsoletos” [15].

Eis a crítica que Drucker, um grande educador (mas não um pedagogo), faz às nossas escolas:

“Instruir — mesmo no alto nível exigido por uma sociedade de trabalhadores intelectuais — é uma tarefa mais fácil do que transmitir aos estudantes o desejo de continuarem aprendendo e as habilidades e conhecimentos que necessitarão para fazê-lo. Até hoje nenhum sistema escolar se dispôs a enfrentar essa tarefa. . . . No entanto, nós sabemos como as pessoas aprendem a aprender: e já o sabemos há dois mil anos. O primeiro e mais sábio autor sobre a educação das crianças, o grande biógrafo e historiador grego Plutarco, explicou isso claramente em seu belo livrinho Paidea (“Formação das Crianças”), no primeiro século da era cristã. Basta tornar os alunos realizadores,  basta concentr[ar] nos seus pontos positivos e nos seus talentos a fim de que eles possam se sobressair em tudo o que souberem fazer bem. Qualquer mestre de jovens artistas — músicos, atores, pintores — sabe disso; qualquer instrutor de jovens atletas também. Mas as escolas não o sabem e, ao invés, concentram-se nos pontos fracos e nas deficiências dos alunos. Quando um professor convoca os pais de um garoto de dez anos, ele geralmente começa dizendo: ‘O seu Joãozinho precisa estudar mais a tabuada; ele está muito atrasado’. Raramente o professor dirá: ‘A sua Maria deveria dedicar-se mais à redação para poder fazer melhor o que ela já faz bem’. Os professores — do primário à universidade — tendem a se concentrar mais nas deficiências dos alunos, e por bons motivos: ninguém pode prever o que uma criança de dez anos estará fazendo dez ou quinze anos mais tarde. Nessa fase não é possível sequer eliminar muitas opções. A escola tem que imbuir em seus alunos as habilidades básicas [de] que irão precisar em qualquer caminho que porventura escolham, pois em qualquer um eles terão que saber atuar. Mas um bom desempenho não pode fundamentar-se em deficiências, nem mesmo em deficiências corrigidas: o bom desempenho nasce somente dos pontos positivos, das qualidades, dos talentos. E esses as escolas tradicionalmente ignoram, ou consideram mais ou menos irrelevantes. Aquilo que um aluno tem de bom não é causa de problemas — e todas as escolas estão polarizadas nos problemas. Na sociedade instruída, os professores terão que aprender a dizer: ‘Quero ver o seu Joãozinho, ou a sua Maria, escrevendo muito mais; seu filho tem talento, e esse talento precisa ser desenvolvido e aperfeiçoado.’ . . . As novas tecnologias do ensino tornarão isso possível, além de praticamente forçarem escolas e professores a se concentrar nos pontos fortes e nos talentos dos alunos” [16].

Alvin Toffler coloca claramente o desafio que se coloca para a escola hoje quando afirma que, além do risco de se tornar obsoleta, a escola corre também o sério risco de se modernizar nos meios sem, entretanto, repensar os fins da educação:

“O que passa por educação, hoje, mesmo em nossas ‘melhores’ escolas e universidades, é um irremediável anacronismo. . . . Nossas escolas olham para trás, na direção de um sistema moribundo, em vez de olhar para frente, na direção da nova sociedade que emerge. As vastas energias das escolas são dirigidas para produzir pessoas adequadas à sociedade industrial — pessoas instrumentadas para um sistema que estará morto antes delas. . . . Seria enganoso pensar que o sistema educacional não muda. Muda, e às vezes rapidamente — mas apenas para tornar-se mais refinado e eficiente na busca de metas obsoletas” [17].

O modelo educacional da escola, brasileira ou estrangeira, é, em regra, voltado para o passado, focado em conteúdos, centrado no ensino, e orientado para o professor. Além disso, a escola emula, em sua organização, as linhas de montagem industriais: todas as crianças de uma certa idade fazem as mesmas coisas, da mesma forma, no mesmo horário, têm que aprender os mesmos conteúdos, pelo mesmo método, sem a menor consideração de diferenças individuais, da variedade de estilos cognitivos, de talentos e de preferências pessoais. Não é de surpreender que a escola não seja bem sucedida e que seja tão mal querida pelos alunos [18].

D. A Tecnologia e a Educação

Disse McLuhan: “Platão, em todo seu esforço de imaginar uma escola ideal, deixou de notar que Atenas era uma melhor escola do que qualquer universidade que ele conseguisse inventar” [19]. Algo parecido está acontecendo com aqueles que estão tentando reformar a escola em vez de usar o potencial educacional existente na sociedade, fora da escola. O problema talvez não seja trazer a tecnologia para dentro da escola, mas, sim, levar a educação para a sociedade, através da tecnologia.

O risco de obsolescência da escola se torna maior quando se dá conta de que os recursos tecnológicos hoje disponíveis nas áreas de computação, das telecomunicações e dos meios de comunicação de massa tornam viável que os indivíduos assumam um papel cada vez maior na sua própria educação, e, portanto, uma responsabilidade cada vez maior pelo seu desenvolvimento intelectual e cognitivo.

Peter Drucker afirma:

“[Hoje] essa nova instrução é obtida em grande parte através da mídia informativa. Para a criança, moderna a televisão e o vídeo-cassete certamente oferecem tantas informações quanto a escola, e provavelmente mais.  . . . A educação não pode mais restringir-se às escolas. Toda instituição empregadora tem que proporcionar educação a seus membros. As grandes organizações japonesas — tanto órgãos públicos como empresas — já reconheceram isso. Mas, uma vez mais, a nação que assumiu essa liderança foi os Estados Unidos, onde os empregadores — empresas, órgãos públicos, forças armadas — aplicam tanto dinheiro e empenho na educação e treinamento de seus empregados, especialmente aqueles de maior nível de instrução, quanto todas as faculdades e universidades do país somadas. As companhias transnacionais européias também estão cada vez mais assumindo a educação de seus empregados, especialmente dos administradores” [20].

A força homogenizadora da escola não conseguirá resistir à força heterogenizadora das novas tecnologias.

“Nós sabemos que diferentes pessoas aprendem de maneira diferente; sabemos que, na realidade, o [estilo de] aprendizado é tão pessoal quanto uma impressão digital. Não há duas pessoas que aprendam da mesma maneira. Cada um tem uma velocidade diferente, um ritmo diferente, um grau de atenção diferente. Se lhe for imposto um ritmo, uma velocidade, ou um grau de atenção estranho, haverá pouco ou nenhum aprendizado. Haverá apenas cansaço e resistência. Nós sabemos . . . que pessoas diferentes aprendem matérias diferentes de maneira diferente. A maioria de nós aprendeu a tabuada através da repetição e dos exercícios. Mas os matemáticos não ‘aprendem’ a tabuada: eles a ‘captam’, por assim dizer. Da mesma forma, os músicos não aprendem a ler uma partitura: eles a ‘percebem’. E nenhum atleta nato jamais teve que aprender como pegar uma bola. Algumas coisas de fato têm que ser ensinadas — e não apenas valores, percepções e significados. Um professor é necessário para identificar os pontos fortes do aluno e para direcionar um talento à sua realização. Nem mesmo um Mozart teria se tornado o grande gênio que foi sem seu pai que era um verdadeiro mestre. . . .  A nova tecnologia . . . é uma tecnologia de aprendizagem, e não de ensino.  . . . Não resta dúvida que grandes mudanças irão ocorrer nas escolas e na educação — a sociedade instruída irá exigi-las e as novas teorias e tecnologias de aprendizagem acabarão por efetivá-las” [21].

Por isso, como bem ressalta Toffler na passagem citada na seção anterior, a mera introdução de tecnologia nas escolas de hoje, por mais sofisticada que seja essa tecnologia, não causará maior impacto sobre a educação das crianças que as freqüentam e não as preparará para viver na Sociedade da Informação do século XXI. Só fará com que a educação que já oferecem seja mais eficientemente obsoleta. Não há sentido em andar mais depressa quando se está movendo na direção errada. Muitas das escolas que hoje se orgulham de utilizar o computador no ensino se assemelham àquele piloto que disse aos passageiros ter uma boa e uma má notícia: a boa era que estavam tendo média excelente de velocidade; a má notícia era que haviam perdido o rumo…

É preciso repensar o modelo educacional que impera em nossas escolas, inverter a direção em que a educação caminha. Em vez de uma educação voltada para os quatro pilares do passado-conteúdos-ensino-professor, precisamos de uma educação voltada para outros quatro pilares: futuro-processos-aprendizagem-aluno.

E. Os Contornos de uma Nova Escola

A escola precisa mudar, se quiser sobreviver como instituição educacionalmente relevante. Ela precisa se voltar para a criação de ambientes ricos em possibilidades de aprendizagem, nos quais as pessoas possam desenvolver as habilidades e competências que lhes permitam dominar os processos através dos quais possam ser capazes de aprendizagem permanente e constante.

Devemos reconhecer que familiarizar as pessoas (em especial as crianças) com a tecnologia, em particular com computadores, embora importante, e, na verdade, condição necessária, hoje, para uma educação de qualidade, não é suficiente. É preciso também ajudar as pessoas a:

  • aprender a pensar, a argumentar, e a se exprimir com clareza, precisão e objetividade, na língua materna e em pelo menos duas línguas estrangeiras (que, no caso do Brasil, são Inglês e Espanhol);
  • compreender que há uma diferença essencial entre absorção passiva de fatos e assimilação criativa de informação;
  • aprender, no tocante a informações:
  • a discernir os tipos de informação relevantes para suas necessidades e seus interesses;
  • a descobrir onde essas informações estão armazenadas e como obtê-las;
  • a avaliar e criticar as informações encontradas e recebidas;
  • a analisar as informações que se mostrem confiáveis e a relacioná-las com outras informações que já possuem;
  • a organizar suas informações, arquivá-las inteligentemente, e, quando necessário, recuperá-las com rapidez e apresentá-las de maneira concisa e atraente;
  • descobrir como, com base nas informações de que dispõem, construir projetos de vida, definir objetivos, metas e prioridades, e encontrar as melhores formas de alcançar esses objetivos e metas;
  • entender que o conhecimento pode e deve se traduzir em ação e assimilar o processo de tomada de decisão;
  • encontrar formas de lidar eficaz e eficientemente com mudanças rápidas e com situações novas;
  • aprender a relacionar-se com as pessoas, negociar, administrar conflitos e lidar com pressões;
  • aprender a gerenciar o tempo;
  • entender que a aprendizagem, e, por conseguinte, a educação, é um processo constante, que se estende pela vida toda, no qual o papel da escola é relativamente pequeno, e que, portanto, a principal responsabilidade pela educação é sempre da própria pessoa.

É nessa direção que é possível visualizar os contornos que eventualmente levarão à invenção de uma nova escola, a escola da Sociedade da Informação. A escola que ajudar as pessoas a dominar as habilidades e competências indicadas no parágrafo anterior estará preparando seus alunos para viver e atuar, como pessoas, como cidadãos e como profissionais, na Sociedade da Informação no século XXI.

Mas lembrêmo-nos mais uma vez: a ênfase terá que ser no desenvolvimento dessas habilidades e competências. O computador é meio, é ferramenta, é tecnologia. E os educadores não devem jamais perder de vista o fim porque se encantaram com o meio, não podem fazer como o pescador, na linda canção de Oswaldo Montenegro, “que se encanta mais com a rede que com o mar”.

6. O Papel do Professor

Michael Hammer, o guru da reengenharia, escreveu em um de seus livros que “educação é aquilo que resta quando nos esquecemos de tudo o que nos foi ensinado” [22]. Essa passagem chama nossa atenção para o fato de as pessoas, com o passar do tempo, geralmente se esquecem da maior parte das conteúdos que lhes foram ensinados na escola. Apesar de nos esquecermos da maior parte das coisas que nos foram ensinadas, alguma coisa fica, ou pelo menos assim se espera — e o que fica, provavelmente, é mais importante do que os conteúdos que nos foram ensinados, e esquecidos.

O que fica, depois de nos esquecermos daquilo que nos foi ensinado? Há uma passagem atribuída ao grande escritor americano John Steinbeck que nos ajuda a responder:

“É comum que adultos se esqueçam de quão difícil, chata e interminável é a escola. . . . A escola não é coisa fácil e, a maior parte do tempo, não é nada divertida. Contudo, se você tem sorte, pode ser que encontre um professor. Professores verdadeiros, com a melhor das sortes, você vai encontrar no máximo uns três durante a vida. Acredito que um grande professor é como um grande artista: há tão poucos deles como há poucos grandes artistas. . . . Os meus três tinham estas coisas em comum. Todos eles amavam o que estavam fazendo. Eles não nos diziam o que saber: catalisavam um desejo fervente de conhecer. Sob sua influência, os horizontes de repente se abriam, o medo ia embora e o desconhecido se tornava conhecível. Mas, mais importante de tudo, a verdade, esta coisa perigosa, se tornava bela e muito preciosa.” [23]

Essa passagem serve, de certo modo, para introduzir a discussão acerca da função do professor.

Nos Diálogos de Platão em que Sócrates é o protagonista principal Sócrates ilustra a tese de que sua função não era ensinar: era levar as pessoas a descobrir as coisas por si próprias. Sócrates no Teeteto descreveu a sua função como sendo semelhante à de uma parteira. A parteira não dá à luz ninguém. O que ela faz é ajudar alguém a dar à luz. Também o professor, segundo Sócrates, não deve ensinar nada: ele deve ajudar os outros a descobrir por si sós aquilo que precisam saber [24].

Em linguagem mais moderna, o que Sócrates propôs foi que o professor, além de ensinar, ou, talvez, até mesmo em vez de ensinar, seja um facilitador da aprendizagem do aluno.

Facilitar a aprendizagem não é a mesma coisa que ensinar. O modelo que jaz por detrás do ensino é o de alguém que é ativo, o professor, e alguém que é em grande parte passivo, o aluno. Um sabe, o outro não. Um ensina, o outro aprende. Um dá, o outro recebe. Esse modelo parte, de certa forma, do pressuposto empirista (expresso por John Locke, por exemplo) de que a mente de uma criança ao nascer é, por assim dizer, uma tabula rasa, uma folha de papel em branco, na qual vão sendo gravadas percepções que lhe chegam através dos sentidos. O professor é uma das fontes de percepção que a criança, e, depois, o adolescente e o adulto têm: ele vai transmitindo informações e o aluno as vai absorvendo. Karl Popper prefere chamar esse modelo de “o modelo do balde”: a mente é como um balde, que vai gradativamente sendo enchido nas interações que a criança tem com o seu ambiente e, a partir de um certo momento, com seus professores na escola [25]. Nesse modelo, o conhecimento é basicamente estático e a mente da criança basicamente passiva. Ensinar é encher a mente da criança de idéias, conceitos, teorias, valores, etc.

Não é esse o modelo que está por detrás da posição de Sócrates (nem da posição de Jean Piaget, hoje em dia). Sócrates pressupõe que a mente humana já é muito rica quando uma criança nasce. É verdade que Sócrates imaginava que a mente da criança já vinha de um outro mundo cheio de idéias inatas e coisas desse tipo. Hoje isso não é mais amplamente aceito. O que se defende, hoje, é que a mente humana, quando uma criança nasce, é rica em disposições e potencialidades, e, especialmente, já tem uma enorme capacidade de aprender. Além disso, a mente não é tipicamente passiva: é ativa, busca informações, integra essas informações àquelas que já obteve antes, desenvolve estruturas conceituais que lhe permitem aprender cada vez mais. Conceitos básicos com os quais operamos, como o de objetos físicos, causalidade, número, etc., não são simplesmente incutidos na mente da criança de fora para dentro, mas são construídos por ela em função de sua interação com o meio. O que vale para a criança, vale depois para o adolescente e para o adulto.

Dentro dessa visão, o professor não é um “enchedor de baldes”, mas, sim, um estruturador de ambientes que tornam mais fácil para o aluno aprender e, assim, desenvolver as estruturas cognitivas que vão constituir a sua inteligência. O professor, aqui, não é um transmissor de informações: é um facilitador da aprendizagem.

Como facilitador da aprendizagem, o professor nunca vai dar, “de bandeja”, uma informação que o aluno pode, por si só, descobrir. Ele nunca vai dar a solução de um problema que o aluno, por si só, pode resolver. Quando se diz “por si só” não se pretende que o aluno seja totalmente desassistido no processo. O parto é assistido pela parteira ou pelo obstetra. Mas esse fato não quer dizer que seja a parteira ou o médico quem dê à luz. Quem aprende (descobre) é o aluno: o professor assiste. “Ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo”, como diz Paulo Freire [26].

Há muitas formas em que um professor pode facilitar a aprendizagem: fazendo perguntas inteligentes (mas não dando as respostas), instigando, desafiando, provocando, “cutucando”, dando um “empurrãozinho”, motivando, demonstrando entusiasmo, contagiando o aluno com a vontade de saber e de aprender, criando ambientes ricos em possibilidades de aprendizagem que o aluno se vê estimulado a explorar.

Isso significa que as atividades de facilitação de aprendizagem não são atividades espontâneas, não planejadas. Pelo contrário. Para que um aluno tenha, durante uma aula, amplas oportunidades de aprender conteúdos ricos e significativos, a aula precisa, talvez, ser mais bem planejada do que quando o professor vai simplesmente ensinar. E o professor tem que estar preparado para o fato de que situações imprevistas podem surgir com as quais ele não saiba exatamente como lidar. O ambiente de aprendizagem aqui é estruturado, mas aberto, ”open-ended”. Facilitar a aprendizagem é, em última instância, muito mais difícil do que simplesmente ensinar. Mas é, com certeza, o aspecto mais importante da função do professor, porque ao criar essas estruturas ele está ajudando o aluno a “aprender a aprender”, a desenvolver as habilidades e competências que, na seção anterior, mostramos ser necessárias na Sociedade da Informação.

Os professores que marcaram Steinbeck, que lhe deram aquilo que restou, depois de ele haver esquecido o que lhe havia sido ensinado, foram aqueles que não lhe diziam o que saber, mas que o ajudavam a abrir horizontes, que faziam com que ele perdesse o medo e se aventurasse pelo desconhecido, que o contagiaram com “um desejo fervente de conhecer” e fizeram despertar nele o amor pela verdade. John Keating, em A Sociedade dos Poetas Mortos, também era um professor desse tipo.

7. Alguns Receios

Nesta seção vamos rapidamente considerar alguns receios freqüentemente expressos por aqueles que, convictos do poderoso efeito que o computador pode exercer sobre as crianças e os jovens, temem que tal efeito seja indesejável ou mesmo danoso.

Uma das principais objeções ao uso do computador na educação (ou ao uso exagerado do computador em casa) é a de que o contato constante com o computador poderia levar a criança a desenvolver formas de pensar “mecanizadas” ou “maquinais”. Se Marshall McLuhan está certo quando afirma que “o meio é a mensagem”, as crianças poderiam estar aprendendo, em seu contato com o computador, que pensar é pensar como o computador “pensa”, isto é, sem ambigüidades, de forma rigorosamente lógica, e por fim, num modelo “binário”, isto é, analisando as coisas sempre “duas a duas”.

Como já assinalamos, o computador é, no fundo, uma máquina numérica: internamente, só consegue distinguir dois estados: passa energia aqui/não passa energia aqui; este circuito (esta válvula, este transistor) está ligado (“on”) ou desligado (“off”); este estado é (i.e., pode ser interpretado como) 1 ou 0. É por isso que se diz que o computador é uma máquina binária, que opera com números binários, que usa uma matemática binária, que “fala”/”entende” uma linguagem ou uma lógica binária.

Mas o fato de que o computador é uma máquina numérica binária (que, internamente, só processe números binários) não quer dizer que, do ponto de vista do usuário (do ponto de vista externo, portanto), ele não processe números decimais (ou de qualquer sistema numérico), ele não processe texto, gráficos, fotografias, sons, vídeo, etc. que se afastem o mais possível do binário, ele não seja capaz de oferecer aos usuários a oportunidade de decidir não apenas entre duas alternativas, mas entre três, quatro, cinco, n opções, ele não possa permitir que conversas as menos “binárias” e as mais pluralizadas possíveis aconteçam através dele.

Ninguém que use o computador regularmente irá concordar que, usando o computador, a gente tem que lidar sempre apenas com duas alternativas que se excluem.

O trato com o computador, embora possa envolver o rigor, a lógica e o método, pode envolver também uma forma de pensar intuitiva, livre, criativa. O pensamento rigoroso, lógico e metódico é exigido especialmente daqueles que vão programar o computador. Os usuários, entre os quais estarão os alunos, em sua maior parte, podem usar o computador para ler Adélia Prado, ou escrever poemas, trocar as confidências mais íntimas, falar com a pessoa amada, pesquisar e ler as Cartas de Amor da Sóror Mariana Alcoforado, ouvir Beethoven, Mozart, Stravinsky, compor música, olhar os quadros do Museu do Louvre, da National Gallery of Arts, de Londres, apreciar os auto-retratos de Van Gogh – a lista não termina nunca.

Mas não se esgotam aí os argumentos que podem atenuar os receios dos críticos. Mesmo que os críticos estivessem certos de que o computador estimula um estilo de pensamento “maquinal”, Seymour Papert observa corretamente que, ao invés de lamentarmos os possíveis efeitos funestos do computador, deveríamos explorar maneiras de orientar para direções positivas e desejáveis a influência que se presume prejudicial à aprendizagem e à forma de pensar da criança.

De que maneira isso poderia ser feito? Tomemos como exemplo o receio de que o contato constante com o computador possa levar a criança a pensar de forma rigorosamente lógica. Papert observa que é possível inverter esse processo e obter excelentes vantagens educacionais da arte de deliberadamente pensar como um computador, à maneira de um programa que avança inexoravelmente, de maneira absolutamente lógica, literal, passo a passo, de uma instrução para a outra.

Em primeiro lugar, não resta dúvida de que há contextos em que tal estilo de pensamento é apropriado e útil. As dificuldades que algumas crianças têm no aprendizado de conteúdos formais, como Matemática, ou mesmo Gramática, são freqüentemente decorrentes de sua incapacidade de apreender o sentido desse estilo de pensamento.

Em segundo lugar, e, talvez, até muito mais importante, está o fato de que, em contato com o computador, a criança aprende muito cedo a distinguir o pensamento lógico-formal do que não o é. Essa habilidade poderá lhe permitir, em face de certo problema, escolher o estilo de pensamento mais adequado para resolvê-lo. A análise do pensamento rigorosamente lógico, a percepção de como ele difere de outras formas de pensamento, e a prática obtida na análise e solução de problemas, podem, portanto, dotar a criança com um nível de sofisticação intelectual bastante elevado. Ao fornecer-lhe um modelo concreto e acessível de um particular estilo de pensamento, o computador torna-lhe perceptível o fato de que existem diferentes estilos de pensamento!

Ao dar-lhe a possibilidade de optar, em um dado contexto, por um outro estilo, o computador cria condições para que a criança desenvolva a habilidade de discernir o estilo mais apropriado a cada situação. A tarefa de programar o computador exige dois estilos de pensamento bastante diferentes. Se isso é verdade, o contato com o computador, desde que orientado de maneira adequada, ao invés de induzir uma forma de pensar rigorosamente lógica, sem ambigüidades, pode tornar-se o melhor antídoto contra o monopólio dessa forma de pensar. Nesse processo, a criança estará aprendendo a pensar sobre o pensamento, comportando-se, portanto, como um verdadeiro epistemólogo.

Outro receio comumente expresso é o de que o computador, dada a atração que exerce, especialmente por ser utilizável como um vídeo-jogo, possa envolver a criança de tal maneira, que ela acabe ficando “grudada” a ele, desligando-se de tudo mais, e descuidando-se de seus estudos até mesmo de sua vida social. Deve-se dizer, em primeiro lugar, que a experiência tem mostrado que diante do computador as crianças ficam bem menos “fanatizadas” que os adultos. A criança encara o computador com naturalidade ¾  é o adulto que fica fascinado, que se esquece de comer, de dormir e de dedicar-se a outras funções vitais para mexer no computador.

Entretanto, não se pode negar que o computador de fato exerce grande atração sobre a criança. O que se deve fazer, seguindo a linha do que já foi dito aqui, é explorar essa atração em direções positivas e desejáveis. Muitas pessoas envolvidas na área de computação aplicada à educação têm procurado explorar o potencial pedagógico de jogos computadorizados. Vários jogos hoje existentes têm, na verdade, maior conteúdo pedagógico que muitos dos programas autodenominados educacionais. Esses jogos freqüentemente incorporam importantes conceitos de Física, Matemática, Lógica e mesmo de Lingüística, que, colocados à disposição da criança de forma concreta, permitem-lhe aprender a manipulá-los naturalmente, brincando.

Dominando o computador, a criança tem à sua disposição um instrumento poderoso com o qual pensar e aprender.

NOTAS

[1] Chama-se de interface de um computador o conjunto de suas características com as quais o ser humano interage. Proeminente entre essas características está a tela básica que o usuário tem diante de si no monitor vídeo. Antes das interfaces gráficas (com janelas, menus, ícones, letras de diferentes tipos, uso de várias cores, etc. que o usuário seleciona através de um mouse) a tela básica com que o usuário interagia era de uma cor só e exibia apenas caracteres alfanuméricos em um único formato.

[2] Peter Drucker, As Novas Realidades, tradução do Inglês de Carlos Afonso Malferrari (Livraria Pioneira Editora, São Paulo, SP, 1989), p. 213.

[3] Drucker, op.cit., loc.cit.. Por isso, McLuhan, em Understanding Media, p. 173, chama essas escolas medievais de verdadeiros “scriptoria”.

[4] Drucker, op.cit., pp.213-214.

[5] Drucker, op.cit., p.213.

[6] Drucker, op.cit., loc.cit..

[7] Drucker, op.cit., p.214.

[8] Há os que sustentam a tese de que o trabalho é a ação do homem sobre a natureza, com o intuito de transformá-la. Se essa noção de trabalho for sustentada, ao final do primeiro quarto do próximo século apenas cerca de 5% da população economicamente ativa estará trabalhando. É concebível que, mesmo que não desapareça, o proletariado, como tradicionalmente entendido, se torne insignificante no próximo século. Adam Schaff (op.cit.), importante teórico marxista, é taxativo: “A automação e a robotização . . . reduzirão, às vezes de forma espetacular, a demanda de trabalho humano. Isto é inevitável, independentemente do número de esferas de trabalho que forem conservadas e do número de esferas novas que possam surgir como conseqüência do desenvolvimento da microeletrônica e dos ramos de produção a ela associados.  . . . A chamada automação plena . . . eliminará inteiramente o trabalho humano. . . . É pois um fato que o trabalho, no sentido tradicional da palavra, desaparecerá paulatinamente e com ele o homem trabalhador, e portanto também a classe trabalhadora entendida como a totalidade dos trabalhadores. . . . A classe trabalhadora desaparecerá” (pp.27,43,44). Schaff se consola no fato de que a classe dos capitalistas, como tradicionalmente definida, também corre o risco de desaparecer (pp.44 e sgg.).

[9] Estamos aqui nos referindo à conceituação genérica de educação inserida na Constituição Brasileira de 1988, Art. 205, que diz: “A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.” (ênfase acrescentada).

[10] É importante notar a diferença entre a atual Lei de Diretrizes e Bases e a anterior, a esse respeito. A primeira LDB, a Lei nº 4.024, de 20 de dezembro de 1961, diz, em seu Art. 2º: “A educação é direito de todos e será dada no lar e na escola” (ênfase acrescentada). Nisto ela segue o Art. 176 da Constituição Brasileira de 1967, que diz: “A educação, inspirada no princípio da unidade nacional e nos ideais de liberdade e solidariedade humana, é direito de todos e dever do Estado, e será dada no lar e na escola”. As Leis nº 5.540 de 28 de novembro de 1968 e nº 5.692, de 11 de agosto de 1971, não modificaram esse dispositivo. O Art. 1º da nova LDB (Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996) diz o seguinte: “A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais” (ênfase acrescentada). A mudança é sensível. O Parágrafo 1º desse artigo, entretanto, especifica que a lei vai disciplinar apenas a “educação escolar” — mas o Parágrafo 2º explica que “a educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social”. O artigo pertinente da Constituição Brasileira de 1988 foi citado na nota anterior.

[11] John Sculley, então presidente da Apple Computers, e, portanto, lídimo representante da Sociedade da Informação, coloca em relevo parte da visão da educação que tem essa sociedade no prefácio do livro Interactive Multimedia: Visions of Multimedia for Developers, Educators, & Information Providers, org. por Sueann Ambron e Kristina Hooper (Microsoft Press, Redmond, WA, 1988), p. vii-viii: “Pensar na educação apenas como uma forma de transferência de conhecimento do professor para o aluno, como um despejar de informação de um recipiente para o outro, não é mais possível. Não se pode mais dar aos jovens uma ração de conhecimento que vai durar-lhes a vida inteira. Nem mesmo sabemos o que vão ser e fazer daqui a alguns anos. Os alunos de hoje não podem pressupor que terão uma só carreira em suas vidas, porque os empregos que hoje existem estarão radicalmente alterados no futuro próximo. Para que sejam bem-sucedidos, os indivíduos precisarão ser extremamente flexíveis, podendo, assim, mudar de uma companhia para outra, de um tipo de indústria para outro, de uma carreira para outra. Aquilo de que os alunos de amanhã precisam não é apenas domínio de conteúdo, mas domínio das próprias formas de aprender. A educação não pode simplesmente ser prelúdio para uma carreira: deve ser um empreendimento que dure a vida inteira. . . . Preparar os alunos para que alcancem sucesso no século XXI não é questão de ensinar-lhes uma certa quantidade de conhecimentos: é, isto sim, fornecer-lhes condições e habilidades que lhes permitam explorar o seu meio, descobrindo e sintetizando conhecimento por si mesmos.”

[12] A educação ou a aprendizagem nunca é “à distância”, porque tanto uma como a outra se processam dentro da própria pessoa. O ensino, sim, pode ser feito à distância. Quem ensina pode estar distante daqueles a quem ele ensina — distante no espaço e no tempo. Sócrates nos ensina até hoje — através dos seus diálogos, preservados em forma escrita por Platão.

[13] Mais do que obsoleta, alguns críticos consideram a escola nociva. Eis o que disseram Samuel Butler, no século XIX, e Karl Popper, neste século. Samuel Butler (em Erewhon): “Fico às vezes imaginando como é que o mal causado pela escola às crianças e jovens não deixa, a maior parte das vezes, marcas mais claramente perceptíveis, e como é que moços e moças conseguem crescer tão sensatos e bons, a despeito das deliberadas tentativas feitas pela escola de entortar ou mesmo interromper o seu desenvolvimento. Alguns, sem dúvida, sofrem danos de tal monta que sentem seus efeitos até o fim da vida. Mas muitos parecem não se deixar afetar pela vida da escola e uns poucos até se saem bem. A razão disso me parece ser que o instinto natural dos jovens se rebela de forma tão absoluta contra a formação que recebem na escola que, não importa o que possam fazer os professores, nunca conseguem que seus alunos os levem suficientemente a sério”. Popper: “Tem-se dito, e com verdade, que Platão foi o inventor tanto de nossas escolas secundárias como de nossas universidades. Não conheço melhor argumento para uma visão otimista da humanidade, nem melhor prova de seu amor indestrutível pela verdade e pela decência, de sua originalidade, de sua teimosia e de sua saúde, do que o fato de que este devastador sistema educacional não tenha até hoje sido capaz de arruiná-la completamente”. A passagem de Butler é citada por Popper como moto em uma seção de “Replies to My Critics”, in The Philosophy of Karl Popper, org. por Paul Arthur Schilpp (Open Court, La Salle, IL, 1974), Vol. II, p.1174. A passagem do próprio Popper é retirada de The Open Society and Its Enemies, Vol. I: “The Spell of Plato” (Princeton University Press, Princeton, NJ, 1962, 1966, 1971), p.136.

[14] Toffler, op.cit., p.400; cf. pp.186,272,398-427,447.

[15] Gilberto Dimmenstein, loc.cit.

[16] Drucker, op.cit., pp.203-204.

[17] Alvin Toffler, Future Shock, Random House [encadernado], New York, 1970, e Bantam Books [brochura], New York, 1971, pp.398,399,405 da edição em brochura.

[18] Vide Toffler, op.cit., p.400.

[19] McLuhan, Understanding Media, p.49.

[20] Drucker, op.cit., pp.200, 208.

[21] Drucker, op.cit., pp.212,215.

[22] Michael Hammer, Beyond Reengineering (HarperBusiness, New York, NY, 1996), p. 235.

[23] Infelizmente não foi possível localizar a fonte de onde foi retirada essa passagem de John Steinbeck.

[24] Vide a nota 6. Há eco dessa postura socrática numa citação de Anísio Teixeira em que o grande mestre brasileiro diz: “É [a criança] quem aprende e se educa, guiada e auxiliada pelo professor”. Também há eco dessa filosofia na frase famosa de Paulo Freire: “Ninguém educa ninguém — mas ninguém se educa sozinho”.

[25] Vide Karl Popper, Objective Knowledge (Clarendon Press, Oxford, 1972), Apêndice “O Balde e o Holofote”, pp. 341-361. A edição brasileira, traduzida por Milton Amado, tem o título de Conhecimento Objetivo (Editora Universidade de São Paulo e Editora Itatiaia, Belo Horizonte, MG, 1975). O Apêndice se encontra nas pp. 313-332.

[26] Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido, 6ª edição (Paz e Terra, Rio de Janeiro, RJ, 1970, 1979), p.79. Algumas páginas antes (p.58) Freire já havia introduzido o tema: a liberdade não se alcança sozinho – mas também não é produto da ação dos outros.

Eduardo O C Chaves
Campinas, Dez/98

Transcrito aqui em Salto, 3 de Fevereiro de 2016

O Futuro da Escola na Sociedade da Informação – II

[ Abaixo, o primeiro capítulo do meu livro Tecnologia e Educação: O Futuro da Escola na Sociedade da Informação, cuja história é parcialmente descrita no primeiro post desta série. Esclareço, para facilitar a vida do leitor, que este livro foi escrito há quase exatamente 17 anos, nos meses de Novembro e Dezembro de 1998, a pedido do PROINFO, Programa de Informática na Educação do Ministério da Educação, que estaria publicando, em prazo curtíssimo, uma coleção de 20 livros sobre o tema “Informática para Mudança na Educação”. Para o resto da história, por favor, leia o início do primeiro post da série. Trata-se, portanto, de um texto “datado”, porque poucas coisas mudam tão rápido na nossa sociedade como a tecnologia. Infelizmente, a educação muda, quando muda, muito devagar. ]

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I. Tecnologia, Sociedade e Educação

1. A Informatização da Sociedade

Uma das características mais visíveis de nossa sociedade, em países desenvolvidos, ou mesmo em países em desenvolvimento, como o nosso (hoje chamados por alguns de “emergentes”), é a presença da tecnologia em todos os setores. E a tecnologia mais importante, hoje, é o computador ou está centrada nele.

Comecemos com um simples exercício. Faça uma lista de aspectos de sua vida diária que envolvem contato direto ou indireto com o computador. (Por contato indireto quer-se dizer, neste caso, contato com produtos do computador).

  • No seu trabalho, seu contracheque ou “hollerith” é, com toda certeza, emitido por computador;
  • Seu extrato bancário, naturalmente, é emitido por computador;
  • Se você tem cartões de crédito, seus extratos também são emitidos por computador;
  • Se você compra a crédito, por meios mais convencionais, seus carnês são feitos por computador;
  • Sua notificação de Imposto de Renda (IRPF), Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU), Imposto Permanente sobre Veículos Automotivos (IPVA), e outros impostos é elaborada por computador, e, possivelmente, você até entrega sua declaração de Imposto de Renda e paga seu PVA pela Internet;
  • Suas contas de luz, água, telefone, TV por assinatura, etc., também são preparadas e emitidas por computador;
  • Na escola de seu filho, a matrícula, o carnê de pagamentos (caso ele esteja em escola particular), o relatório de notas, o histórico escolar, etc., são todos elaborados com o auxílio do computador;
  • Se você precisa de alguma informação, o caminho mais natural, hoje em dia, é procurá-la primeiro na Internet;
  • O jornal e a revista que você compra na banca (ou lê pela Internet) foram redigidos, compostos, diagramados, impressos (se este foi o caso), e distribuídos com o auxílio do computador;
  • Emissoras de rádio que você de vez em quando ouve transmitem seus programas via satélite para todo o país e via Internet para todo o mundo, fazendo com que o rádio deixe de ser um meio de comunicação tipicamente local;
  • Os programas de televisão a que você diariamente assiste, não poderiam ter sido feitos ou transmitidos sem o auxílio do computador;
  • Muitos dos comerciais que você vê na televisão são feitos utilizando-se o computador para efeitos visuais e sonoros (efeitos de multimídia);
  • Os efeitos especiais de muitos dos filmes hoje famosos não poderiam ter sido alcançados sem o computador e alguns desenhos animados de longa metragem já estão sendo feitos totalmente através do computador;
  • Se você precisa ou deseja se comunicar com alguém, pessoa física ou instituição, o correio eletrônico é hoje uma das alternativas mais eficientes e eficazes;
  • Grande parte da correspondência que você recebe foi endereçada via computador e toda a sua correspondência chega à sua casa mediante processos controlados por computador;
  • O telefone que você usa hoje não mais funciona sem o computador: suas chamadas locais, interurbanas, e internacionais, são todas completadas e contabilizadas por computadores;
  • O terminal telefônico usado em sua casa, se você mora em local atendido por central telefônica digital, é um computador disfarçado;
  • A distribuição de água e energia elétrica em sua cidade provavelmente é controlada por computador;
  • Se você vai viajar, suas reservas, tanto em companhias aéreas como em hotéis, são feitas por computador;
  • Em aviões, como, também, já em automóveis e em trens mais recentes (como os do metrô de nossas capitais), o computador é responsável pelo controle e bom funcionamento de um número cada vez maior de processos, fazendo com que esses meios de transporte sejam verdadeiras redes ambulantes de computadores;
  • Caminhões e ônibus de frota têm seus movimentos rastreados por satélite e monitorados por computador, para que não se atrasem e nem se desviem desnecessariamente da rota;
  • Seu relógio ou despertador digital tem um minúsculo microprocessador dentro dele, como também é o caso, naturalmente, de sua máquina de calcular eletrônica (a expressão tendo se tornado até pleonástica neste caso);
  • Na verdade, há relógios de pulso que também são bancos de dados de endereços e compromissos e que podem ser conectados a um computador maior para troca de informações;
  • Sua câmera fotográfica e sua câmera de vídeo são controladas por microprocessadores e câmeras fotográficas totalmente digitais (sem filmes) já começam a conquistar o mercado;
  • Seu toca-discos a laser e seu vídeo-jogo (“videogame”) são verdadeiros computadores disfarçados;
  • Em aparelhos domésticos, como televisores, aparelhos de vídeo-cassete, fornos a microondas, geladeiras, etc., microprocessadores já controlam o funcionamento de uma série de processos;
  • Em vez de ir ao banco, você normalmente interage com sua instituição bancária através de caixas eletrônicos e/ou serviços de atendimento remoto (computador, telefone, ou fax);
  • Se você vai ao médico, grande parte dos equipamentos usados nos vários exames a que você se submete são computadorizados;
  • Vários produtos manufaturados que você adquire, de roupas a automóveis, foram feitos com o auxílio do computador;
  • As empresas usam a Internet para fazer seu marketing, para comercializar seus produtos e serviços, e para dar suporte pós-venda aos seus clientes, bem como para se conectar com parceiros, fornecedores, instituições financeiras e órgãos governamentais (principalmente os da área tributária e fiscal);
  • Matrizes e filiais de empresas multinacionais, bem como as instituições financeiras, em geral, em qualquer lugar do globo, estão interconectadas via computador 24 horas por dia, sete dias por semana;
  • A guerra tornou-se um afazer de alta tecnologia e os instrumentos bélicos são equipamentos de alta precisão;
  • As igrejas começam dar assistência espiritual aos seus paroquianos através da Internet;
  • Na política, já se vota eletronicamente e prevê-se o fim próximo da democracia representativa, a ser substituída pela democracia direta, eletrônica, em que plebiscitos e referendos são feitos instantaneamente [1];
  • Seu joguinho nas várias loterias não sairia se não fosse o computador, e até o tradicional Bingo está computadorizado (só faltando informatizar o ponto de venda do Jogo do Bicho);
  • Se você vai a um estádio de futebol ou a um ginásio esportivo, é provável que lá haja um placar eletrônico, controlado por computador;
  • O seu próprio lazer pessoal está cada vez mais dependente do computador, seja o doméstico (que envolve vídeo-jogos, jogos por computador, e bate-papos à distância), seja o externo, fora de casa (que hoje está se concentrando nos grandes centros de lazer e parques temáticos que não existiram sem o computador).

Você pode completar a lista.

O importante é notar que provavelmente seria mais fácil e simples fazer uma lista dos aspectos de nossa vida que não envolvem contato (direto ou indireto) com o computador. Não seria exagero dizer que, se, hoje, computadores deixassem de existir ou parassem de funcionar, nosso mundo e nossa sociedade entrariam em colapso, tantas são as áreas e atividades que dependem deles. Este texto, por exemplo, como quase todos os textos, hoje em dia, não foi redigido com uma máquina de escrever e sim com um computador, valendo-se de referências, fontes, e sistemas de informação disponíveis na Internet mas fisicamente armazenados em dezenas de locais diferentes, espalhados ao redor do mundo.

Na realidade, parece que o mundo da ficção científica saiu do futuro, onde sempre confortavelmente existiu, para invadir o nosso presente.

Hoje em dia até a arte está em grande parte computadorizada. A abertura da maioria dos grandes programas de televisão, os próprios programas, até os comerciais, tornaram-se cenários eletrônicos onde artistas, muitos deles desconhecidos, exibem uma arte sofisticada desenvolvida com o auxílio do computador. Alguns computadores já reconhecem comandos audíveis e são capazes de reconhecer a voz do dono. Sintetizadores de voz permitem que os computadores falem e ajudem até os mudos a se expressar de forma audível. Satélites tiram fotografias a milhões de quilômetros de distância e as transmitem na forma de impulsos elétricos, que, decodificados por computadores, transformam-se em imagens maravilhosas. Equipamentos colocados em satélites tiram, da mesma forma, fotografias que nos permitem elaborar mapas cada vez mais precisos e prever com razoável exatidão as condições meteorológicas. Pequenos transmissores de sinais instalados em veículos que rodam nas estradas comunicam constantemente sua posição a conjuntos de satélites que circulam ao redor do globo, permitindo que computadores localizem imediatamente os veículos. Minúsculos sistemas eletrônicos controlam os batimentos cardíacos de milhares de pacientes e monitoram o funcionamento de seus órgãos vitais. Sofisticados equipamentos médicos computadorizados fazem uma “varredura” (“scan”) do interior das pessoas, possibilitando que várias doenças, que doutra forma passariam despercebidas, possam ser diagnosticadas. O diagnóstico médico e  o monitoramento de pacientes já podem ser feitos à distância. Arquitetos e projetistas usam os recursos gráficos dos computadores para projetar prédios, peças, equipamentos e aparelhos. Nas indústrias, o processo de automação vai sendo implantado, desde o setor produtivo até os setores administrativos, e, em menor grau, nos setores gerenciais e até mesmo executivos. Os estoques e a operação de supermercados, farmácias, e outros negócios estão sendo controlados “ao vivo” (em tempo real) por computadores, em alguns casos pelos próprios fornecedores. Num supermercado é possível, com um apertar de botões, descobrir que produtos, ou que marcas, não estão vendendo bem e colocá-los em ofertas especiais ou locais privilegiados. O governo não subsistiria um dia sem seus computadores. A polícia e a investigação criminal também dependem maciçamente dos computadores. A justiça e os cartórios estão se informatizando. Os semáforos das grandes cidades são controlados por computadores e se ajustam conforme o fluxo do trânsito.

Onde vamos parar? A resposta mais realista é que não vamos parar.

Diante desse quadro, porém, muitas pessoas ficam temerosas de que estejamos entrando, realmente, numa sociedade do tipo previsto no livro 1984, de George Orwell [2].

Em nível individual, muitos se sentem intimidados por computadores. Sentem receio de que sua privacidade venha a ser invadida por eles, de que informações importantes sobre suas vidas estejam sendo armazenadas, sem seu conhecimento e sua autorização, em algum computador do governo (ou de grandes empresas ou instituições não governamentais e sem fins lucrativos), e possam, em algum momento, vir a ser utilizadas contra eles próprios.

Em nível social, teme-se que a automação de processos industriais, comerciais, e administrativos possa vir a eliminar empregos, aumentando, ainda mais, os problemas sociais hoje existentes. [3]

É da natureza humana ter preocupações como essas, e algumas delas são plenamente justificadas, como, por exemplo, as relativas à invasão da privacidade e ao temor de que informações importantes passam vir a ser utilizadas para finalidades que não aquelas para as quais foram fornecidas. O problema do aumento de desemprego estrutural (e não apenas conjuntural) também é real e deve ser encarado com seriedade e bom senso. [4]

Mas, apesar dessas preocupações e desses perigos, todos sabemos que os ponteiros do relógio não vão voltar para trás: a sociedade em que vivemos não vai mais se “desinformatizar” — e isso por uma série de razões, nenhuma das quais talvez essencial em si mesma, mas que, em seu conjunto, se tornam significativas. Mencionemos, brevemente, algumas delas, porque apontam para o lado positivo da maciça introdução de computadores em nossas vidas.

Em primeiro lugar, os computadores fornecem serviços rápidos — e já nos acostumamos a serviços rápidos. Você já imaginou ter que esperar dias para saber quantos os ganhadores na Sena ou na Loto? Para saber as notas de sua filha no vestibular? Ou receber seu cheque no final do mês? Ou fazer reservas para sua viagem? Ou ter que esperar minutos ou até horas para saber seu saldo no banco, ou para conseguir uma ligação interurbana? Já nos acostumamos à rapidez que a utilização do computador nos propicia — dificilmente vamos querer voltar aos velhos tempos.

Em segundo lugar, apesar das inúmeras histórias de erros de computador, computadores são extremamente confiáveis. A maior parte dos chamados erros de computador não passa de meros erros humanos, provocados por programadores, operadores ou usuários que fizeram o que não deveriam ter feito ou não fizeram o que deveriam ter feito. Isso não quer dizer que não haja falhas de equipamento ou de software, mas essas são muito raras perto dos erros humanos. Por causa disso, dificilmente se voltarão os ponteiros do relógio para trás, para que voltemos a fazer manualmente as coisas que hoje são feitas pelo computador. Na verdade, é difícil até imaginar como algumas das coisas que o computador faz hoje possam ser feitas de outra forma!

Em terceiro lugar, computadores e robôs podem executar uma série de tarefas perigosas ou maçantes, que seres humanos não gostam de executar ou até mesmo não podem executar, liberando, assim, seres humanos para tarefas menos perigosas e mais criativas. É verdade que, no processo, há que se lidar com a questão do desemprego, do reaproveitamento e treinamento dos trabalhadores cujas tarefas perigosas e rotineiras vierem a ser assumidas por computadores e robôs. Esse é um problema que terá que ser enfrentado, mas que dificilmente fará com que se decida voltar atrás, até porque a indústria de computadores e equipamentos relacionados também cria uma série de empregos que, fôssemos nós voltar atrás, deixariam de existir, tornando o problema do desemprego, quem sabe, ainda mais sério.

Em quarto lugar, com o desenvolvimento do conhecimento científico e tecnológico, especialmente na área da informática e das telecomunicações, estamos sendo confrontados com um dilúvio de informações. O computador certamente tem contribuído para esse dilúvio — mas será também ele que nos ajudará a lidar com essas informações, arquivando-as, classificando-as, analisando-as, e colocando-as à disposição de quem delas precisa. Sem o auxílio do computador, essas seriam tarefas virtualmente impossíveis hoje em dia.

É quase certo, portanto, que o processo de informatização da sociedade é irreversível e que a cada dia aumentarão as áreas em que o computador estará sendo empregado, bem como as formas de sua utilização. Na verdade, não há quase nenhuma área que possa ser considerada inteiramente imune ao computador. Como já se apontou, em nossas casas já há vários computadores, “assumidos” ou disfarçados (como é o caso do televisor, do vídeo-cassete, do toca-discos a laser, do forno a microondas, do vídeo-jogo, ou até mesmo do terminal telefônico).

Mas paralelamente a essa introdução maciça do computador nas várias áreas da economia e da sociedade, está ocorrendo um outro desenvolvimento, tão ou mais significativo do que esse. Esse desenvolvimento tem que ver não só com a quantidade das áreas informatizadas, mas com a qualidade do acesso à informação. Nos últimos vinte anos, com o surgimento dos computadores pessoais e, mais recentemente, com a interpenetração cada vez maior da informática e das telecomunicações, a natureza do acesso à informação tem se alterado de forma drástica, revolucionária mesmo. Essa alteração não é meramente quantitativa — não é apenas o caso de que mais e mais pessoas têm, hoje, acesso à informação, embora este seja o caso. A alteração é também qualitativa: a pessoa que hoje está tendo acesso à informação, através da informática, é a pessoa leiga, a pessoa não treinada na área — o acesso à informação está atravessando um processo de abertura, está sendo, de certa forma, democratizado. A tecnologia tem permitido a “desmediação” do acesso à informação. O acesso à informação está deixando de ser monopólio dos poderosos ou de uns poucos iniciados, que se trancavam em salas com ar refrigerado e se escondiam por detrás de jargão especializado, freqüentemente inacessível, para se tornar um patrimônio da pessoa não especializada na área. O computador pessoal conectado a redes de escopo mundial está possibilitando isso, e este fato representa um passo gigantesco na direção da informatização da sociedade. Isso porque, à medida que mais e mais pessoas leigas, não especializadas em informática, se envolvem com computadores, estes vão se desmitificando, deixando de ser misteriosos e ininteligíveis, e passando a ser vistos como acessórios pessoais cada vez mais importantes, até se tornarem imprescindíveis.

Os escritórios executivos e CPDs — Centros de Processamento de Dados — deixaram de ser, dentro da empresa, os únicos detentores de informações. Estas, agora, já existem nos computadores pessoais existentes nas escrivaninhas das pessoas, em todos os departamentos e setores, e esses computadores estão cada vez mais interligados, uns com os outros e com computadores externos.

Um dos grandes temas de discussão hoje são as chamadas Super-Vias de Informação, ou Info-Vias. Décadas atrás o grande feito de um político-administrador era construir estradas, interligando-as umas as outras. Hoje isso está sendo substituído pela criação de super-redes de computadores, que interligam milhões de computadores, através das quais a informação trafega. Essas super-redes, por sua vez, estão sendo interligadas umas com as outras, criando a Internet, que vai tornando possível que qualquer computador do mundo possa, em princípio, estabelecer conexão com qualquer outro.

E estamos apenas no começo. A indústria eletrônica digital, que é o fundamento da indústria de computadores, está ainda em sua infância quando comparada à indústria mais convencional e tradicional. Os que têm hoje (1998) mais de 55 anos nasceram numa época em que não existiam computadores. Esses desenvolvimentos são, portanto, muito recentes. É por isso que se fala, hoje em dia, em uma nova revolução industrial. Ou, então, se o termo “industrial” é reservado para a indústria tradicional, afirma-se que estamos vivendo, hoje, em grande parte, numa sociedade pós-industrial, em que a matéria prima mais utilizada é a informação e o equipamento indispensável é o computador — que nos ajuda a processar toda essa informação. A sociedade pós-industrial em que estamos vivendo é a sociedade da informação — a sociedade informatizada. E o computador, que antes apenas processava informação, agora se torna também um transportador de informações e um meio de comunicação — quiçá o meio de comunicação por excelência. O nível de globalização a que chegamos nas áreas da produção industrial e dos serviços não seria sequer imaginável alguns anos atrás. O mundo realmente se tornou uma aldeia, como previra Marshall McLuhan. Os livros que lemos, as músicas que ouvimos, os filmes que vemos são, em grande parte, transnacionais. Assistimos aqui no Brasil, ao vivo, a programas de televisão gerados na América do Norte, na Europa, na Ásia e, naturalmente, em outros países da América do Sul. Vemos, ao vivo, guerras que se desenrolam no Oriente Médio. Consumimos produtos manufaturados ou plantados nos mais diversos países. Da classe média para cima, quase todo mundo tem algum parente morando no exterior. Falamos com pessoas no hemisfério Norte, na Oceania, ou em vários países africanos, com a mesma facilidade com que conversamos com nossos vizinhos. O Milan, o Real Madrid e o Paris Saint-Germain têm torcedores aqui no Brasil, da mesma forma que os times brasileiros têm torcedores lá fora. A queda da bolsa na Tailândia afeta as bolsas no resto do mundo. Pela Internet podemos fazer cursos de Pós-Graduação no exterior, pesquisar as melhores bibliotecas do mundo, e comprar livros em livrarias virtuais (que estão tornando obsoleta essa excrescência que é o “dólar livro”).

É por tudo isso e muito mais, e, ainda, por algumas outras razões pessoais que só as próprias pessoas conhecem, que tantas pessoas estão fazendo cursos de informática ou participando de programas de treinamento em informática. A informática hoje afeta todas as profissões. Quem trabalha em um escritório não pode ignorar a questão. Quem  exerce profissão no setor de artes ou projetos gráficos, sabe que o computador é ferramenta indispensável de trabalho. Quem é profissional liberal (advogado, médico, dentista, engenheiro, etc.), precisa estar interessado na questão. Quem é estudante, também, talvez com maior razão. Hoje, desde o escriturário até o artista plástico, desde a enfermeira até o romancista, desde o trabalhador na linha de montagem até o executivo de marketing e de vendas, todos estão tendo suas profissões redefinidas e, em alguns casos, revolucionadas, pela introdução do computador. Escritores, artistas, jornalistas, todos estão procurando se capacitar. Há debates, mesas redondas, painéis, sobre como a informática está afetando as profissões, tornando algumas obsoletas (como a de tipógrafo, por exemplo), redefinindo outras (como a de jornalista). Todos os setores profissionais se agitam. Dentro de pouco tempo, quem não dominar a informática será equivalente ao semi-analfabeto de hoje: terá que se contentar com uma profissão não qualificada.

2. A Educação, a Escola e o Professor

Mas e a educação, a escola e o professor? Por que nada disso parece afetá-los ou mesmo lhes dizer respeito?

Deixemos de lado, por um momento, a educação não-formal, e concentremos nossa atenção na escola e no seu principal agente, o professor. O que acontece com a escola, que faz com que, apesar de virtualmente todas as outras áreas de nossa sociedade estarem se transformando, em grande parte em função da introdução de tecnologia, especialmente de computadores, a escola continue a operar como se nada disso lhe fosse relevante, tornando-se uma ilha não-tecnológica num mar de tecnologia?

Se é função da educação preparar o indivíduo para uma vida plena (em que faça bom uso até de seu tempo livro, do qual terá cada vez mais), o cidadão para o exercício de seus direitos e deveres, e o profissional para o trabalho, se é inegável (como acabamos de ressaltar) que a sociedade em que o indivíduo vai viver, exercer a sua cidadania e trabalhar está permeada pela tecnologia, e se é fato que a escola é o principal agente da educação na sociedade, parece lógico esperar que a escola estivesse extremamente interessada e envolvida nesses desenvolvimentos, pois, doutra forma, correria o risco de rapidamente se tornar uma “fábrica de obsoletos” (que é o que o jornalista Gilberto Dimmenstein diz que ela já é [5]).

Por que a escola parece sempre tão disposta a resistir a mudanças?

Mesmo numa sociedade apenas “emergente” como a nossa, não ainda plenamente desenvolvida, a tecnologia entrou sem maiores resistências e sem grandes dificuldades em quase todas as áreas em que normalmente se divide a sociedade. Hoje temos produção industrial mediada pela tecnologia, comércio mediado (ou pelo menos sustentado) pela tecnologia, serviços bancários mediados pela tecnologia, atendimento médico mediado pela tecnologia, comunicação mediada pela mais alta tecnologia, e até entretenimento mediado pela  tecnologia. No entanto, estamos ainda muito longe de uma educação mediada pela tecnologia — pelo menos no que diz respeito à educação formal ministrada pela escola.

O que causa perplexidade é que a educação, que deve, entre outras finalidades, preparar o indivíduo para viver uma vida pessoal rica, para atuar de forma responsável como cidadão, e para exercer uma profissão de forma competente e recompensadora, não pode, numa sociedade como a nossa, alcançar esses objetivos sem dominar a tecnologia.

Nossas casas possuem cada vez mais tecnologia, votamos com a ajuda da tecnologia, acedemos a informações através da tecnologia, participamos de debates através da tecnologia, nos comunicamos através da tecnologia, e trabalhamos (quase em qualquer área) com o indispensável apoio da tecnologia. Diante disso, não devia nossa educação formal, escolar, estar extremamente preocupada com a possibilidade de que também a educação pudesse, e, talvez, devesse ser mediada pela tecnologia? Mesmo deixando de lado nossas instituições financeiras, nossas indústrias, nossos escritórios, nossos centros comerciais, por que o cuidado com a saúde de nosso corpo é, hoje, tão dependente da tecnologia, e o cuidado com a saúde de nossa mente, de nossas emoções, de nossas relações pessoais, que deve ser objeto da educação, é tão pouco afetado por ela?

A resposta nada tem que ver com a natureza da educação — muito pelo contrário [6]. Teria algo que ver, então, com os profissionais da educação? Seriam os educadores mais resistentes a inovações (isto é, mais conservadores) do que, por exemplo, os médicos? Parece que sim — não no sentido político (onde geralmente os educadores se pretendem avançados e progressistas), mas, sim, no sentido de tentar conservar a sua prática tão inalterada quanto possível, procurando argumentos de todos os tipos (inclusive racionalizações) para justificar o seu conservadorismo.

Se não são os educadores, o que explica o atraso da educação escolar no que diz respeito ao uso da tecnologia — em especial quando a tecnologia hoje é tão relevante e útil para o aprendizado, e, assim, para a educação? Note-se, ao mesmo tempo, que, fora da escola, a educação (que chamamos de não formal) não parece tão presa a objetivos, métodos e técnicas tradicionais. Ali o uso da tecnologia parece acompanhar mais de perto o que acontece no restante da sociedade.

As tecnologias de informática têm sido chamadas de extensões de nossa mente — diferentemente das outras tecnologias, que ampliam nossa capacidade sensorial, motora, ou muscular [7]. Nossa era tem sido chamada, como vimos, de “era da informação” e de “era do conhecimento”, porque a tecnologia que a caracteriza é extremamente relevante para o acesso à informação e a construção do conhecimento. A informação e o conhecimento estão rapidamente se tornando o principal meio de produção, através do qual nossa sociedade encontrou uma nova forma de gerar riquezas. E as tecnologias da informática estão intrinsecamente ligadas a esses desenvolvimentos.

É por isso tudo que causa perplexidade ver a educação (formal, escolar) ainda tentando dar, hoje, passos inseguros nessa área (passos esses que começou a ensaiar há mais de 15 anos no Brasil), enquanto as outras áreas da sociedade, mesmo aqui no Brasil, já alcançaram maioridade e têm desempenho que se equipara ao dos países mais desenvolvidos.

3. A Questão da Tecnologia

Antes, porém, de ir adiante em nossa discussão, precisamos tornar mais preciso o nosso conceito de tecnologia, pois, caso contrário, poder-se-ia ter a impressão de que a tecnologia é um fenômeno recente e que as tecnologias da informática (ou as tecnologias digitais) são as únicas tecnologias dignas do nome. Veremos que o conceito de tecnologia é bem mais amplo e que, toda vez que uma nova tecnologia aparece, ela geralmente acaba produzindo não só transformações técnicas, mas, também, importantes mudanças sociais.

A. O “Artefato” e a Técnica

Hoje em dia é comum distinguir entre “alta” e “baixa” tecnologia e falar em tecnologia “de ponta”. Os desenvolvimentos mais fascinantes, sem dúvida, estão hoje na área da chamada alta tecnologia ou tecnologia de ponta, principalmente nas áreas que envolvem eletrônica digital (em especial a informática) e bioengenharia.

Este fato, entretanto, não deve fazer com que nos esqueçamos de que, em um sentido básico e fundamental, tecnologia é todo artefato ou técnica que o homem inventa para estender e aumentar seus poderes, facilitar seu trabalho ou sua vida, ou simplesmente lhe trazer maior satisfação e prazer.

Assim, a alavanca, o machado, a roda, o arado, o anzol, o motor a vapor, a eletricidade, a carroça, a bicicleta, o trem, o automóvel, o avião, o telégrafo, o telefone, o rádio, a televisão, tudo isso certamente é tecnologia. Mas também são tecnologia a fala, a escrita, a impressão, os ornados vitrais das catedrais medievais, os instrumentos musicais, os sistemas de notação musical, e tantas outras coisas que o homem inventou para lhe trazer satisfação e prazer.

Aqui nos interessam especialmente as tecnologias de comunicação, que são, em aspectos importantes, tecnologias relacionadas não com os poderes físicos do ser humano, mas com seus poderes mentais e, conseqüentemente, com a sua educação.

“A comunicação humana, ao longo do tempo, passou por quatro revoluções distintas: a palavra falada; a palavra escrita; a palavra impressa; e, finalmente, a quarta revolução, potencialmente mais profunda e ainda em curso, que se iniciou com o rápido desenvolvimento das telecomunicações”. [8]

Assim, discutiremos, nas seções que seguem, a linguagem falada, a linguagem escrita, a impressão e, como exemplo das novas tendências, as tecnologias do som e da imagem — que, embora tenham antecedentes bastante antigos, desembocam hoje na multimídia.

B. A Fala como Tecnologia

Antes de desenvolver a fala (linguagem falada), o ser humano era virtualmente indistinguível dos animais. Como estes, comunicava-se por gestos e grunhidos. Tem se comentado muito, hoje em dia, o fato de que alguns primatas são capazes de relacionar um som (como uma palavra) com um determinado objeto ou uma determinada ação. O estabelecimento dessa correlação entre um som e um objeto ou uma ação é o aspecto mais simples e elementar do aprendizado da fala. Ele envolve nada mais do que a capacidade de rotular as coisas, dando como que nomes próprios a objetos e ações.

O aprendizado real da linguagem, entretanto, envolve a capacidade de fazer abstrações, criar conceitos, e usar termos gerais para designar esses conceitos.

Há três principais tipos de conceitos.

O primeiro tipo de conceito é aquele que é obtido mediante a abstração (remoção) de características concretas e acidentais de entidades perceptíveis de modo a deixar apenas as características essenciais que vários objetos físicos compartilham e que servem de base para que apliquemos a eles, e apenas a eles, um determinado termo geral (nome comum, não próprio). Assim, depois de observar um número razoável de mesas elaboramos o conceito de mesa (e damos a ele o nome “mesa”, se nossa língua for o Português). Esse conceito não descreve nenhuma mesa concreta (particular), mas, sim, apenas as características gerais que todas as mesas compartilham e que podem ser chamadas, portanto, de as características essenciais de uma mesa. O termo “mesa” é um termo geral, comum, não é um nome próprio, e se aplica, portanto, a qualquer objeto que tenha as características essenciais de uma mesa. Os conceitos desse primeiro tipo podem ser chamados de conceitos empíricos (porque designam entidades perceptíveis, a que se pode claramente apontar, de forma ostensiva) e representam o primeiro nível ou a primeira ordem de conceitos.

O segundo tipo de conceito é obtido quando refletimos, não diretamente sobre as características essenciais de objetos físicos, mas, sim, sobre conceitos de primeiro nível, como o que acabamos de identificar, e construímos, a partir deles, conceitos cujos ingredientes básicos são outros conceitos — abstrações de abstrações. Esses são conceitos de segundo nível, porque pressupõem os conceitos de primeiro nível e não existiriam sem eles.

Há basicamente duas formas de gerar conceitos desse tipo:

  1. a) criando, a partir dos conceitos de primeiro nível, conceitos mais genéricos, que, por serem mais genéricos, abrangem mais entidades e, portanto, integram vários outros conceitos;
  2. b) criando, ainda a partir dos conceitos de primeiro nível, conceitos mais específicos, que, por serem mais específicos, abrangem menos entidades e, portanto, diferenciam outros conceitos.

O conceito de móvel é um conceito mais abrangente do que o conceito de mesa, porque abrange o conceito de mesa e vários outros conceitos (de cadeira, de cama, de guarda-roupa, etc.). Na verdade, o conceito de móvel representa o gênero do qual o conceito de mesa representa a espécie. Não há nenhum objeto físico que possa ser classificado como móvel que não seja, ao mesmo tempo, classificável debaixo de um conceito de nível lógico inferior, como uma mesa, uma cadeira, uma cama, um guarda-roupa, etc. Na psicogênese dos conceitos, o de móvel muito provavelmente é derivado do de mesa, cadeira, etc., por generalização.

O conceito de mesa de café, porém, é um conceito mais específico (e, portanto, menos abrangente) do que o conceito de mesa, porque se refere a uma categoria específica — uma espécie — de mesa (que, em relação a mesa de café, passa a ser o gênero). É importante notar que, neste caso, o conceito base, que poderíamos chamar de “âncora”, é o conceito de mesa, não o de mesa de café. Na psicogênese dos conceitos, o de mesa de café certamente é derivado do de mesa, por especificação.

O terceiro tipo de conceito abrange os conceitos abstratos, que não se referem a objetos empíricos, perceptíveis, mas, sim, a qualidades intangíveis como verdade, bondade, beleza, etc. Para chegar a esses conceitos o homem precisa exercer os seus poderes de abstração num nível ainda mais elevado. Era com esses conceitos que Sócrates gostava de trabalhar.

Nenhum animal, a não ser o homem, é capaz de construir conceitos. A fala não passaria de um sem número de grunhidos e, na melhor das hipóteses, nomes próprios se não fosse essa capacidade lógica que tem o ser humano de criar conceitos e de usar nomes gerais (comuns) para se referir a eles.

Podemos imaginar, portanto, o grande salto que representa, na escala evolutiva, o aparecimento da fala. Sem a linguagem (que apareceu primeiro como fala), não haveria educação (como a entendemos hoje). Historicamente, a fala representa a primeira tecnologia que tornou possível a educação. (Pressupõe-se aqui que apenas o ser humano realmente educa — o que aquilo que uma gorila, ou um casal de gorilas, faz com seus pequenos não seria, neste caso, educação).

No estágio da tradição exclusivamente oral, a educação é algo forçosamente pessoal e “presencial” (termo muito usado hoje para realçar o contraste com “educação à distância”). Para que ela aconteça duas pessoas têm que estar próximas uma da outra, no espaço e no tempo, e criar, uma com a outra, uma relação eminentemente pessoal. Esse modelo tem se perpetuado, mesmo depois da introdução na educação de tecnologias, como o livro impresso, que tornaram possível uma educação não presencial e assíncrona (isto é, que não envolve contigüidade espaço-temporal).

C. A Escrita como Tecnologia

O passo tecnológico mais significativo dado a seguir, nessa área que nos interessa, foi o da invenção da escrita, muitos milênios depois da invenção da fala. A escrita é uma tecnologia que nos permite, num primeiro momento, registrar a fala, para que outros possam receber as palavras que a distância e/ou o tempo os impede de escutar. Hoje em dia há tecnologias que gravam a fala em si, ou que a levam a locais remotos, mas antes da invenção de fonógrafos, telefones e de outros meios de telecomunicação sonoros, tínhamos que depender da escrita para levar a fala codificada a locais remotos. Com a escrita temos comunicação lingüistica remota, comunicação lingüistica à distância [9].

A escrita foi, portanto, a primeira tecnologia que permitiu que a fala fosse congelada, perpetuada, e transmitida à distância. Com a escrita, deixou de ser necessário capturar a fala de alguém naquele instante passageiro e volátil antes que ela se dissipasse no espaço. A escrita tornou possível o registro da fala e a transmissão da fala para localidades distantes no espaço e remotas no tempo.

Na realidade, com o passar do tempo, a escrita acabou por criar um novo estilo de comunicação: a linguagem tipicamente escrita, que não é a mera transcrição da fala. Além disso, a escrita também criou um novo estilo de fala. O teatro, por exemplo, é a fala decodificada da escrita [10]. Alguém escreve a peça, ou o roteiro, e outros a representam, falando. Literalmente, não havia teatro antes da escrita — só improvisação. No teatro, portanto, a comunicação se dá em dois tempos: da fala imaginada pelo autor da peça para o texto escrito, e do texto escrito para a fala interpretada do ator. (Pressupõe-se, aqui, que ler uma peça não é equivalente a assistir a ela representada no teatro).

Muitos expressaram receio, quando a escrita se disseminou, de que ela fosse subverter a memória e, conseqüentemente a educação, até então calcada na memória, e de que ela fosse uma forma de comunicação essencialmente inferior à fala.

Sócrates, pelo que consta, nunca escreveu nada. A julgar pelos relatos que dele e de suas idéias nos deixa Platão, isso não se deu por acaso: Sócrates tinha preconceitos contra a escrita. Pelo menos é isto que fica claro no famoso diálogo Fedro.

No capítulo XXV de Fedro, Sócrates conta a seguinte história, que ele chama de mito, acerca da invenção da escrita, que ele atribui ao deus egípcio Teuto (a quem os Gregos chamavam de Hermes). Teuto, orgulhoso de sua principal invenção (ele também teria sido o inventor do número e do cálculo, da geometria e da astronomia), veio mostrá-la ao rei Tamos, que lhe perguntou qual a utilidade da invenção. Eis o que disse Teuto: “Aqui, ó rei, está um conhecimento que melhorará a memória do povo egípcio e o fará mais sábio. Minha invenção é uma receita para a memória e um caminho para a sabedoria”. A isso o rei ceticamente respondeu:

“Ó habilidoso Teuto, a um é dado criar artefatos, a outro julgar em que medida males e benefícios advêm deles para aqueles que os empregam. E assim acontece contigo: em virtude de teu apreço pela escrita, que é tua filha, não vês o seu verdadeiro efeito, que é o oposto daquele que dizes. Se os homens aprenderem a escrita, ela gerará o esquecimento em suas almas, pois eles deixarão de exercitar suas memórias, ficando na dependência do que está escrito. Assim, eles se lembrarão das coisas não por esforço próprio, vindo de dentro de si próprios, mas, sim, em função de apoios externos. O que você inventou não é uma receita para a memória, mas apenas um lembrete. Não é o verdadeiro caminho para a sabedoria que você oferece aos seus discípulos, mas apenas um simulacro, pois dizendo-lhes muitas coisas, sem ensiná-los, você fará com que pareçam saber muito, quando, em sua maior parte, nada sabem. E eles serão um fardo para seus companheiros, pois estarão cheios, não de sabedoria, mas da pretensão da sabedoria.” [11]

A seguir Sócrates comenta:

“Você sabe, Fedro, esta é a coisa estranha sobre a escrita, que ela se parece com a pintura. Os produtos do pintor ficam diante de nós como se estivessem vivos, mas se você os questiona, eles mantêm um silêncio majestático. O mesmo acontece com as palavras escritas: elas parecem falar com você como se fossem inteligentes, mas se você, desejando ser instruído, lhes pergunta alguma coisa sobre o que dizem, elas continuam a lhe dizer a mesma coisa, para sempre. Uma vez escrita, uma composição, seja lá qual for, se espalha por todo lugar, caindo nas mãos não só dos que a entendem, mas também daqueles que não deveriam lê-la. A composição escrita não sabe diferenciar entre as pessoas certas e as pessoas erradas. E quando alguém a trata mal, ou dela abusa injustamente, ela precisa sempre recorrer ao seu pai, pedindo-lhe que venha em sua ajuda, posto que é incapaz de defender-se por si própria” [12].

Walter Ong, em seu fascinante livro Oralidade e Cultura Escrita, comenta esse trecho, relacionando-o com questões atuais, de uma maneira que é bastante pertinente ao nosso propósito original, ao citá-lo:

“A maioria das pessoas fica surpresa, e muitas ficam angustiadas, ao saber que, fundamentalmente, as mesmas objeções feitas em geral aos computadores hoje foram feitas por Platão no Fedro (274-277) e na Sétima Carta em relação à escrita. A escrita, diz Platão através de Sócrates, no Fedro, é inumana, pois pretende estabelecer fora da mente o que na realidade só pode estar na mente. É uma coisa, um produto manufaturado. O mesmo, é claro, é dito dos computadores. Em segundo lugar, objeta o Sócrates de Platão, a escrita destrói a memória. Aqueles que usam a escrita se tornarão desmemoriados e se apoiarão apenas em um recurso externo para aquilo de que carecem internamente. A escrita enfraquece a mente. Atualmente, os pais, assim como outras pessoas, temem que [os computadores e] as calculadoras de bolso forneçam um recurso externo para o que deveria ser o recurso interno de tabuadas memorizadas. [Os computadores e] [a]s calculadoras enfraquecem a mente, aliviam-na do trabalho que a mantém forte. Em terceiro lugar, um texto escrito é basicamente inerte. Se pedirmos a um indivíduo para explicar esta ou aquela afirmação, podemos obter uma explicação; se o fizermos a um texto, não obteremos nada, exceto as mesmas, muitas vezes tolas, palavras às quais fizemos a pergunta inicialmente. Na crítica moderna ao computador, faz-se a mesma objeção: ‘Lixo entra, lixo sai’. Em quarto lugar, em compasso com a mentalidade agonística das culturas orais, o Sócrates de Platão também acusa a palavra escrita de não poder se defender como a palavra natural falada [*]: o discurso e o pensamento reais sempre existem fundamentalmente em um contexto de toma-lá-dá-cá [“give-and-take”] entre indivíduos reais. Fora dele, a escrita é passiva, fora de contexto, em um mundo irreal, artificial. Como os computadores.” [13]

É curioso que Platão (embora não Sócrates) tenha se valido da escrita para perpetuar esses diálogos socráticos. Provavelmente ele discordasse de seu mestre neste aspecto. Caso contrário, dificilmente teríamos os diálogos socráticos registrados [14].

Vale a pena registrar, no contexto, as considerações de Walter Ong sobre a escrita:

“Platão [Sócrates] estava pensando na escrita como uma tecnologia externa, hostil, como muitas pessoas atualmente fazem em relação ao computador. Em virtude de termos hoje interiorizado a escrita, absorvendo-a tão completamente em nós mesmos, de uma forma que a era de Platão ainda não fizera (Havelock 1963), julgamos difícil considerá-la uma tecnologia, tal como aceitamos fazer com o computador. No entanto, a escrita (e especialmente a alfabética) é uma tecnologia, exige o uso de ferramentas e outros equipamentos: estiletes, pincéis ou canetas, superfícies cuidadosamente preparadas, peles de animais, tiras de madeira, assim como tintas, e muito mais. . . . A escrita é, de certo modo, a mais drástica das três tecnologias [escrita, impressão, computadores]. Ela iniciou o que a impressão e os computadores apenas continuam, a redução do som dinâmico a um espaço mudo, o afastamento da palavra em relação ao presente vivo, único lugar em que as palavras faladas podem existir. . . . O processo de registrar a linguagem falada é governado por regras conscientemente planejadas e inter-relacionadas: por exemplo, um certo pictograma significará uma certa palavra específica, ou ‘a’ representará um certo fonema, ‘b’ um outro, e assim por diante. . . . Dizer que a escrita é artificial não é condená-la, mas elogiá-la. Como outras criações artificiais e, na verdade, mais do que qualquer outra, ela é inestimável e de fato fundamental para a realização de potenciais humanos mais elevados, interiores. As tecnologias não constituem meros auxílios exteriores, mas, sim, transformações interiores da consciência, e mais ainda quando afetas à palavra. Tais transformações podem ser enaltecedoras. A escrita aumenta a consciência. A alienação de um meio natural pode ser boa para nós e, na verdade, é em muitos aspectos fundamental para a vida humana plena. Para viver e compreender plenamente, necessitamos não apenas da proximidade, mas também da distância. Essa escrita alimenta a consciência como nenhuma outra ferramenta. As tecnologias são artificiais, mas — novamente um paradoxo — a artificialidade é natural aos seres humanos. A tecnologia, adequadamente interiorizada, não rebaixa a vida humana, pelo contrário, acentua-a.” [15]

É interessante também notar, neste contexto, que o que Sócrates considera uma desvantagem da escrita — o fato de que ela não responde às nossas perguntas — Mortimer J. Adler e Charles van Doren consideram uma vantagem: as perguntas que nós fazemos ao texto escrito, somos nós mesmos que temos que tentar responder — e isso é bom, porque nos desafia, porque nos torna ativos na leitura. Eis o que dizem, em seu livro How to Read a Book:

“Ouvir uma série de preleções é, por exemplo, em muitos aspectos, como ler um livro, e ouvir um poema é como lê-lo. Muitas das regras formuladas neste livro [dedicado a como ler um livro] se aplicam à experiência de ouvir. Entretanto, há boa razão para se colocar mais ênfase na atividade da leitura e colocar menos ênfase na atividade da audição. A razão é que audição é aprendizado por [“from”] um ensinante presente enquanto leitura é aprendizado por [“from”] um ensinante ausente. Se você faz uma pergunta a um ensinante presente, ele provavelmente vai respondê-la. Se você fica perplexo por algo que ele diz, você pode se poupar o trabalho de refletir perguntando a ele o que ele quis dizer. Se, contudo, você formula uma pergunta a um livro, é você mesmo que vai ter que respondê-la! Neste aspecto, o livro é mais como a natureza ou o mundo. Quando você o questiona, ele só responde se você se dá ao trabalho de pensar e analisar”. [16]

É verdade, porém, que Adler e van Doren já estão falando de livros impressos, mas o que dizem se aplica também a livros manuscritos. Mas, com isso, chegamos à seção seguinte.

D. A Impressão como Tecnologia

A impressão representa o estágio seguinte no processo de desenvolvimento das tecnologias de comunicação. A escrita, antes da impressão, tinha alcance limitado, porque era feita a mão. Copiar um livro a mão, por exemplo, era algo que levava tempo e ficava caro. Por isso, antes do surgimento da impressão, havia poucos livros, e o número de pessoas alfabetizadas era pequeno. Apenas aprendiam a ler e a escrever, e, portanto, recebiam educação num sentido parecido com o atual,  os intelectuais, isto é, as pessoas que estavam incumbidas da preservação da cultura — geralmente monges e clérigos. Num contexto assim é de imaginar que a educação não florescesse como fenômeno de massa. Nem mesmo os reis, os príncipes e os nobres — isto é, as pessoas que ocupavam os escalões mais altos da sociedade — eram alfabetizados: não havia porque devessem saber ler e escrever, pois não havia o que ler. Escrever era uma arte manual cujos produtos eram poucos e pouco disseminados [17].

Quando Gutenberg inventou a impressão de tipo móvel, em 1450, tudo começou a mudar.

As mesmas críticas que foram feitas à escrita foram feitas à impressão, e com muito mais razão, como bem ressalta Walter Ong:

A fortiori, a impressão está sujeita a essas mesmas acusações [que foram feitas à escrita]. Aqueles que se perturbam com as apreensões de Platão quanto à escrita se sentirão ainda mais inquietos ao descobrir que a impressão criou receios semelhantes quando foi introduzida pela primeira vez. Hieronimo Squarciafico, que na verdade promoveu a impressão dos clássicos latinos, também argumentou em 1477 que a ‘abundância de livros torna os homens menos atentos’ (citado em Lowry 1979, pp. 29-31): ela destrói a memória e enfraquece a mente ao aliviá-la do trabalho árduo (novamente a queixa contra o computador de bolso), rebaixando o sábio em favor do compêndio de bolso. Obviamente, outros viram a impressão como um nivelador bem-vindo: todos se tornam sábios (Lowry 1979, pp. 31-32)” [18].

No entanto, no caso da impressão os efeitos sobre a educação foram ainda mais amplos e mais profundos. Numa cultura oral, ou mesmo em uma cultura letrada, mas em que livros são escassos, como era o caso da cultura posterior à invenção da escrita mas anterior à da impressão, quem quisesse aprender alguma coisa tinha que se deslocar até a presença de uma pessoa que conhecesse bem esse conteúdo e estivesse disposta a ensiná-lo. Por isso estudiosos eram itinerantes na Idade Média: tinham que ficar se locomovendo atrás dos mestres que lhes interessavam, aos pés dos quais se sentavam para absorver suas palavras e retê-las na memória! O livro impresso, que rapidamente se popularizou, era uma excelente memória auxiliar que tornava desnecessário reter na memória tudo que era necessário saber. Assim, o livro impresso começou a disseminar a prática de dar ao aprendizado o ritmo do aprendente, não do ensinante. Com o livro impresso também tornou-se fácil e comum aprender com alguém que está distante no espaço — ou no tempo! Assim, a impressão, e o seu produto, o livro impresso, tornaram possível, pela primeira vez, a prática generalizada do ensino à distância. Com o livro facilmente disponível e relativamente barato, estimulou-se e muito o auto-aprendizado sistemático (com o auxílio do livro).

Assim, o livro impresso, além de compartilhar com a escrita a acusação de que contribuía para o enfraquecimento da memória, pode ter sido objeto de críticas no sentido de que acentuava a remoção, da educação, daquele caráter de relacionamento pessoal entre mestre e discípulo, que, numa tradição oral, lhe era indispensável e, numa tradição letrada, mas anterior à impressão, se considerava ainda essencial para ela.

O livro, pode-se confiantemente dizer, foi o primeiro produto cultural de consumo de massa. Se a fala foi a tecnologia que tornou possível a educação, o livro impresso  foi a tecnologia que lhe causou a primeira grande revolução [19].

Mas a impressão e o livro impresso revolucionaram mais do que a educação. Sem eles não teria havido a Reforma Protestante, não teria surgido a ciência moderna, não teriam se fortalecido as línguas vernáculas modernas, não teriam surgido as literaturas modernas, como as conhecemos, não teria acontecido o Século das Luzes, não teriam aparecido os estados nacionais modernos, e, assim, provavelmente não teríamos tido todos os desenvolvimentos desses decorrentes (como a Revolução Americana, a Revolução Francesa, etc.) [20].

E. A Tecnologia da Imagem

A pintura é uma forma de linguagem não verbal. Parece provável que as primeiras linguagens escritas tenham sido pictóricas, não alfabéticas. A pintura, diferentemente da linguagem alfabética, é uma forma analógica de representação da realidade. Como tal, a pintura, enquanto tecnologia, é extremamente antiga.

Depois da invenção e do uso disseminado da linguagem alfabética, a pintura continuou a ser usada como meio de comunicação, especialmente em benefício dos analfabetos. Nas catedrais medievais, as pinturas chegaram a uma forma extremamente sofisticada de arte e de meio de comunicação. Marshall McLuhan, num rasgo de exagero, chega a considerar os vitrais medievais os predecessores da televisão [21].

A grande inovação, na área de tecnologia da imagem, surgiu com a fotografia. Muitos acreditaram, quando surgiu a fotografia, que ela pudesse matar a pintura: por que iria alguém preferir uma representação imprecisa e inadequada da realidade, se poderia ter uma cópia perfeita (se bem que em duas dimensões)? Note-se que quem faz observação como essa pressupõe que a função da pintura é representar a realidade de forma tão fidedigna possível. Neste caso, a fotografia, representando a realidade de forma ainda mais fidedigna do que qualquer pintura, tornaria esta forma de arte obsoleta.

Depois da fotografia, vieram o cinema, a televisão e o vídeo: a imagem em movimento e (depois de uma breve fase de cinema mudo) acompanhado do som.

Da mesma forma que se acreditou que a fotografia pudesse matar a pintura, cogitou-se de que o cinema pudesse matar o teatro. Nada disso aconteceu. Especula-se, ainda, que a televisão vai matar o cinema. Aqui a questão ainda está aberta.

Na educação, a imagem tem uma função muito importante, se bem que, hoje, freqüentemente subutilizada na escola. É de crer que, no mundo antigo e medieval, em que a maioria da população era analfabeta, a imagem tivesse um papel educacional bem mais proeminente — semelhante ao que possui, hoje, na educação não-formal, que se realiza fora de contextos escolares. Mesmo depois da impressão, a imagem continuou a ter um papel bastante educacional importante na educação, se bem que o mais das vezes esse papel fosse supletivo ao da escrita. As já mencionadas catedrais também tinham um objetivo pedagógico, além do devocional.

Muitos analistas acham que, hoje, em função da influência generalizada da televisão, estamos retornando para uma cultura oro-imagênica e deixando para trás a cultura letrada que imperou durante tantos séculos, a partir da invenção da impressão. Por isso os jovens, hoje, preferem ver televisão a ler, ou preferem ver a versão filmada de um livro a ler o próprio livro. Como a televisão faz excelente uso, ao lado da imagem, da linguagem falada, pode argumentar-se que as novas gerações estão retroagindo para o nível da cultura oral: são extremamente hábeis e proficientes na comunicação oral, mas altamente deficientes na comunicação escrita (seja na leitura, seja na escrita, propriamente dita). A linguagem corporal das novas gerações também é, em geral, bastante eficiente, mesmo quando usada inconscientemente. Há muito material importante para estudo e pesquisa aí por parte dos educadores.

F. A Tecnologia do Som

Aqui se trata de fazer referência, ainda mais brevemente do que nos casos anteriores, à tecnologia do som — quer se dizer, de um lado à tecnologia da gravação, reprodução e transmissão do som; de outro lado à tecnologia da música e dos instrumentos musicais.

Se a escrita permitiu o registro e a perpetuação da fala, isto se deu transformando a fala em algo diferente, a saber, símbolos visuais. Aqui, porém, estamos destacando o registro da fala enquanto fala, não como algo diferente. (É verdade que sempre foi possível reconstituir a fala a partir da escrita, mas isso é outra coisa).

A tecnologia de gravação, reprodução e transmissão do som permite que o som seja transmitido à distância. Com isso foi possível o aparecimento do telégrafo, do telefone, e do rádio — tecnologias que, com exceção do telégrafo, são ainda extremamente importantes hoje, até mesmo na educação (principalmente não formal).

Na área de tecnologia do som merece destaque especial a música. Tanto quanto se sabe, o ser humano sempre cantou. Desde que aprendeu a falar, é de crer que tenha começado a colocar letras em suas melodias.  Para os sons musicais, a notação musical desempenha o mesmo papel que, para a fala, desempenha a escrita.

A tecnologia do som envolve, ainda, por fim, um outro aspecto, o da criação de sons previamente inexistentes no mundo natural, como é o caso dos instrumentos musicais.

Combinados, os instrumentos musicais eventualmente tornaram possível a orquestra, que representa uma tecnologia bastante sofisticada, como bem ressalta Walter Ong:

“A orquestra moderna, por exemplo, é resultado de alta tecnologia. Um violino é um instrumento, isto é, uma ferramenta. Um órgão é uma máquina enorme, com recursos de força — bombas, foles, geradores elétricos — inteiramente exteriores a seu operador. A partitura de Beethoven para sua Quinta Sinfonia consiste em instruções muito precisas a técnicos altamente treinados, que especificam exatamente como usar as ferramentas. Legato: não tire seus dedos de uma tecla até que tenha tocado a seguinte. Staccato: toque a tecla e tire seu dedo imediatamente. E assim por diante. Os musicólogos sabem muito bem que é inútil fazer objeção a composições eletrônicas como The wild bull, de Morton Subotnik, sob a alegação de que os sons provêm de um dispositivo mecânico. De onde se julga virem os sons de um órgão? Ou os sons de um violino ou até mesmo de um apito? O fato é que, usando um dispositivo mecânico, um violinista ou um organista podem exprimir algo pungentemente humano que não pode ser expresso sem aquele dispositivo. Para conseguir tal expressão, obviamente, o violinista ou o organista precisam ter interiorizado a tecnologia, feito da ferramenta ou da máquina uma segunda natureza, uma parte psicológica de si mesmos. Isso exige anos de ‘prática’, de aprendizado de como obrigar a ferramenta a fazer o que ela pode fazer. Essa adaptação de uma ferramenta a si próprio, o aprendizado de uma habilidade tecnológica, dificilmente pode ser considerado algo desumanizante [*]. O uso de uma tecnologia pode enriquecer a psique humana, ampliar o espírito humano, intensificar sua vida interior. A escrita é uma tecnologia ainda mais profundamente interiorizada do que a execução de um instrumento musical. Mas, para compreender o que ela é — o que significa compreendê-la em relação a seu passado, à oralidade — o fato de que ela é uma tecnologia deve ser encarado com honestidade” [22].

G. A Tecnologia Digital e Multimídia

A tecnologia digital revolucionou as tecnologias da fala e do som, da escrita e da impressão, e da imagem. Com ela tornou-se possível transformar em números (dígitos, donde tecnologia digital) palavras faladas, palavras escritas e impressas, outros sons, gráficos, desenhos, imagens estáticas e em movimento. Tudo passou a ser número e passou a poder ser transmitido, na velocidade da luz, para qualquer canto do mundo. Com o computador, surgiu multimídia: um megameio de comunicação que incorpora, em um mesmo ambiente, todos os meios de comunicação anteriores.

Em seu sentido mais lato, o termo “multimídia” se refere à apresentação ou recuperação de informações que se faz, com o auxílio do computador, de maneira multissensorial, integrada, intuitiva e interativa.

Quando se afirma que, com multimídia, a apresentação ou recuperação da informação se faz de maneira multissensorial, quer-se dizer que mais de um sentido humano está envolvido no processo, fato que pode exigir a utilização de meios de comunicação que, até há pouco tempo, raramente eram empregados de maneira coordenada, a saber [23]:

  • Som (voz humana, música, efeitos especiais)
  • Fotografia (imagem estática)
  • Vídeo (imagens em movimento)
  • Gráficos
  • Desenhos
  • Animação (desenho animado)
  • Textos (incluindo números, tabelas, etc.)

Quando se diz que a apresentação ou recuperação da informação se faz de maneira integrada, o que se quer dizer é que os meios de comunicação mencionados não são meramente justapostos, mas formam um todo orgânico sob a coordenação do computador.

Na verdade, a integração, hoje, é tal que, como se sabe, não é necessário que tenhamos, ao lado do computador, um aparelho de televisão ou um monitor de vídeo especial para vermos as imagens fotográficas e de vídeo: armazenadas em disco óptico a laser [24], elas são exibidas, em cores e em alta resolução, na tela do monitor do próprio computador. O áudio, por sua vez, também dispensa equipamento de amplificação mais sofisticado, podendo ser ouvido através do alto-falante do próprio computador ou de fone de ouvido conectado ao equipamento de leitura de disco óptico a laser, que passa a ser mais um periférico do computador [25].

Quando se diz que, com multimídia, a apresentação ou recuperação da informação se faz de maneira intuitiva, quer-se dizer pelo menos duas coisas:

  1. a) que a informação é apresentada ou recuperada na forma mais adequada ao seu conteúdo, usando-se, para isso, os meios de comunicação mais apropriados, nem mais, nem menos;
  2. b) que a forma de contato do usuário com o material a ser apresentado ou recuperado é tão natural quanto possível, de modo a garantir a facilidade do uso, a eficácia da apresentação ou recuperação da informação, a efetividade da sua compreensão e a eficiência de todo o processo. [26]

Quando se diz que a apresentação ou recuperação da informação em multimídia se faz de maneira interativa, quer-se dizer que multimídia não é apenas uma maneira de apresentar informações ao usuário, como se ele fosse seu mero recipiente, passivo: multimídia é uma forma de o usuário ativamente interagir com as informações: buscando-as, recuperando-as, interligando-as, construindo com elas novas informações e novos conhecimentos.

Falar em multimídia, é, portanto, equivalente a falar em multimídia interativa. Se usarmos o computador para criar uma fita de vídeo que incorpora sons, imagens de vídeo, animações, gráficos, textos, etc., mas que vai ser utilizada de maneira linear, não estaremos tendo multimídia, apesar de termos várias mídias envolvidas e de contarmos com a participação do computador. O potencial do computador estará sendo subutilizado nesse caso. Sua utilização mais nobre se encontra no fato de que permite que o usuário se transforme de simples observador passivo da apresentação da informação em participante ativo na sua busca e recuperação, de mero recebedor de sons, imagens e textos, em manipulador e processador de informações, que, entre outras coisas:

  • decide a seqüência em que a informação vai ser apresentada ou recuperada e o seu próprio esquema de navegação pela informação;
  • determina o ritmo e a velocidade da apresentação ou recuperação da informação;
  • controla repetições, avanços, interrupções, sempre podendo retomar onde parou da vez anterior;
  • estabelece associações e interligações entre informações diversas, mesmo que de natureza diferente (textos, imagens e sons, por exemplo), progredindo de um assunto ao outro, ou saltando de um meio ao outro, sem perder “o fio da meada”;
  • introduz marcações e anotações nos textos e imagens, bem como comentários ao material lido, visto e ouvido, podendo também realizar cálculos com informações numéricas eventualmente inseridas nos textos;
  • define os momentos em que, se desejar, pode avaliar seu conhecimento, determinando, assim, se já possui as informações de interesse.

É um conjunto de características como essas que normalmente identifica a interatividade de uma experiência. É desnecessário frisar que podemos ter multimídia com maior ou menor grau de interatividade. De qualquer forma, é a possibilidade de interação com informações representadas por mídias que não são tradicionalmente interativas (fotografia, vídeo, música, voz gravada) que vem atraindo as pessoas a multimídia. E é o fato de que esses meios de comunicação estão agora associados ao computador que os torna interativos. E tudo isso torna multimídia algo extremamente interessante para a educação.

Dos meios de comunicação mencionados (som, fotografia, vídeo, animação, gráficos, textos), os três primeiros (som, fotografia e vídeo) já vêm sendo integrados há muito tempo, mesmo antes de se imaginar a possibilidade de sua digitalização. A integração de sons (principalmente a voz humana e fundos musicais) e fotografias (slides) permitiu a criação dos primeiros audiovisuais. A televisão, naturalmente, integrou som e imagens em pleno movimento de forma extremamente dinâmica e eficaz. O aparecimento e a popularização do vídeo-cassete completou o ciclo, permitindo que apresentações, sistemas instrucionais, publicidade e propaganda, etc., fizessem uso integrado desses três meios de comunicação (som, fotografia e vídeo), muito antes de se pensar em sua digitalização.

Faltava, porém, o elemento de interatividade. A integração desses três meios de comunicação com os recursos disponíveis no computador (animação, gráficos, textos) reflete, porém, evoluções mais recentes, que estão ainda em curso, devendo produzir resultados otimizados apenas nos próximos anos.

A digitalização dos componentes áudio, fotografia e vídeo já é problema resolvido, do ponto de vista técnico. O que precisa ser equacionado é o problema da compressão dos arquivos de sons e imagens digitalizados (principalmente os arquivos de imagens digitalizadas de vídeo em pleno movimento), que, em forma não comprimida, ocupam quantidade de espaço incompatível com a capacidade dos meios de armazenamento hoje disponíveis (mesmo para os DVDs, Digital Video Discs). Animações, gráficos e textos gerados por computador já são, como é sabido, digitalizados e não oferecem maiores problemas de armazenamento.

O que é preciso enfatizar é que, com a digitalização dos componentes áudio, fotografia e vídeo, o computador hoje manipula sons e imagens com a mesma facilidade com que manipula números, gráficos e textos, tornando-se, na verdade, uma máquina que processa — e, quando em rede, transporta — números, textos, sons e imagens.

Correndo-se o risco de tentar esclarecer o que para muitos é óbvio, explica-se, em seguida, o que é a digitalização de sons e imagens (fotográficas ou de vídeo).

Atualmente sons podem ser armazenados de forma mecânica, magnética ou óptica. A forma de armazenamento mais tradicional tem sido a mecânica, através do uso de discos convencionais (dos quais os long-plays ainda são bastante usados). Mais recentemente popularizou-se o uso de fitas magnéticas para armazenar sons (principalmente fitas cassetes). Apenas por volta de 1984 começaram a ser usados meios de armazenamento ópticos (os discos compactos a laser, os hoje onipresentes CDs).

No caso de disco convencional e de fita magnética, os sulcos do disco ou as marcas magnéticas da fita representam, diretamente, os sons que ouvimos. Equipamentos destinados a reproduzir sons (toca-discos e toca-fitas) “lêem” esses sulcos ou essas marcas e os traduzem nas ondas sonoras perceptíveis pelos nossos ouvidos.

No caso de um CD, as marcas gravadas na superfície do disco (minúsculos buracos feitos por um raio laser) não representam, diretamente, os sons que ouvimos: representam apenas números — os dígitos numéricos binários 0 e 1. São esses números que, por sua vez, representam, em suas muitas combinações, os vários sons. O equipamento destinado a reproduzir os sons (o toca-discos) precisa ter, neste caso, um microprocessador que lê e decodifica as informações numéricas gravadas no disco, transformando-as em ondas sonoras perceptíveis pelos nossos ouvidos. Esse equipamento é, na verdade, um computador disfarçado.

Imagens têm sido, tradicionalmente, armazenadas em filmes. Todavia, mais recentemente, seu armazenamento tem sido feito também em fitas magnéticas (fitas cassetes de vídeo) e em discos ópticos a laser (vídeo-discos ou discos compactos, como CD-ROMs e, mais recentemente, os DVDs, já mencionados).

O armazenamento de imagens em filme é, de certa forma, explícito: se olharmos um filme revelado, mesmo que não projetado, vê-se as imagens que nele estão armazenadas, porque elas estão gravadas de forma analógica. Tanto isso é assim que o conteúdo de um filme cinematográfico é diretamente projetado na tela, através de um foco de luz. O projetor de filme é uma máquina relativamente simples: ele não precisa traduzir ou decodificar sinais complexos para transpor para a tela as imagens contidas no filme: ele simplesmente as projeta.

No caso de imagens armazenadas em fita magnética, não há semelhança, do ponto de vista visual, entre o que está na fita e o que aparece na tela de um aparelho de televisão ou de um monitor de vídeo. Se olharmos a fita, nada veremos. O que está armazenado nela não passa de marcas magnéticas que, de uma forma não explícita, representam as imagens originais. Só um equipamento especial consegue ler e traduzir essas marcas, transformando-as em imagens na tela.

No caso de imagens armazenadas em discos compactos óptico a laser (CD-ROMs, DVDs), o armazenamento se dá através de marcas (na verdade, pequenos buracos) queimadas na superfície do disco, que representam apenas números — os dígitos numéricos binários 0 e 1. São esses números que, por sua vez, representam, em suas várias combinações, as imagens originais. O equipamento destinado a reproduzir essas imagens precisa ter, neste caso, um microprocessador que lê e decodifica as informações numéricas gravadas no disco, transformando-as em imagens que serão exibidas na tela de um aparelho de televisão, de um monitor de vídeo, ou de um computador. Esse equipamento é, na verdade, um computador, mais ou menos disfarçado.

As modalidades de armazenamento em que sons ou imagens são representados por números — na verdade, pelos dígitos binários 0 e 1 — são chamadas de digitais. Por contraste, todas as outras modalidades de armazenamento são chamadas de analógicas (embora, stricto sensu, apenas no caso de filmes o termo “analógico” seja apropriado).

Quando sons e imagens (ou qualquer outro tipo de informação) são armazenados digitalmente, portanto, o que é gravado no disco, magnético ou óptico, ou na fita magnética, são sinais discretos que representam apenas os dígitos 0 e 1 do sistema numérico binário. Isso significa que sons e imagens são armazenados na mesma forma que números, textos, gráficos e programas de computador [27], e podem ser manipulados com igual facilidade. É apenas quando de sua leitura e decodificação, por um computador ou por um microprocessador embutido em um aparelho de reprodução de sons ou de imagens, que esses dígitos binários acabam produzindo sons ou imagens, em vez de números decimais, textos ou gráficos na tela do computador.

A digitalização do som é hoje a regra, no contexto da produção musical. A digitalização da fotografia estática ou parada também se torna comum hoje, mesmo entre amadores, depois de ter se tornado praxe em contextos profissionais. A digitalização de imagens de vídeo também está totalmente equacionada hoje, do ponto de vista técnico, restando apenas o problema da compressão  dos arquivos, que ainda consomem excessivo espaço de armazenamento.

Uma vez digitalizados o som, a fotografia e o vídeo, eles podem ser gravados em um mesmo meio de armazenamento (digamos, um CD-ROM) e reproduzidos (ouvidos e vistos) através um computador com tela colorida de alta resolução e com drive destinado a esse tipo de disco. Alternativamente, podem ser reproduzidos através de um toca-discos apropriado, munido de microprocessador, conectado a um amplificador e a um aparelho de televisão ou monitor de vídeo.

Mas o mais importante fruto da digitalização do som e da imagem, estática ou em movimento, não está no fato de que som e imagem podem ser armazenados em um mesmo meio de armazenamento que números, dados textuais, gráficos e programas de computador, mas sim no fato de que o computador pode manipulá-los com a mesma facilidade com que processa números e textos. É esse fato que permite a interatividade, sem a qual não haveria multimídia.

Se fizermos uma breve recapitulação histórica, veremos que, na verdade, o computador foi criado, originalmente, para manipular apenas números: para fazer cálculos complexos, como os exigidos para determinar trajetórias balísticas. Subseqüentemente, passou a manipular informações textuais, depois de convertê-las, internamente, em dígitos numéricos binários. Com a digitalização do som e da imagem, estática ou em movimento, o computador passou a manipular, com a mesma facilidade, informações numéricas, textuais, sonoras e visuais. Essa a grande (r)evolução: é uma evolução, mas uma daquelas evoluções em que uma pequena mudança quantitativa acaba produzindo uma mudança qualitativa, equivalente a uma revolução.

É oportuno mencionar que multimídia, como caracterizada aqui, só teve condições de aparecer no momento em que as tecnologias de edição e impressão de textos, de gravação e transmissão de sons e vozes, de gravação e transmissão de imagens, de telecomunicações e de processamento de dados alcançaram a fase da eletrônica digital. Essas tecnologias atravessaram uma fase mecânica, e, posteriormente, uma fase elétrica, nas quais pouca coisa tinham em comum. Foi só ao alcançar a fase digital que se aproximaram e estão se integrando. E o computador, máquina digital por excelência, está no centro de todas elas.

É a esse conjunto de tecnologias, envolvendo mídias que apelam a mais de um sentido de uma só vez, operando de maneira integrada, intuitiva e interativa, sob a coordenação do computador, que o termo “multimídia” é, hoje, normalmente, aplicado.

NOTAS

[1] Quanto a esse assunto que, infelizmente, não nos ocupará mais neste trabalho, por extrapolar de muito o seu escopo, vide Adam Schaff, A Sociedade Informática, tradução do Alemão por Carlos Eduardo Jordão Machado e Luiz Arturo Obojes (Editora UNESP e Editora Brasiliense, São Paulo, SP; publicado originalmente sob os auspícios do Clube de Roma), p.69: “Vale a pena, pois, assinalar as implicações sociais da segunda revolução industrial [a atual, por outros chamada de pós-industrial] a este respeito: a informática abre novas perspectivas para a democracia direta, isto é, para o autogoverno dos cidadãos no verdadeiro sentido do termo, porque torna possível estender a instituição do referendo popular em uma escala sem precedentes, dado que antes tais referendos eram praticamente impossíveis  do ponto de vista técnico. Isto pode revolucionar a vida política da sociedade, no sentido de uma maior democratização”. (O título em Português desse livro é uma tradução infeliz. O título original em Alemão é Wohin führt der Weg, que, traduzido literalmente, quer dizer “Para onde nos conduz o caminho” — que, apesar de canhestro, parece um título melhor do que o adotado pelo tradutor.)

[2] George Orwell, 1984 (Harcourt, Brace and World, New York, NY, 1949), tradução brasileira (com o mesmo título) de W. Velhos (Companhia Editora Nacional, São Paulo, SP, 10ª edição,1977). O livro foi escrito em 1948, o seu título sendo a inversão dos últimos dois dígitos do ano em que foi redigido. Outro livro famoso neste contexto, publicado dezessete anos antes, é Brave New World, de Aldous Huxley (Harper & Row, New York, NY, 1932), tradução brasileira de Vidal de Oliveira e Lino Vallandro, sob o título Admirável Mundo Novo (Editora Globo, Porto Alegre, RS, 10ª edição, 1982).

[3] Um dos livros mais abrangentes sobre esses problemas, tanto em nível individual como em nível social, é Computerization and Controversy: Value Conflicts and Social Choices, editado por Charles Dunlop e Rob Kling (Academic Press, Inc., New York, NY, 1991).

[4] O problema do emprego/desemprego será discutido rapidamente adiante. Não há dúvida, porém, de que a tendência é no sentido de que, daqui para a frnte, falando em termos percentuais, cada vez menos pessoas trabalhem e cada pessoa trabalhe cada vez menos. O século XXI deverá ser o século do tempo livre. Essa tese foi brilhantemente defendida no programa Roda Viva da TV Cultura do dia 4 de Janeiro de 1999 pelo sociólogo italiano Domenico de Masi (demasid@tin.it), cujo desempenho causou tamanho impacto que o programa teve que ser reprisado na semana seguinte (11 de Janeiro de 1999) e um número record de pessoas comprou a fita.

[5] Gilberto Dimmenstein, “Excesso de Informação Provoca Ignorância”, Folha de S. Paulo, 2 de novembro de 1997: “A maioria de nossas escolas forma exatamente o fracassado do futuro por investir mais na memorização para passar no vestibular do que na criatividade. Incrível que, no Brasil, são raras as pessoas em pânico com essas fábricas de obsoletos” (ênfase acrescentada).

[6] Seymor Papert, em The Connected Family, op.cit., p.159, se pergunta (mas responde negativamente) se aprender não seria mais semelhante a processos naturais, como amar e se alimentar, do que a algo técnico que pudesse ser afetado pela tecnologia. Esta mudou profundamente como (por exemplo) tratamos de nossa saúde, mas (até agora, pelo menos) não alterou em quase nada como amamos e mesmo como nos alimentamos (embora possa ter afetado o objeto de nosso amor e o conteúdo do que ingerimos).

[7] Vide Adam Schaff, op.cit., p.22. Schaff caracteriza assim a diferença entre a primeira e a segunda revolução industrial: “A primeira . . . teve o grande mérito de substituir na produção a força física do homem pela energia das máquinas (primeiro pela utilização do vapor e mais adiante sobretudo pela utilização da eletricidade). A segunda revolução, que estamos assistindo agora, consiste em que as capacidades intelectuais do homem são ampliadas e inclusive substituídas por autômatos, que eliminam com êxito crescente o trabalho humano na produção e nos serviços”. Comparar, a esse respeito, Jeremy Rifkin, The End of Work: The Decline of the Global Labor Force and the Dawn of the Post-Market Era (G. P. Putnam’s Sons, New York, NY, 1995, 1996). Também a esse respeito ver o interessante artigo de Stephen Kanitz, “A Vida sem Trabalho”, Veja, edição de 13 de Janeiro de 1999, em que defende a tese de que “com os robôs suprindo nossas necessidades, no futuro poderemos nos devotar a atividades mais interessantes do que o trabalho”. Em tom meio de blague Kanitz conclui que o brasileiro, que tira três meses de férias por ano (do início de Dezembro até depois do Carnaval), está especialmente bem adaptado para essa sociedade do futuro – melhor do que os americanos, viciados no trabalho…

[8] Harold G. Shane, “The Silicon Age and Education”, in Phi Delta Kappan, January 1982, pp.303-308.

[9] Acrescenta-se o qualificativo “lingüística” porque é possível comunicar-se remotamente através de sinais, como, por exemplo, os de fumaça, usados em contextos de comunicação relativamente primitivos.

[10] Walter Ong, em Oralidade e Cultura Escrita: A Tecnologia da Palavra (Campinas, Papirus, 1982, 1998; tradução do original Inglês por Enid Abreu Dobránszky), p.69, aponta para um importante fato, a saber, que numa cultura em que a escrita foi interiorizada a linguagem escrita afeta e modifica a  fala: “Indivíduos que interiorizaram  a escrita não apenas escrevem, mas também falam segundo os padrões da cultura escrita, isto é, organizam, em diferentes graus, até mesmo sua expressão oral em padrões de pensamento e padrões verbais que não conheceriam, a menos que soubessem escrever”.

[11] Plato, Phaedrus (The Library of Liberal Arts, Bobbs-Merrill Company, Inc., Chicago, tradução do grego por R. Hackforth e tradução do Inglês por Eduardo Chaves). Acerca dessa passagem ver “From Internet to Gutenberg”, magnífica conferência apresentada por Umberto Eco na Academia Italiana de Estudos Avançados na América, no dia 12 de Novembro de 1996, disponível na Internet no seguinte endereço: http://www.italynet.com/columbia/internet.htm.

[12] Idem, Ibidem.

[13] Walter Ong, op.cit., pp. 94-95. A frase que antecede o asterisco no texto é, no original, “Plato’s Socrates also holds it against writing that the written word cannot defend itself as the natural spoken word can”.  Infelizmente a tradução oficial para o Português saiu-se com isto: “O Sócrates de Platão também defende contra a escrita que a palavra escrita não pode se defender como a palavra natural falada”. Minha atenção foi chamada para a passagem citada (na verdade para a obra toda) pelo Rev. Wilson Azevedo, nas discussões no grupo de discussão eletrônico “Edutec”, que tem por objeto discutir na Internet a questão da tecnologia na educação. Para participar do Edutec, envie uma mensagem eletrônica para listmgr@mindware.com.br, com a linha de assunto vazia e com o seguinte conteúdo: join edutec. Para enviar mensagens para o Edutec, dirija-as a edutec@mindware.com.br. Não é preciso ser membro do Edutec para enviar mensagens para o grupo, mas é preciso ser membro para receber as mensagens enviadas para o grupo.

[14] “Um ponto fraco da opinião de Platão é que, para tornar mais convincentes essas objeções, ele as pôs por escrito”. Walter Ong, loc. cit.

[15] Walter Ong, op.cit., pp. 97-98. O autor mencionado na citação é Eric A. Havelock, e o livro é Preface to Plato (Belknap Press of Harvard University Press, Cambridge, MA, 1963).

[16] Mortimer J. Adler e Charles van Doren, How to Read a Book (Simon and Schuster, New York, NY, 1940), p.13. O Aurélio (pelo menos na edição consultada) não registra “ensinante” — nem “aprendente”. Deveria fazê-lo: são termos que preenchem de forma significativa uma lacuna na língua portuguesa. Vide adiante a nota apensada ao título da seção III.2.A.

[17] Antes da invenção da impressão e da disseminação de uma cultura letrada, saber ler e escrever era uma profissão, que, como tal, apenas alguns exerciam na sociedade. Assim como nem todo mundo precisa saber como construir casas ou cultivar campos, porque há os que fazem isso para nós, antes da impressão nem todos precisavam saber ler e escrever: havia aqueles que faziam isso pelos outros, exercendo uma profissão especializada. O filme Central do Brasil mostra claramente como a oralidade é ainda a única forma de comunicação para um número grande de brasileiros.

[18] Walter Ong, op.cit., p. 95. O autor citado é Martin Lowry e o livro mencionado é The World of Aldus Manutius: Business and Scholarship in Renaissance Venice (Cornel University Press, Ithaca, NY, 1979). O Inglês tem vários termos (“printing”, “printer”, “press”, “print” — todos substantivos), com sentidos parecidos mas diferentes, e que são, freqüentemente, difíceis de traduzir. O que Ong chama de “impressão” é tradução de “printing”, que se refere fundamentalmente ao processo de imprimir algo. “Printer” é o gráfico (dono da gráfica) ou a gráfica em si, bem como, hoje, a impressora (do computador). “Imprensa” (o meio de comunicação) é a melhor tradução de “press”, embora o termo também se refira, às vezes, ao processo de impressão. A melhor tradução de “print” é mais difícil. O termo às vezes se refere àquilo que é impresso: uma gravura impressa é um “print”, como também o são a planta de um edifício ou o projeto gráfico de um equipamento (geralmente chamados de “blueprints”). Mas também se fala em “finger print” (impressão digital), “foot print” (pegada, marca deixada pelos pés), etc. Escrever em letra de forma também é, em Inglês, “print” (aqui, naturalmente, verbo), termo que também se aplica, como substantivo, à letra de forma, ou às letras impressas em geral (como em “fine print”, letras miúdas).

[19] Ver a esse respeito o ainda muito relevante Understanding Media: The Extensions of Man, de Marshall McLuhan (McGraw-Hill Book Co., New York, NY, 1964): “O livro foi a primeira máquina de ensinar e também a primeira mercadoria produzida em massa. . . . A sociedade aberta é aberta em virtude de um processamento educacional tipográfico uniforme, que permite expansão indefinida de qualquer grupo por adição. O livro impresso baseado na uniformidade e repetibilidade tipográfica na ordem visual foi a primeira máquina de ensinar, e a tipografia foi a primeira mecanização de uma arte manual” (p.174).

[20] Cp. McLuhan, op.cit., especialmente o cap. 18: “A palavra impressa: arquiteta do nacionalismo”, pp.170-178. Eis algumas passagens retiradas deste e de outros capítulos do mesmo livro. “A explosão tipográfica estendeu as mentes e as vozes dos homens de modo a redefinir o diálogo humano, agora em escala global e que unifica as eras. . . . A tipografia fez com que se encerasse o paroquialismo e o tribalismo, psíquica e socialmente, tanto no espaço como no tempo” (p.170). Ao mesmo tempo, porém, em que criou uma sociedade global, tanto em termos espaciais como temporais, fazendo com que se encerrassem o paroquialismo e o tribalismo, o livro impresso fortaleceu os grupos lingüísticos e, com isso, favoreceu o surgimento do nacionalismo (criando, assim, a semente de um novo paroquialismo): “A unificação política das populações em grupos vernaculares e lingüísticos era impensável antes de a impressão tornar o vernáculo um meio de comunicação de massa” (p.177). “O nacionalismo era desconhecido no mundo ocidental antes da Renascença, quando Gutenberg tornou possível ver a língua materna em roupagem uniforme” (p.215). Neste contexto também é importante o outro livro de McLuhan, The Gutenberg Galaxy: The Making of Typographic Man (University of Toronto Press, Toronto, ON, 1962).

[21] Understanding Media, op.cit.

[22] Walter Ong, op.cit., p.98. A frase  que aqui se traduz como “dificilmente pode ser considerado algo desumanizante” corresponde ao Inglês “is hardly dehumanizing” (p.83 da reimpressão de 1996, paperback) e está erroneamente traduzida como “é altamente desumanizante” na tradução brasileira, p.98. (Este é o segundo erro importante constatado na tradução brasileira. O primeiro já foi assinalado atrás).

[23] É forçoso admitir que apenas dois dos cinco sentidos estão envolvidos aqui: a audição e a visão. Multimídia parece se encaixar, portanto, dentro dos chamados “recursos audiovisuais” (pelo menos até que o computador consiga sintetizar aromas e afetar virtualmente o paladar…). O fato de que o usuário de multimídia pode interagir com o sistema, tocando na tela ou através de um mouse, acrescenta, porém, uma dimensão táctil a multimídia que inexiste no audiovisual tradicional.

[24] Um disco óptico é um disco gravado e reproduzido através da luz. No caso de discos a laser, a gravação e a reprodução se fazem através de um minúsculo canhão de raios laser. O termo “laser” é, naturalmente, acrônimo de “Light Amplification by Stimulated Emission of Radiation”. O disco óptico a laser mais popular hoje é o CD — tanto o de áudio como o de multimídia, chamado de CD-ROM (termo que se pronuncia, em Português, “cederrôm”, não “cederrum”, como o fazem os que, pretendendo pronunciar o termo em Inglês, acabam confundindo “ROM” com “room”. Em Inglês a pronúncia é “cidirrôm”).

[25] Para os não familiarizados com o jargão computacional, um periférico é um equipamento, acoplado ao computador, que serve ou para introduzir dados no computador (periférico de entrada), como, por exemplo, um teclado ou uma unidade de discos, ou então para receber dados por ele processados (periférico de saída), como, por exemplo, um monitor de vídeo, uma impressora, ou, novamente, uma unidade de discos. Como se pode constatar, alguns periféricos podem servir tanto de periférico de entrada como de periférico de saída. É este o caso das unidades de discos magnéticos. As unidades de discos ópticos a laser (CD-ROM), quando acopladas ao computador, servem (hoje) apenas para leitura de discos, não para sua gravação, sendo, portanto, periféricos apenas de entrada de dados.

[26] Para usar um programa de computador sofisticado, normalmente se exige treinamento ou um bom estudo de seu manual. Para usar um programa com multimídia, geralmente se dispensa tudo isso, porque se espera que o seu uso seja intuitivamente evidente.

[27] Textos são processados e armazenados pelo computador também na forma de números, cada caractere alfabético ou sinal especial sendo representado por um número de até oito dígitos binários, ou de até oito bits ou um byte. É por isso que geralmente se diz que um byte é o espaço da memória do computador necessário para armazenar um caractere alfabético ou sinal especial. Gráficos de computador também são armazenados na forma de números, cada ponto do gráfico sendo representado por um ou mais bits. Em princípio, um bit seria suficiente para representar um ponto do gráfico. Mas como os gráficos são freqüentemente coloridos, mais bits são necessários para armazenar a informação relativa à cor de cada ponto.

Eduardo O C Chaves
Campinas, Dez/98

Transcrito aqui em Salto, 3 de Fevereiro de 2016

O Futuro da Escola na Sociedade da Informação – I

[ O texto abaixo, como diz o subtítulo, é uma “Introdução à Guisa de Prefácio” ao meu livro Tecnologia e Educação: O Futuro da Escola na Sociedade da Informação. Este livro foi escrito há quase exatamente 17 anos, nos meses de Novembro e Dezembro de 1998, a pedido do PROINFO, Programa de Informática na Educação do Ministério da Educação, que estaria publicando, em prazo curtíssimo, uma coleção de 20 livros sobre o tema “Informática para Mudança na Educação”.

Tanto quanto eu saiba, os textos nunca foram publicados na forma de livros impressos. Em um encontro do PROINFO em Brasília, em Maio de 1999, eles foram distribuídos (centenas de cópias) em formato “xerox”. Posteriormente, foram disponibilizados pelo MEC na Internet no site http://www.proinfo.gov.br/biblioteca/publicacoes/default.htm. Mas hoje (3 de Fevereiro de 2016) não se encontram mais nesse endereço.

[Nota de 4 de Fevereiro de 2016: Encontrei um link, no site MiniWeb Educação (http://miniweb.com.br/), que leva para uma cópia do livro inteiro em formato .pdf: http://www.miniweb.com.br/atualidade/Tecnologia/Artigos/colecao_proinfo/livro20_futuro_escola.pdf. EC.]

No caso do meu livro, em particular, não autorizei sua distribuição pelo MEC porque o MEC não cumpriu o acordo inicial feito (por escrito) acerca de direitos autorais quando me solicitou que escrevesse o livro. Mas eu o disponibilizei em um dos meus sites, que não mais está no ar, hoje. Vou, aqui neste blog, transcrever partes do livro que ainda me parecem atualizadas. O título geral da série de posts que vou publicar aqui é “O Futuro da Escola na Sociedade da Informação”. Ele será seguido de um algarismo romano que indicará a ordem em que o material estava no livro.

Parece que a intenção era publicar 26 livros – mas, aparentemente, apenas vinte foram concluídos. E, no site do PROINFO, apenas dezesseis foram disponibilizados.

Só por curiosidade, e em benefício dos historiadores, aqui está o título dos dezesseis livros que foram distribuídos, em .pdf, no site do PROINFO:

Livro 1 – Fernando José de Almeida e Maria Elizabeth Bianconcini de Almeida, Aprender Construindo: A Informática se Transformando com os Professores

Livro 2 – José Armando Valente, Fernanda Maria Pereira Freire, Heloísa Vieira da Rocha, José Vilhete d’Abreu, Maria Cecília Calani Baranauskas, Maria Cecília Martins e Maria Elisabete Brisola Brito Prado, O Computador na Sociedade do Conhecimento

Livro 3 – Léa da Cruz Fagundes, Luciane Sayuri Sato e Débora Laurino Maçada, Aprendizes do Futuro: As Inovações Começaram!

Livro 4 – Fernando José de Almeida e Fernando Moraes Fonseca Júnior, Aprendendo com Projetos

Livro 5 – Sônia Schechtman Sette, Márcia Ângela Aguiar e José Sérgio Antunes Sette,Formação de Professores em Informática na Educação: Um Caminho para Mudanças

Livro 6 – Não disponibilizado pelo MEC

Livro 7 – Eduardo Martins Morgado, Marcos Antonio Cavenaghi e Nicolau Reinhard,Preparação de Ambientes Informatizados em Escolas Públicas

Livro 8 – Maria Elizabeth Bianconcini de Almeida, O Aprender e a Informática: A Arte do Possível na Formação do Professor

Livro 9 – Maria Elizabeth Bianconcini de Almeida, Informática e Formação de Professores

Livro 10 – Não disponibilizado pelo MEC

Livro 11 – Lynne Schrum, Tecnologia para Educadores: Desenvolvimento, Estratégias e Oportunidades

Livro 12 – Fernando José de Almeida e Fernando Moraes Fonseca Júnior, Criando Ambientes Inovadores: Educação e Informática

Livro 13 – Não disponibilizado pelo MEC

Livro 14 – Maria Elisabete Brisola Brito Prado, O Uso do Computador na Formação do Professor: Um Enfoque Reflexivo da Prática Pedagógica

Livro 15 – Odete Sidericoudes, José Armando Valente, Rodolfo Miguel Baccarelli, Tadao Takahashi, Fernanda Maria Freire e Maria Elisabete Brisola Brito Prado, Aplicativos e Utilitários no Contexto Educacional – I

Livro 16 – Odete Sidericoudes, José Armando Valente, Rodolfo Miguel Baccarelli, Tadao Takahashi, Fernanda Maria Freire e Maria Elisabete Brisola Brito Prado, Aplicativos e Utilitários no Contexto Educacional – II

Livro 17 – Odete Sidericoudes, José Armando Valente, Rodolfo Miguel Baccarelli, Tadao Takahashi, Fernanda Maria Freire e Maria Elisabete Brisola Brito Prado, Aplicativos e Utilitários no Contexto Educacional – III

Livro 18 – Odete Sidericoudes, José Armando Valente, Rodolfo Miguel Baccarelli, Tadao Takahashi, Fernanda Maria Freire e Maria Elisabete Brisola Brito Prado, Aplicativos e Utilitários no Contexto Educacional – IV

Livro 19 – Bob Albrecht, Clint Mason Luscombe, Connie Widmer, George Firedrake, Linda Sheffield e Margareth Niess,  Atividades Computacionais na Prática Educativa de Matemática e Ciências

Livro 20 – Eduardo O C Chaves, Tecnologia e Educação: O Futuro da Escola na Sociedade da Informação

A seguir, a “Introdução à Guisa de Prefácio” do meu livro.]

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Introdução à Guisa de Prefácio

O título deste trabalho aponta para um dos maiores desafios da educação e da escola neste momento de transição para o terceiro milênio da era cristã: o desafio da tecnologia, em especial das tecnologias de informática, centradas no computador. O principal produto dessas tecnologias é a informação. Por causa desse complexo de tecnologias nossa era já foi batizada de “era da informação” e nossa sociedade de “sociedade da informação”. Nunca se teve tanta informação e nunca foi tão fácil localizá-la e aceder [1] a ela.

Mas a informática hoje abrange as telecomunicações e, especialmente depois da popularização da Internet, o computador se tornou mais do que um processador de informações: tornou-se um transportador de informações e, mais importante, um meio de comunicação entre as pessoas — segundo tudo indica, o meio de comunicação, por excelência.

Não resta dúvida de que essa tecnologia afetará profundamente a educação — como a tecnologia da fala, dezenas ou mesmo centenas de milênios atrás, a tecnologia da escrita, alguns poucos milênios atrás, e a tecnologia da impressão, cinco séculos atrás, também o fizeram, antes dela.

Quanto à escola, como hoje a conhecemos, a grande questão é se ela sobreviverá ao desafio que lhe coloca essa tecnologia. A escola de hoje é fruto da era industrial. Foi criada e estruturada para preparar as pessoas para viver e trabalhar na sociedade que agora está sendo substituída pela sociedade da informação. Nesta o fluxo de informações, o relacionamento entre as pessoas, o comércio, os serviços, o lazer e o turismo têm muito mais importância, como ocupações humanas, do que a produção de bens materiais, de que se encarregarão, em grande parte, os sistemas automatizados e os robôs. Uma sociedade deste tipo exige indivíduos, profissionais e cidadãos de um tipo muito diferente daqueles que eram necessários na era industrial. É de esperar que a escola, criada e organizada para servir a era anterior, tenha que “se reinventar”, se desejar sobreviver, como instituição educacional, no próximo milênio [2].

O uso que o professor vai fazer do computador em sala de aula, hoje, vai depender, em parte, de como ele entende esse processo de transformação da sociedade que vem acontecendo, em grande medida em decorrência do desenvolvimento tecnológico, e de como ele se sente em relação a isso: se ele vê todo esse processo como algo benéfico, que pode ajudá-lo, na sua vida e no seu trabalho, ou se ele se sente ameaçado e acuado por essas mudanças.

Por isso há, no início deste texto, uma seção relativamente extensa sobre a informatização da sociedade e o papel da tecnologia no desenvolvimento humano — enfocando principalmente a tecnologia mais afeta à educação. Se o professor não entender o que está se passando ao seu redor, dificilmente conseguirá integrar o computador com naturalidade e sem receios infundados à sua prática pedagógica – dentro e fora da sala de aula.

É importante que se registre aqui no início que algo curioso ocorre quando a informática começa a entrar em uma área específica (não só na educação): ela atua como agente catalisador que provoca e desencadeia discussões muito sérias acerca dos fundamentos e conceitos básicos, bem como das práticas firmemente estabelecidas, nessa área. Não raro a introdução do computador em uma área, ou mesmo apenas a perspectiva de sua introdução, tem levado os que nela militam a concluir que seria oportuno revê-la e, quem sabe, reestruturá-la por completo.

O termo “reengenharia de processos” foi cunhado por Michael Hammer porque, na área industrial, se percebeu que a mera introdução do computador para tornar mais eficientes, e, em muitos casos, totalmente automatizar, os processos usados, sem que esses processos fossem antes radicalmente revistos, do início ao fim, poderia levar ao que Hammer caracteriza como “asfaltar uma trilha de bois” [3], ou ao que Seymour Papert descreveu como “colocar motor de avião a jato em charrete — para ver se ajuda os cavalos a andar mais depressa” [4].

Na área de escritórios, há muito que se percebeu que não se trata de meramente “automatizar” rotinas já estabelecidas, mas, sim, com a ajuda da nova tecnologia (computadores, redes, etc.), de reinventar a forma de fazer as coisas, de criar novos fluxos de trabalho, freqüentemente baseados em equipes mediadas pela tecnologia, de permitir, sempre que possível, o teletrabalho, o gerenciamento à distância, etc. [5]

A área da educação não é exceção. Toda vez que se começa a discutir o uso da informática em sala de aula, acaba-se por discutir as questões mais fundamentais da educação, inclusive o próprio conceito de educação: Qual é a função da educação? Qual é o papel dos currículos, dos conteúdos, do ensino, enfim, da escola e do professor no processo educacional? O que dizer da definição de Émile Durkheim, segundo o qual a educação é o processo de transmissão de crenças, valores, atitudes e hábitos, conduzido pelas gerações mais velhas, com o objetivo de tornar as gerações mais novas aptas para o convívio social? [6] O que dizer, por outro lado, da tese de Jean-Jacques Rousseau de que educar é não interferir, é deixar a criança desabrochar, espontaneamente, seguindo a sua natureza, e assim concretizando as suas potencialidades? [7] E o que dizer, por fim, da tese de Sócrates de que a função do professor, semelhantemente à da parteira (que facilita, mas não dá à luz a criança), deve ser facilitar a aprendizagem, mas não ensinar? [8] É realista esperar que a criança construa todo o seu conhecimento por si só, aprenda tudo o que tem que aprender por descoberta, sem que haja ensino ou instrução? É lícito esperar, como nos lembra Karl Popper, que, se toda criança tiver que começar onde Adão começou, ela vá chegar muito além de onde Adão chegou? [9]

Por isso, antes de investigar o potencial do computador em sala de aula este texto procura discutir essas — e algumas outras — questões. Ele é voltado principalmente para o professor. Ele foi elaborado para ser usado como material de apoio que ajude o professor ainda não familiarizado com o computador a entender como esse equipamento pode ser usado como tecnologia educacional (dentro ou fora da escola) e a vislumbrar como ele, professor, pode vir a usar o computador em suas atividades (agora, especialmente em sala de aula).

O Ministério da Educação e do Desporto, através de sua Secretaria de Educação à Distância, tem estado, especialmente através do PROINFO — Programa de Informática na Educação, ativamente envolvido na transformação da escola. As Secretarias da Educação dos Estados e mesmo dos maiores municípios do país também possuem seus programas suplementares nessa área. Pedra angular desses programas é a capacitação dos professores para entender, e lidar com, as novas tecnologias.

Para que possa usar, crítica e conscientemente, as tecnologias de informática em seu trabalho, o professor precisa, portanto, mais do que simplesmente treinamento técnico: precisa enfrentar seriamente um conjunto de questões, a maioria de natureza teórica e conceitual, que tradicionalmente ficam no âmbito da filosofia da educação. Discute-se muito, hoje em dia, acerca do uso do computador na educação — mas muitas (talvez a maior parte) das questões envolvidas nessa discussão dizem respeito, não à informática, em si, mas, sim, à educação, porque, antes de começar a usar o computador em sala de aula, precisamos ter clareza sobre os vários modelos de inserção do computador nos processos de ensino e aprendizagem.

Por isto, este texto não pode deixar de explorar essas questões: elas estão na base de tudo o que se propõe, de cunho mais prático, como forma de usar o computador na educação, em geral, e na escola, em particular.

Entretanto, da mesma forma que não adianta, no momento, apenas treinar o professor para que aprenda a usar softwares aplicativos genéricos (processadores de texto, planilhas eletrônicas, gerenciadores de apresentação, gerenciadores de bancos de dados, etc.), sem discutir com ele, previamente, e com toda a seriedade, essas questões básicas de filosofia da educação, também não adianta apenas apresentar ao professor, em todo detalhe, as teses ditas construtivistas de Jean Piaget, Lev Vygotsky, Aleksandr Luria, e, ultimamente, até Paulo Freire, sem deixar bastante claro qual a relevância que essas questões teóricas têm para com as questões práticas relacionadas ao que fazer com o computador em sala de aula e sem orientar o professor sobre o que fazer na prática, em sala de aula, com o computador e os conteúdos curriculares que lhe cabe cobrir e cumprir. Hoje se discute muito esses autores. Mas como Papert bem assinala, é preciso um “microscópio mental” para detectar sua influência real em sala de aula. [10]

Obviamente, o que o professor eventualmente fará com o computador em sua sala de aula vai depender também da matéria pela qual é responsável, da faixa etária de seus alunos (ou das séries em que ele ministra a sua matéria),  e de um conjunto de outros fatores. Por isso, é muito difícil elaborar um texto que seja igualmente útil para professores de todas as matérias, em todas as séries.

O que se propõe aqui é a elaboração de um material que sirva de orientação basicamente para o professor das séries finais do Ensino Fundamental (5ª a 8ª), embora muitas das idéias sejam aplicáveis também para o professor do Ensino Médio e até mesmo para o professor das séries iniciais do Ensino Fundamental (1ª a 4ª) e da Educação Infantil.

Uma outra limitação é que o que se vai dizer procura levar em conta a relativa indisponibilidade, para o professor brasileiro, de software dito educacional.

Por isso, o texto vai discutir a utilização em sala de aula de programas (em Português) que geralmente acompanham todos os computadores comercializados hoje, como, por exemplo, Microsoft Office [11]. Não se deixará, porém, de discutir também a alternativa Logo, que possui ferrenhos defensores dentro e fora do país, e que está facilmente disponível em várias versões, em Português, pelo menos uma das quais (a do NIED da UNICAMP) é gratuita para escolas [12]. Dir-se-á também uma palavra sobre o uso de softwares educacionais facilmente encontráveis no mercado, em Português, geralmente distribuídos em CD-ROMs — embora sabendo-se que a maioria das escolas não os possui [13]. Por fim (“last, but not least”), também se discutirá o uso pedagógico da Internet, visto que ela está hoje geralmente disponível (mesmo que as escolas raramente se valham da ubiqüidade da rede para fins pedagógicos). Nesse caso, há materiais interessantes em Português e em outras línguas, especialmente em Inglês.

NOTAS

[1] Seguindo o exemplo dos portugueses, o verbo “aceder” (transitivo indireto, regendo a preposição “a”) é aqui usado, em sentido admitidamente um pouco diferente dos tradicionais, para significar “ganhar acesso”, na esperança de que venha a substituir o horrendo neologismo “acessar” (que tem sido conjugado como verbo transitivo). Como se verá neste texto, alguns neologismos (como o verbo “clicar”) são inevitáveis, porque não há nenhuma palavra portuguesa que corresponda a eles. Já o adjetivo “clicável” é mais difícil de digerir, e, por isso, embora usado com alguma parcimônia no texto, ainda assim foi sempre colocado entre aspas. Termos em Inglês geralmente usados na área de informática são usados no texto sem aspas ou itálico, como é o caso de “link”. Já o verbo “linkar” (que teria o particípio passado “linkado”) está claramente fora dos limites do aceitável.

[2] Seymour Papert, em The Connected Family: Bridging the Digital Generation Gap (Longstreet Press, Atlanta, GA, 1996), p.166,  afirma que o principal executivo da IBM escreveu um livro em que defende a tese de que a escola deve ser “reinventada”. Infelizmente ele não dá o nome do livro. A passagem no texto já estava escrita, porém, quando essa referência foi encontrada. É interessante que em seu livro anterior (The Children’s Machine: Rethinking School in the Age of the Computer [Basic Books, New York, NY, 1993]; tradução para o Português de Sandra Costa, A Máquina das Crianças: Repensando a Escola na Era da Informática [Editora ArtMed, Porto Alegre, RS, 1994], Papert defende a tese de que a escola deve ser “repensada” – algo que parece mais fraco do que “reinventada”.

[3] Michael Hammer e James Champy, Reengineering the Corporation: A Manifesto for Business Revolution (Harperbusiness, New York, NY, 1993), p.48; na tradução brasileira de Ivo Korytowski, Reengenharia (Editora Campus, Rio de Janeiro, RJ, 1994), p.34, a expressão original “paving cow paths” é traduzida como “asfaltar uma trilha de carro de boi”, tradução que reduz um pouco a força da expressão original.

[4] Seymour Papert, The Children’s Machine, op.cit., p.29.

[5] Ver Richard H. Irving e Christopher A. Higgins, Office Information Systems: Management Issues and Methods (John Wiley & Sons, New York, NY, 1991) e Ursula Huws, Werner B. Korte e Simon Robinson, Telework: Towards the Elusive Office (John Wiley & Sons, New York, NY, 1990).

[6] Essa definição, que aqui não é citada verbatim, se encontra em Sociologia da Educação, tradução brasileira de Lourenço Filho, 10ª edição (Edições Melhoramentos, São Paulo, SP, 1975), passim. Na pág. 41 se encontra a famosa definição: “A educação é a ação exercida, pelas gerações adultas, sobre as gerações que não se encontrem ainda preparadas para a vida social, [com o] objetivo [de] suscitar e desenvolver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política, no seu conjunto, e pelo meio especial a que a criança, particularmente, se destine”.

[7] Essa tese se encontra exposta e defendida em Emílio  — ou da Educação, tradução de Sérgio Milliet (Difusão Européia do Livro, São Paulo, SP, 1968), passim. Passagens importantes se encontram às págs 14, 22, 67, 68, 69 : “Arrastados pela natureza e pelos homens por caminhos contrários, obrigados a nos desdobrarmos entre tão diversos impulsos, seguimos um, de compromisso, que não nos leva nem a uma nem a outra meta” [p.14]. “Observai a natureza e segui o caminho que ela vos indica. . . . Por que a contraria[i]s? Não vedes que, pensando corrigi-la, destruís sua obra, impedis o efeito de seus cuidados?” [p.22]. “O único indivíduo que faz o que quer é aquele que não tem necessidade, para fazê-lo, de por os braços de outro na ponta dos seus; do que se depreende que o maior de todos os bens não é a autoridade e sim a liberdade. O homem realmente livre só quer o que pode e faz o que lhe apraz. Eis minha máxima fundamental. Trata-se apenas de aplicá-la à infância, e todas as regras da educação vão dela decorrer” [p.67]. “Ninguém tem o direito, nem mesmo o pai, de mandar a criança fazer algo que não lhe seja útil . . . Há duas espécies de dependência: a das coisas. que é da natureza; a dos homens, que é da sociedade” [p.68]. “Conservai a criança tão-somente na dependência das coisas; tereis seguido a ordem da natureza nos progressos de sua educação. Não ofereçais a suas vontades indiscretas senão obstáculos físicos ou castigos que nasçam das próprias ações e de que ela se lembre oportunamente. Sem proibi-la errar, basta que se a impeça de fazê-lo. Só a experiência e a impotência devem ser para ela leis” [p.69].

[8]  A famosa autocaracterização de Sócrates como parteira está no início do diálogo platônico Teeteto. É daí que vem o termo “maiêutica”: em Grego, o verbo grego maieuesthai quer dizer “agir como parteira”, e o substantivo maia quer dizer “parteira”. No texto Sócrates descreve a atividade dele como a de uma parteira. Por isso, muitos têm considerado o modelo como se aplicando ao filósofo, mas, neste contexto, ele se aplica até melhor ao professor.

[9]  Vide “Truth, Rationality and the Growth of Scientific Knowledge”, in Conjectures and Refutations: The Growth of Scientific Knowledge (Harper Torchbooks, New York, NY, 1963, 1965), p.238. Cp. também “Towards a Rational Theory of Tradition”, no mesmo livro, p.129. Na tradução brasileira de Sérgio Bath, sob o título Conjeturas e Refutações (Editora Universidade de Brasília, Brasília, DF, 1972), as passagens mencionadas estão nas pp. 264 e 155, respectivamente.

[10] Seymour Papert, The Connected Family, op.cit., p.162.

[11] Microsoft Office inclui fundamentalmente Microsoft Word, Microsoft Excel, Microsoft PowerPoint e Microsoft Access.

[12] A versão do NIED, chamada Slogo para Windows 95, pode ser obtida através de download a partir do site http://www.nied.unicamp.br/projetos/softw/logow/index.htm.

[13] A maioria dos CD-ROMs discutidos foi distribuída às escolas estaduais de São Paulo que receberam a coleção de CD-ROMs chamada “Ensino Online” da Secretaria de Estado da Educação.

Eduardo O C Chaves
Campinas, Dez/98

Transcrito aqui em Salto, 3 de Fevereiro de 2016

A Filosofia da Educação e a Análise de Conceitos Educacionais

[A primeira parte deste artigo (os Capítulos I- III IX) foi gestada e escrita nos anos de 1975-1978. Essa primeira parte foi publicada, em 1979, como o Capítulo VII do livro Iniciação Teórica e Prática às Ciências da Educação, organizado por meu grande amigo e colega de departamento Antonio Muniz de Rezende, e publicado pela Editora Vozes. Na época o Antonio era Diretor da Faculdade de Educação da UNICAMP e eu seu Diretor Associado. Em 1980 vim a sucedê-lo na Direção da Faculdade. Este artigo foi o primeiro artigo que publiquei sobre a educação – e isso é claramente perceptível em algumas partes, em especial na discussão do conceito de educação. Antes já havia escrito e publicado três artigos, mas todos eles sobre filosofia. Nos anos seguintes escrevi o restante do artigo, que foi apresentado, junto com a primeira parte, como meu primeiro relatório de pesquisa ao final de 1979 em cumprimento das exigências do Regime de Dedicação Exclusiva à Docência e à Pesquisa (RDIDP). Nunca fiquei totalmente contente com a obra final. Mas mesmo assim publiquei-a no portal EduTec.Net que eu tinha na Internet. Fiquei surpreso ao ser informado, agora em Janeiro de 2016, pela minha mulher, Paloma Epprecht e Machado de Campos Chaves, que ela localizou várias cópias do artigo em portais de universidades brasileiras. Evidentemente o artigo serviu para alguma coisa, a despeito de minha insatisfação com ele. Publico-o aqui como a versão autorizada do artigo – que continua a apresentar falhas, que exigiriam muito tempo para corrigir. EC

A Filosofia da Educação e a Análise de Conceitos Educacionais [1]

Conteúdo

I. Filosofia Analítica e Filosofia da Educação

  1. Filosofia Analítica
  2. Filosofia da Educação

II. A Filosofia da Educação e os Conceitos de Ensino e Aprendizagem

  1. Pode Haver Ensino sem que Haja Aprendizagem?
  2. Parêntese: A Questão da Intenção
  3. Parêntese: O Conceito de Ensino
  4. Pode Haver Aprendizagem sem que Haja Ensino?

III. Educação, Ensino e Aprendizagem

  1. O Conceito de Educação
  2. Pode Haver Ensino e Aprendizagem sem que Haja Educação?
  3. Um Parêntese
  4. Pode Haver Educação sem que Haja Ensino e Aprendizagem?

IV.Educação Formal e Informal e os Objetivos da Educação

  1. Educação Formal e Educação Informal
  2. A Questão dos Objetivos Educacionais

V. Educação Humanística e Educação Técnico-Profissionalizante

VI.Educação e Democracia

  1. Educação e Sociedade
  2. Educação e a Chamada “Classe Dominante”
  3. A Educação que é e a que deve ser
  4. O Grande Dilema da Educação

VII. Educação e o Desenvolvimento das Potencialidades do Indivíduo

VIII. Educação e Doutrinação

  1. Considerações Gerais
  2. O Conceito de Doutrinação
  3. Os Conteúdos como Critério de Doutrinação
  4. A Intenção como Critério de Doutrinação
  5. Os Métodos como Critério de Doutrinação
  6. As Consequências como Critério de Doutrinação
  7. Observações Específicas
  8. Doutrinação de Conteúdos Verdadeiros
  9. Doutrinação de Conteúdos Valiosos
  10. Doutrinação Não Intencional?
  11. A Doutrinação de Crianças Pequenas
  12. Doutrinação e o Dilema da Educação
  13. Porque a Doutrinação é Censurável e Indesejável

IX.  Observações Finais: Filosofia da Educação e Teoria Educacional

———
I. Filosofia Analítica e Filosofia da Educação

Em que consiste a filosofia da educação? A resposta a esta pergunta pode variar, dependendo do que se entende por filosofia (e, naturalmente, também do que se entende por educação, mas a própria conceituação de educação já envolve um certo filosofar sobre a educação). Ao leigo pode parecer incrível que filósofos profissionais não tenham conseguido chegar a um acordo a respeito do que seja a filosofia, isto é, acerca de seu próprio objeto de estudo, mas esta é a pura verdade. A questão da natureza e da tarefa da filosofia já é, ela própria, um problema filosófico, e, como tal, comporta uma variedade de respostas. A muitos pode parecer que esta proliferação de respostas seja indicativa do próprio fracasso da filosofia. Outros veem nesta situação a grande riqueza do pensamento humano, que, para cada problema que lhe é proposto, é capaz de imaginar uma variedade de soluções, todas elas, em maior ou menor grau, razoáveis e dignas de consideração, e todas elas contribuindo, de uma maneira ou de outra, para uma compreensão mais ampla e profunda dos problemas com que se depara o ser humano. Concordamos com estes últimos, e somos da opinião de que, embora muitos problemas filosóficos milenares não tenham (ainda?) sido solucionados, nossa compreensão deles, hoje, não é idêntica à dos filósofos que os formularam pela primeira vez, sendo muito mais profunda e ampla em virtude das várias respostas que já lhes foram sugeridas. Isto significa que há progresso na filosofia, apesar de este progresso não poder ser medido quantitativamente, em referência ao número de problemas solucionados, podendo somente ser constatado através de uma visão qualitativa, que leva em conta o aprofundamento e a ampliação de nossa compreensão desses problemas.

Não cremos, portanto, ser impróprio oferecer uma tentativa de “definição” da filosofia, se se mantém em mente que esta sugestão de definição não é feita dogmaticamente, como se fosse a única possível, ou mesmo a única razoável. Outras propostas de definição da filosofia existem que são plausíveis e razoáveis, e que, possivelmente, ao invés de se contraporem àquela que vamos sugerir, como alternativas, justapõem-se a ela como maneiras complementares de ver a filosofia.

1. Filosofia Analítica

A filosofia, do ponto de vista polo analítico, é aquela atividade reflexiva, realizada, através de análise e de crítica, pelo ser pensante, no exame do significado e dos fundamentos de conceitos, crenças, convicções e pressuposições básicas, mantidos por ele próprio ou por outros seres pensantes. Essa caracterização geral da filosofia deixa entrever que a atividade filosófica é uma atividade reflexiva de segunda ordem. O que se quer dizer por isto? Quer-se dizer que a filosofia pressupõe outros tipos de atividade, na verdade outros tipos de atividade reflexiva, como a ciência, a história, a religião, a política, etc., e mesmo o chamado senso comum. Por exemplo: o objeto de reflexão do cientista natural é, em linhas gerais, a natureza; o do historiador é a história; e assim por diante. Essas atividades de reflexão são de primeira ordem: concentram-se em diferentes aspectos da realidade, ou do “ser”. Elas partem, naturalmente, de certas pressuposições (por exemplo, de que os fenômenos do mundo natural estão causalmente relacionados, de que é possível ter conhecimento de eventos que não são mais objetos de nossa possível percepção, como é o caso de eventos históricos, etc.), e resultam em certas crenças e convicções (como, por exemplo, acerca da natureza da matéria, ou a respeito de uma certa sequência de eventos históricos). O filósofo analítico não reflete sobre as mesmas coisas que são objeto de reflexão por parte do cientista natural e do historiador — se o fizesse, estaria deixando de ser filósofo e passando a ser cientista natural ou historiador (algo, por sinal, perfeitamente possível). Ele reflete sobre as reflexões do cientista natural e do historiador, buscando trazer à tona (se necessário for), elucidar, e criticamente examinar os conceitos e as pressuposições básicas destes últimos, procurando, no processo, entender seus modos de argumentação e inferência, etc. Em poucas palavras, a filosofia analítica é reflexão (de um certo tipo) sobre a reflexão, é o pensamento pensando sobre si próprio. Para dar um tom mais contemporâneo a essa caracterização, poderíamos dizer que, desde que a reflexão e o pensamento se expressam através de linguagem, através do discurso humano, em suas várias manifestações, a filosofia analítica é discurso sobre o discurso: o filósofo reflete, não sobre a natureza e a história (para continuar com nossos exemplos anteriores), mas sim sobre o que cientistas naturais e historiadores dizem acerca da natureza e da história. Por isso é que chamamos a atividade filosófica de uma atividade reflexiva de segunda ordem: ela se exerce sobre outras atividades reflexivas, que se constituem, portanto, no objeto da filosofia.

É desnecessário enfatizar que o próprio cientista natural (ou o historiador) pode refletir sobre aquilo que está dizendo acerca da natureza (ou da história). Quando assim reflete, porém, está realizando atividade reflexiva de segunda ordem — está, portanto, nessas ocasiões, provavelmente, filosofando, e não fazendo ciência (ou história).

Parece desnecessário, também, acrescentar que a filosofia não se preocupa somente com o discurso científico e histórico, como poderiam sugerir nossos exemplos. O filósofo reflete sobre qualquer tipo de reflexão de primeira ordem: reflexão moral, reflexão religiosa, reflexão artística, etc., e também sobre as reflexões do senso comum [2]. Por isso, há muitas “filosofias de …”: filosofia da ciência (que pode ser ainda mais especializada, havendo a filosofia das ciências naturais, das ciências biológicas, das ciências humanas), filosofia da história, filosofia da religião, filosofia da arte, filosofia do direito, e assim por diante, incluindo-se aí, naturalmente, também a filosofia da educação.

É necessário, porém, ressaltar que nem toda atividade reflexiva de segunda ordem é, necessariamente, filosófica. O sociólogo, por exemplo, ou o psicólogo, pode refletir sobre a atividade do cientista, e sobre ela fazer e responder perguntas que sejam estritamente sociológicas, ou psicológicas, e não filosóficas. A sociologia da ciência não faz as mesmas perguntas sobre a atividade do cientista que são feitas pela filosofia da ciência. Se, porém, há outros tipos de atividade reflexiva de segunda ordem, além da filosófica, o que é que caracteriza as perguntas distintamente filosóficas? A resposta já esta contida no que foi dito acima: a filosofia busca elucidar e examinar criticamente os conceitos, as convicções e pressuposições básicas, os modos de argumentação e inferência, etc. existentes dentro de uma dada área de atividade intelectual.

Assim sendo, um psicólogo pode fazer vários tipos de pergunta acerca da atividade científica: Como é que, do ponto de vista psicológico, alguém chega a descobrir ou formular uma lei ou uma teoria? Quais os mecanismos psicológicos que estão envolvidos na criatividade e inventividade científicas? É a criatividade científica diferente, do ponto de vista psicológico, da criatividade artística? Da mesma maneira, um sociólogo pode perguntar sobre a relação existente entre ciência e sociedade, acerca da medida em que teorias científicas são condicionadas pelo meio-ambiente em que aparecem, a respeito do papel da ciência e do cientista na sociedade, etc. As perguntas que o filósofo que reflete sobre a ciência faz, porém, são do seguinte tipo: O que se entende por ciência? Quais são os critérios de cientificidade? O que diferencia teorias científicas de outros tipos de teoria (digamos, teorias metafísicas e especulativas)? O que leva cientistas a considerar uma teoria melhor do que a outra, quando ambas se propõem a explicar os mesmos fenômenos? Qual a relação entre teoria e observação? Existe verdade na ciência, ou apenas probabilidade? O alvo da ciência é produzir teorias altamente prováveis ou pouco prováveis, mas de alto poder explicativo e preditivo? Existe objetividade e racionalidade na ciência? Se não, por quê? Se sim, em que sentido e em que medida? E assim por diante.

Pode-se ver, imediatamente, que virtualmente todas essas perguntas filosóficas poderiam ser resumidas na seguinte questão: em que sentido e em que medida se pode falar em conhecimento científico? Essas perguntas são todas epistêmicas (episteme é o termo grego que se traduz por “conhecimento”): buscam analisar e elucidar a noção de conhecimento científico e os conceitos e premissas que constituem os fundamentos desse conhecimento. Perguntas semelhantes podem ser feitas em relação a qualquer atividade intelectual. É isto que faz com que a epistemologia, a teoria do conhecimento, ou seja, aquela área da filosofia que investiga a natureza, o escopo (ou a abrangência) e os limites do conhecimento humano, em geral, seja de suma importância no estudo da filosofia.

2. Filosofia da Educação

Mas falemos agora em filosofia da educação. A filosofia analítica da educação, seguindo a caracterização apresentada nos parágrafos anteriores, não discorre sobre o fenômeno da educação, como tal, mas sim sobre o que tem sido dito acerca desse fenômeno (por exemplo, por sociólogos da educação, psicólogos da educação, ou por qualquer pessoa que reflita sobre a educação). Não resta a menor dúvida de que uma das primeiras e mais importantes tarefas da filosofia da educação, a partir da caracterização da tarefa da filosofia sugerida acima, é a análise e clarificação do conceito de “educação”. Fala-se muito em educação. “Educação é direito de todos”, “educação é investimento”, “a educação é o caminho do desenvolvimento”, etc. Mas o que realmente será essa educação, em que tanto se fala? Será que todos os que falam sobre a educação usam o termo no mesmo sentido, com idêntico significado? Dificilmente. É a educação transmissão de conhecimentos? É a educação preparação para a cidadania democrática responsável? É a educação o desenvolvimento das potencialidades do indivíduo? É a educação adestramento para o exercício de uma profissão? As várias respostas, em sua maioria conflitantes, dadas a essas perguntas são indicativas da adoção de conceitos de educação diferentes, muitas vezes incompatíveis, por parte dos que se preocupam em responder a elas. Este fato, por si só, já aponta para a necessidade de uma reflexão sistemática e profunda sobre o que seja a educação, isto é, sobre o conceito de educação.

Assim que se começa a fazer isso, porém, percebe-se que a tarefa de clarificação e elucidação do conceito de educação é extremamente complexa e difícil. Ela envolve não só o esclarecimento das relações existentes ou não entre educação e conhecimento, educação e democracia, educação e as chamadas potencialidades do indivíduo, educação e profissionalização, etc. Envolve, também, o esclarecimento das relações que porventura possam existir entre o processo educacional e outros processos que, à primeira vista, parecem ser seus parentes chegados: doutrinação, socialização, aculturação, treinamento, condicionamento, etc. Uma análise que tenha por objetivo o esclarecimento do sentido dessas noções, dos critérios de sua aplicação, das suas implicações, e da sua relação entre si e com outros conceitos educacionais é tarefa da filosofia da educação e é condição necessária para a elucidação do conceito de educação.

Mas há ainda uma outra família de conceitos que se relaciona estreitamente com a educação: a dos conceitos de ensino e aprendizagem. Qual a relação existente entre educação e ensino, entre educação e aprendizagem, e entre ensino e aprendizagem? Façamos uma lista de possíveis perguntas a serem feitas acerca do relacionamento dessas noções:

  • Pode haver educação sem que haja ensino?
  • Pode haver educação sem que haja aprendizagem?
  • Pode haver ensino sem que haja educação?
  • Pode haver aprendizagem sem que haja educação?
  • Pode haver aprendizagem sem que haja ensino?
  • Pode haver ensino sem que haja aprendizagem? [3]

Tem se criticado muito uma visão da educação que coloca muita ênfase no ensino (e, consequentemente, no professor). O importante, afirma-se, não é o ensino, e sim a aprendizagem. Os mais exagerados chegam quase a afirmar: “Morte ao ensino! Viva a aprendizagem!” Outros fazem uso de certos slogans meio obscuros: “Toda aprendizagem é autoaprendizagem”. Incidentalmente, faz-se muito uso, em livros e discursos sobre a educação, de slogans cujo sentido nem sempre é muito claro. Um outro slogan muito usado, nesse contexto, é o seguinte: “Não há ensino sem aprendizagem”. Parece claro que, para poder julgar quanto à verdade ou à falsidade dessas afirmações, é indispensável que os conceitos de ensino e aprendizagem tenham sentidos claros e específicos — o que, infelizmente, não acontece com muita frequência. É necessário, portanto, que o sentido desses conceitos seja esclarecido e que sua relação com o conceito de educação seja elucidada, e a filosofia da educação pode ser de grande valia nessa tarefa.

Para terminar essa primeira parte, que tem por finalidade caracterizar a filosofia da educação, dentro da perspectiva mais geral de uma visão da filosofia que foi explicitada nos primeiros parágrafos, deve-se fazer menção de um outro conjunto de problemas relacionado, de alguma forma, com os já mencionados, mas que, por razão de espaço, não será explicitamente discutido: a questão da relação entre educação e valores. Este problema tem vários aspectos. Um deles é o seguinte: é tarefa da educação transmitir valores? Muitos já observaram que, seja ou não tarefa da educação transmitir valores, ela de fato os transmite, pelo menos de maneira implícita. Outros afirmam que, embora seja tarefa da educação transmitir valores, a educação moral, como às vezes é chamada a transmissão de valores através da educação, não é tarefa da educação escolar, isto é, da educação que se realiza no âmbito de uma instituição chamada escola, e sim da educação que tem lugar no contexto da família, ou talvez, se for o caso, da igreja. Esta resposta levanta, em um contexto específico, o problema mais amplo da relação entre educação e escola. Para muitos, quando alguém está falando em educação está, automaticamente, falando em escolas, e vice-versa. Mas a educação certamente parece ser algo que transcende os limites da escola, e hoje em dia fala-se muito em “educação sem escolas”. Os proponentes do ponto de vista que mencionamos acima acreditam que pelo menos uma parte da educação, aquela que diz respeito à transmissão de valores, deve ser levada a efeito fora da escola. Todos esses problemas são complexos, e embora a filosofia da educação não tenha respostas prontas para eles, ela pode contribuir muito para sua solução satisfatória, ajudando na elucidação e clarificação dos principais conceitos envolvidos nesse conjunto de problemas.

Antes de passarmos para a segunda parte deste trabalho, duas pequenas observações. A primeira é um lembrete de que os problemas aqui mencionados como sendo do âmbito da filosofia da educação de maneira alguma esgotam as questões a que um filósofo da educação, como tal, pode se dirigir, mesmo que ele seja partidário da conceituação de filosofia e filosofia da educação aqui proposta. Há uma série de outros problemas, a que não se fez referência, que estão, legitimamente, dentro da província da filosofia da educação como aqui conceituada. No que foi esboçado acima e no que será discutido abaixo temos apenas uma amostra de como alguns conceitos educacionais podem ser analisados filosoficamente.

Em segundo lugar, não se pode esquecer que a caracterização da filosofia da educação aqui apresentada é uma caracterização possível, que é sugerida a partir de uma conceituação analítica da filosofia, a qual não é, de maneira alguma, a única possível. Muitos filósofos discordam da orientação sugerida aqui e apresentam, consequentemente, uma visão diferente da natureza e tarefa da filosofia da educação. Em muitos dos casos a visão por eles sugerida apenas complementa (e não substitui) a apresentada no presente trabalho. Em outros casos é bem possível que as concepções sejam mutuamente exclusivas. Nos últimos parágrafos faremos menção do nosso ponto de vista acerca da relação entre a filosofia da educação e a teoria da educação, segundo o qual muita coisa que foi e é apresentada como filosofia da educação deve ser colocada no âmbito da teoria da educação. Contudo, é apenas no contexto de discussões acadêmicas acerca do conceito de filosofia da educação que faz alguma diferença designar posições acerca da educação como pertencentes à teoria, e não à filosofia da educação.

Embora a lógica talvez pudesse recomendar que começássemos com o conceito de educação, quer nos parecer que, do ponto de vista didático, seja mais recomendável que a discussão desses conceitos educacionais básicos seja iniciada pelos conceitos de ensino e aprendizagem, pois o leitor, provavelmente, estará mais familiarizado com eles do que com o mais difuso e abstrato conceito de educação.

II. A Filosofia da Educação e os Conceitos de Ensino e Aprendizagem

Comecemos nossa discussão dos conceitos de ensino e aprendizagem fazendo a seguinte pergunta: pode haver ensino sem que haja aprendizagem?

1. Pode Haver Ensino sem que Haja Aprendizagem?

Suponhamos uma situação em que um professor universitário apresente, em detalhes, os aspectos mais difíceis e complicados da teoria da relatividade de Einstein a grupo de crianças de sete anos. Suponhamos que o professor em questão seja profundo conhecedor do assunto e faça uma brilhante exposição, utilizando meios audiovisuais ou quaisquer outros recursos que a didática moderna possa recomendar. Apesar de tudo isso, as crianças nada aprendem daquilo que ele apresentou. Podemos nós dizer que, embora as crianças nada tenham aprendido acerca da teoria da relatividade de Einstein, o professor esteve ensinando durante sua apresentação? A resposta afirmativa, neste caso claramente extremo e exagerado, parece pouco plausível. Mas suponhamos — uma suposição, agora, não tão absurda — que a audiência desse professor fosse composta, não de crianças de sete anos, mas de universitários no último ano do curso de física, e que o resultado fosse o mesmo: os alunos nada aprenderam acerca da teoria da relatividade de Einstein através da exposição. Podemos nós dizer que, embora o professor tivesse estado a ensinar a teoria da relatividade, os alunos não a aprenderam? A resposta afirmativa, aqui, parece bem mais plausível. Mas qual é, realmente, a diferença entre a primeira e a segunda situação? Vamos colocar esta questão, por enquanto, entre parênteses, para analisar algumas respostas que têm sido dadas à pergunta com que iniciamos este parágrafo: pode haver ensino sem que haja aprendizagem?

Muitas pessoas dão uma resposta negativa a esta pergunta, afirmando que não há ensino sem aprendizagem. Este é um dos slogans que frequentemente aparecem na literatura educacional. Correndo o risco de caracterizar algumas posições altamente complexas de uma maneira um pouco simplista, poderíamos dizer que, em relação às duas situações que imaginamos no parágrafo anterior, os que afirmam que não há ensino sem aprendizagem podem se dividir em dois grupos: de um lado estariam os que afirmam que naquelas situações não houve ensino, visto não ter havido aprendizagem. Do outro lado, porém, estariam aqueles que, quando confrontados com situações desse tipo, levantam a seguinte questão: Será que não houve mesmo aprendizagem? Ainda supondo que os alunos, tanto em um como no outro caso, nada tenham aprendido acerca da teoria da relatividade de Einstein, argumentam, será que eles não aprenderam alguma coisa através da exposição do professor? Eles poderão ter aprendido, por exemplo, no caso das crianças de sete anos, que, embora o professor estivesse falando o tempo todo, ninguém estava entendendo nada, que as aulas com a professora regular são muito mais divertidas, que o retro-projetor utilizado pelo professor é um “negócio bacana”, etc.. No caso dos universitários, eles poderão ter aprendido que o professor devia desconhecer o nível da classe para dar uma aula dessas, que o curso que eles fizeram não deve ter sido muito bom, se não os capacitou a entender uma apresentação sobre a teoria da relatividade de Einstein, etc. Em poucas palavras: os alunos, em um como no outro caso, devem ter aprendido alguma coisa, e, consequentemente, houve ensino nas situações imaginadas — este o argumento.

A dificuldade com essa sugestão é óbvia: embora possa ter havido aprendizagem nas situações imaginadas, o que os alunos aprenderam não foi aquilo que o professor lhes estava expondo! Poderiam, talvez, ter aprendido as mesmas coisas, se a exposição houvesse sido sobre a química de Lavoisier, ou sobre as peças de Shakespeare, ou sobre a filosofia de Kant. Isto, por si só, já indica que algo não está muito certo e que há necessidade de que algumas coisas sejam esclarecidas e colocadas em seus devidos lugares. Vamos, de uma maneira muito simples e elementar, tentar esclarecer alguns desses problemas.

Se prestarmos atenção a algo muito simples, como a regência do verbo ensinar, poderemos começar a esclarecer a situação. Quem ensina, ensina alguma coisa a alguém. A situação de ensino é uma situação que envolve três componentes básicos: alguém que ensina (digamos, o professor ), alguém que é ensinado (digamos, o aluno), e algo que o primeiro ensina ao segundo (digamos, o conteúdo). Não faz sentido dizer que fulano esteve ensinando sicrano a tarde toda sem mencionar (ou sugerir) o que estava sendo ensinado (se frações ordinárias, andar de bicicleta, amarrar os sapatos, atitude de tolerância, etc.) [4]. Também não faz sentido dizer que beltrano esteve ensinando História do Brasil nas duas últimas horas, sem mencionar (ou indicar) a quem ele estava ensinando História do Brasil (se a seus filhos, se aos alunos da quarta série, etc.).

Nos dois casos que imaginamos, o professor universitário estava expondo a um grupo de alunos um certo conteúdo, a saber, a teoria de relatividade de Einstein. Este conteúdo os alunos, por hipótese, não aprenderam. Que eles tenham aprendido outras coisas, as quais ele, claramente, por hipótese, não estava interessado em transmitir-lhes, parece irrelevante à questão: pode haver ensino sem que haja aprendizagem? [5] Por isso, vamos deixar de lado o “segundo grupo” dos que afirmam que não há ensino sem aprendizagem e discutir a posição do “primeiro grupo”, ou seja, daqueles que afirmam que, visto não ter havido aprendizagem (da teoria da relatividade, naturalmente) nos casos em questão, não houve ensino.

Será que esta afirmação é verdadeira? Cremos que não. É importante notar que a afirmação cuja veracidade aqui vai ser colocada em dúvida é uma afirmação composta, que diz (pelo menos) duas coisas: em primeiro lugar, afirma que não houve ensino; em segundo lugar, afirma que não houve ensino porque não houve aprendizagem. Afirmar simplesmente “não houve ensino” é constatar algo; afirmar, porém, “não houve ensino porque não houve aprendizagem” é, além de constatar algo, oferecer uma explicação: é indicar a razão (ou a causa) em virtude da qual não houve ensino. A afirmação cuja veracidade vamos questionar é a composta, que inclui a explicação da constatação. Isto pode parecer meio complicado, mas no fundo é simples, como, esperamos, se vai ver.

Se é verdade que não há ensino sem aprendizagem, então não existe uma distinção entre ensino bem sucedido e ensino mal sucedido. Todo ensino é, por definição, bem sucedido, isto é, resulta, necessariamente, em aprendizagem. Dizer, portanto, que fulano ensinou raiz quadrada a sicrano e sicrano aprendeu raiz quadrada é ser redundante, é incorrer em pleonasmo, é dizer a mesma coisa duas vezes. Dizer, por outro lado, que fulano ensinou raiz quadrada a sicrano e sicrano não aprendeu raiz quadrada é incorrer em autocontradição, é afirmar e negar a mesma coisa, ao mesmo tempo, porque se fulano ensinou, então sicrano (necessariamente) aprendeu, e se sicrano não aprendeu, então fulano (necessariamente) não ensinou. Ora, tudo isso nos parece absurdo [6]. Parece-nos perfeitamente possível afirmar que, embora fulano tivesse ensinado raiz quadrada a sicrano durante a tarde toda, sicrano não aprendeu raiz quadrada. Em outras palavras, a distinção entre ensino bem sucedido (que resulta em aprendizagem) e ensino mal sucedido (que não resulta em aprendizagem) parece inteiramente legitima. Ora, se esta distinção é legítima, então não é verdade que não há ensino sem aprendizagem (ou que todo ensino resulta em aprendizagem).

Mas parece haver um certo vínculo conceitual entre ensino e aprendizagem. Dificilmente diríamos que uma pessoa está ensinando algo a alguém se esta pessoa não tem a menor intenção de que este alguém aprenda o que está sendo ensinado. Talvez o que o slogan esteja querendo dizer é que se não houver, por parte de quem apresenta um certo conteúdo, a intenção de que alguém aprenda aquilo que ele está expondo, então não há ensino. Esta afirmação parece ser aceitável. Ela apresenta uma dificuldade, porém: a noção de intenção. Como é que se determina que uma pessoa tem, ou não tem, a intenção de que alguém aprenda o que ela está expondo? Esta é uma dificuldade séria, porque esta questão é virtualmente equivalente à seguinte pergunta: Como é que se determina que uma pessoa está, ou não está, ensinando? [7]

2. Parêntese: A Questão da Intenção

Imaginemos que alguém esteja levando aos lábios um copo contendo um líquido vermelho. O que é que esta pessoa está fazendo? A esta pergunta pode-se responder, obviamente, com uma descrição dos movimentos físicos da pessoa em questão: ela está levando aos lábios um copo que contém um líquido vermelho. Mas esta resposta é pouco informativa. Para se oferecer uma resposta que seja mais informativa, porém, é necessário que se faça menção da intenção (ou do propósito) que a pessoa tem a levar aos lábios o copo com o líquido. A pessoa pode estar meramente saciando a sua sede com um bom vinho. Ou pode estar se embebedando. Ou pode estar se suicidando com um líquido venenoso. Ou pode estar comungando. Ou, ainda, pode estar fazendo um número de coisas que não vem ao caso enumerar. Sua intenção ao tomar o líquido é que vai determinar o que esta pessoa esta realmente fazendo. É bom ressaltar que a questão da intenção é sumamente importante. Se se descobre que a pessoa em pauta tinha meramente a intenção de saciar sua sede, mas que alguém (sem ela saber) despejou veneno no líquido, causando sua morte, nós não diríamos que ela se suicidou, e sim que foi assassinada. Se sua intenção era saciar a sede, mas, por puro engano, bebeu um líquido venenoso ao invés do vinho que pensava estar bebendo, nós não diríamos que houve suicídio, e sim um lamentável acidente, que veio a ser fatal, se, naturalmente, em consequência disso, a pessoa veio a falecer. Estas distinções são importantes, principalmente em contextos jurídicos. Em nosso caso, porém, elas não parecem nos ajudar muito na determinação da intenção da pessoa que levou aos lábios o copo com o líquido vermelho. De que maneira poderíamos determinar sua intenção?

Deve ser dito claramente que não há maneiras seguras e infalíveis de determinar a intenção de alguém. Intenções não são coisas direta e imediatamente observáveis, como o são movimentos físicos — pelo menos no caso de outras pessoas. (A situação parece bastante diferente quando se trata de nossas próprias intenções: a elas temos acesso direto e imediato, se bem que não através da observação.) Contudo, uma intenção pode, muitas vezes, ser indiretamente determinada através do contexto em que certos movimentos físicos são realizados, com ajuda do nosso conhecimento (mesmo que elementar) acerca do desenvolvimento e comportamento das pessoas. Se, no nosso caso, a pessoa estava levando o copo aos lábios dentro de uma igreja, na presença de um sacerdote, etc., é bastante plausível que sua intenção era comungar — pelo que sabemos do comportamento “normal” das pessoas, dificilmente ela estaria tentando se embebedar ou cometer suicídio ali. Se a pessoa, porém, estava levando o copo aos lábios em um clube noturno, onde esteve a dançar, tem o semblante alegre e descontraído, é bem possível que sua intenção fosse meramente saciar a sede — dificilmente estaria comungando ali, por exemplo. E assim por diante. Quando estamos na posição de observadores, procurando descobrir a intenção de alguém, precisamos analisar o contexto e, com base em nosso conhecimento acerca do comportamento “normal” das pessoas, aventar uma hipótese, que terá maior ou menor probabilidade de ser correta, dependendo das circunstâncias. Em alguns casos pode ser impossível determinar a intenção de alguém. Em outros pode ser até razoavelmente fácil (o que não exclui a possibilidade de erro). No nosso caso, não há dados que permitam determinar qual das hipóteses é mais provável, ou mesmo se alguma delas tem certa possibilidade, pois só oferecemos a descrição de um movimento físico: o de levar aos lábios um copo com líquido vermelho — não descrevemos o contexto. Mas em grande parte dos casos há uma indicação do contexto, da situação, que nos permite inferir qual a intenção do agente ao realizar certos movimentos.

Voltemos agora à afirmação que fizemos acima de que se não houver, por parte de quem apresenta um certo conteúdo, a intenção de que alguém aprenda aquilo que está se expondo, então não há ensino. O problema que esta afirmação enfrenta, dissemos, está relacionado com a dificuldade em determinar a intenção de alguém, a partir dos movimentos físicos que realiza. Esta dificuldade, contudo, não é intransponível, como acabamos de ver, e é compartilhada por todas as situações em que atribuímos intenções a outras pessoas, algo que fazemos em grande frequência. Constantemente atribuímos intenções aos outros [8] e, embora muitas vezes erremos ao fazê-lo, com surpreendente frequência acertamos.

Estamos agora em condições de responder à pergunta que formulamos no primeiro parágrafo desta segunda parte: Qual é realmente a diferença entre a primeira e a segunda situação que imaginamos naquele parágrafo? Por que é que no primeiro caso parece plausível dizer que o professor não estava ensinando, e que no segundo parece bem mais plausível dizer que o professor estava ensinando, embora em ambos os casos os alunos nada hajam aprendido? No primeiro caso, os fatos da situação — o contexto — mais nosso conhecimento de que crianças “normais” de sete anos têm condições de aprender nos indicam que o professor dificilmente poderia ter a intenção de que as crianças aprendessem os aspectos mais complicados da teoria da relatividade de Einstein. Por bizarro que possa parecer, é bem mais plausível imaginar que o professor estivesse ensaiando uma aula ou conferência, e que a presença das crianças fosse puramente acidental ou ornamental. No segundo caso, porém, a situação é alterada. A audiência é composta de alunos no último ano do Curso de Física. Baseados nesse fato, e em nosso conhecimento (ou na suposição razoável) de que alunos no último ano do Curso de Física têm, em geral, condições de entender a teoria da relatividade de Einstein, torna-se bem mais plausível atribuir ao professor a intenção de que os alunos aprendessem o que ele estava expondo, ou seja, a intenção de ensinar. Em um caso, portanto, é plausível afirmar que o professor não estava ensinando, e no outro é plausível afirmar que estava. Em nenhum dos dois casos, porém, houve aprendizagem. A plausibilidade das afirmações acima não se deve, portanto, ao fato de os alunos não haverem ou haverem aprendido o que lhes era exposto. Deve-se, isto sim, ao fato de que em um caso não faz sentido atribuir ao professor a intenção de que seus alunos viessem a aprender o que expunha, e no outro faz.

Foi por isso que ressaltamos acima que não iríamos discutir a afirmação simples de que não houve ensino naquelas situações e sim a afirmação composta de que não houve ensino porque não houve aprendizagem. Embora as situações sejam, exceto pela audiência, idênticas, estamos propensos a acreditar que no primeiro não houve ensino e que no segundo pode ter havido [9]. Mas não estamos propensos a acreditar que este seja o caso porque na primeira situação não tenha havido e na segunda tenha havido aprendizagem, pois, por hipótese, não houve aprendizagem em nenhuma delas. Baseamo-nos no fato de que no primeiro não é plausível atribuir ao professor a intenção de causar (ou produzir, ou ocasionar, ou ensejar) a aprendizagem dos alunos, enquanto no segundo é.

3. Parêntese: O Conceito de Ensino

Em relação ao conceito de ensino, podemos resumir as nossas conclusões e sugerir algumas de suas implicações:

Primeira: O conceito de ensino faz referência a uma situação ou atividade triádica, isto é, de três componentes, quais sejam, aquele que ensina, aquele a quem se ensina, e aquilo que se ensina. Esta conclusão sugere que não é muito apropriado dizer que alguém ensinou a si próprio alguma coisa, sendo, portanto, um auto-didata (o termo “didata” provém do verbo grego didaskein, que quer dizer, exatamente, “ensinar”). Quando dizemos que uma pessoa esta ensinando algo a uma outra pessoa, pressupomos que a primeira saiba (ou domine) o que está ensinando e que a segunda não saiba (ou domine) o que está sendo ensinado. Se há, porém, apenas uma pessoa em jogo, mais um certo conteúdo, ou esta pessoa já sabe (ou domina) este conteúdo, em cujo caso não precisa ensiná-lo a si própria, ou esta pessoa não sabe (ou domina) o conteúdo em questão, em cujo caso não tem condições de ensiná-lo a si própria. Designar certas pessoas como autodidatas parece, portanto, bastante descabido. Isso não quer dizer, porém, que alguém não possa aprender por si próprio um certo conteúdo, sem que alguma outra pessoa necessariamente lho ensine. Neste caso, porém, a pessoa que vem aprender um dado conteúdo por si própria não é um auto-didata, mas sim um auto-aprendiz.

Segunda: Para que uma atividade se caracterize como uma atividade de ensino não é necessário que aquele a quem se ensina aprenda o que está sendo ensinado; basta que o que ensina tenha a intenção de que aquele a quem ele ensina aprenda o que está sendo ensinado. Esta segunda conclusão é rica em implicações. Em primeiro lugar, ela implica a existência de ensino sem aprendizagem (o que poderíamos chamar de ensino mal sucedido). Em segundo lugar, ela sugere que coisas realmente não ensinam, porque não podem ter a intenção de produzir a aprendizagem. Isto, por sua vez, significa que não é muito correto dizer: “A natureza me ensinou”, ou “a vida me ensinou”, etc. Significa, também, que é só com muito cuidado que podemos falar em ensino através de máquinas (máquinas de ensinar, computadores, por exemplo), ou mesmo através de livros. Um computador (ou um livro) só ensina na medida em que a pessoa que o programou (ou escreveu) teve a intenção de que alguém aprendesse através dele.

Terceira: A intenção de produzir a aprendizagem, isto é, a intenção de ensinar, só pode ser constatada mediante análise do contexto em que certas atividades são desenvolvidas. Se esta análise tornar razoável a atribuição da intenção em pauta, podemos concluir que pode estar havendo ensino [10]; caso contrário, seremos forçados a admitir que não esteja. Esse exame do contexto é, portanto, extremamente importante. A presente conclusão, quando vista à luz das precedentes, tem pelo menos três implicações bastante significativas. Em primeiro lugar, desde que ensinar é sempre ensinar alguma coisa, algum conteúdo, a alguém, quem quer que seja que pretenda estar ensinando tem a obrigação de indicar, de maneira clara e inequívoca, exatamente o que é que ele tenciona que seus alunos aprendam. Se o conteúdo a ser aprendido não é claramente indicado, a pessoa que o expõe pode estar fazendo uma variedade de coisas (um discurso, uma pregação, etc.), mas dificilmente estará ensinando, pois se torna bastante problemático atribuir-lhe a intenção de que os alunos aprendam algo que não é especificado. Em segundo lugar, é necessário que as atividades desenvolvidas por quem pretende estar ensinando estejam relacionadas, de alguma maneira, com o conteúdo a ser aprendido. Isto significa que, embora as atividades que possam ser consideradas atividades de ensino, em geral, sejam virtualmente ilimitadas, as atividades que podem ser considerada de ensino de um conteúdo específico são limitadas pela natureza do conteúdo em questão. Se as atividades desenvolvidas não têm relação com esse conteúdo, torna-se difícil atribuir ao suposto ensinante a intenção de que seus alunos aprendam o conteúdo que lhes está sendo proposto. Em terceiro lugar, desde que ensinar é sempre ensinar alguma coisa a alguém, é necessário que quem pretende estar ensinando conheça e leve em consideração a condição de seus alunos (sua idade, seu desenvolvimento, seu nível intelectual, etc.) para não apresentar-lhes conteúdos para os quais não estão preparados e que não têm condições de aprender e para não desenvolver atividades inadequadas à condição desses alunos. Torna-se bastante problemático atribuir a alguém a intenção de que seus alunos aprendam um certo conteúdo se esse conteúdo, por exemplo, está acima da capacidade desses, ou se as atividades escolhidas como meios para alcançar esse objetivo não podem ser desenvolvidas ou acompanhadas pelos alunos.

Com essas conclusões chegamos, porém, ao segundo tópico a ser discutido nesta parte do trabalho. Até agora discutimos a possibilidade de haver ensino sem aprendizagem. Discutamos agora a questão inversa: pode haver aprendizagem sem ensino?

4. Pode Haver Aprendizagem sem que Haja Ensino?

A resposta a essa pergunta parece ser bem mais fácil do que a resposta à questão anterior. Parece óbvio que pode haver aprendizagem sem ensino. Atrás já aludimos ao fato de que é possível que, durante uma aula ou exposição, alguém aprenda coisas que o professor não está querendo lhe ensinar (isto é, coisas que o professor não tem a intenção de que ele venha a aprender), como, por exemplo, que o assunto da exposição é terrivelmente maçante. Este seria um exemplo de aprendizagem sem ensino. Acabamos de sugerir que o chamado auto-didata é, na realidade, um auto-aprendiz, alguém que aprende um certo conteúdo sozinho, e não alguém que o ensina a si mesmo. Sugerimos, também, que não é muito correto dizer que a natureza e a vida ensinam. Nestes casos, também, parece ser muito mais correto dizer que certas pessoas aprendem determinadas coisas por si próprias. Estes seriam exemplos de aprendizagem sem ensino. Parece claro, portanto, que pode haver aprendizagem sem ensino.

Mas consideremos a posição de alguém que argumente da seguinte maneira [11]. Concordo não ser muito correto dizer que a natureza e a vida ensinem coisas às pessoas; é muito mais correto dizer que as pessoas aprendem sozinhas — se bem que através de seu contato com a natureza ou através de sua experiência da vida. Mas — continua o argumento — esta situação não é diferente da do aluno na sala de aula: o aluno, na sala de aula, também aprende, na realidade, sozinho — se bem que, muitas vezes, através de seu contato com o professor. A sua aprendizagem, prossegue o argumentante, não é o produto, ou o resultado, ou a consequência do ensino do professor: há muitos fatores que incidem sobre ela, como, por exemplo, a motivação do aluno, suas condições de saúde e alimentação, o clima sócio-emocional na sala de aula, as condições do meio ambiente (a temperatura da sala, etc.), e assim por diante. Um dos fatores mais importantes a incidir sobre a aprendizagem é a experiência anterior do aluno com conteúdos semelhantes aos que agora se pretende que ele aprenda, a bagagem de experiência e conhecimento que ele traz consigo. É somente na medida em que estes fatores incidem de maneira favorável sobre o aluno que ele vem a aprender, continua o argumentante, e conclui: A aprendizagem do aluno é sempre uma autoaprendizagem: se ele está doente, ou subnutrido, ou não tem motivação, ele não aprende, por melhor que seja o professor. Ao professor cabe, portanto, simplesmente facilitar a aprendizagem, remover os obstáculos a ela, criar-lhe condições propícias. A aprendizagem, porém, é sempre um ato do aluno e nunca a consequência de um ato do professor, a saber, do ato de ensinar. Toda aprendizagem, portanto, diz o slogan, é autoaprendizagem. Aqui termina o argumento.

Várias observações podem ser feitas aos que assim argumentam. Em primeiro lugar, os que assumem essa posição respondem afirmativamente à pergunta: Pode haver aprendizagem sem que haja ensino? É verdade que vão mais longe, afirmando que a aprendizagem, em hipótese alguma, pode ser entendida como uma consequência do ensino. Em segundo lugar, precisa ser dito que grande parte das afirmações feitas pelos que defendem essa posição é perfeitamente aceitável — por exemplo, o que se diz acerca dos vários fatores que incidem sobre a aprendizagem. É este fato que faz com que a posição em pauta pareça ter uma certa plausibilidade inicial. O que precisa ser esclarecido — e esta é uma terceira observação — é o papel do ensino, e, consequentemente, do professor, no processo de aprendizagem.

Estamos entrando, aqui, porém, em uma área perigosa para o filósofo, pois esta última questão parece levantar um problema de natureza empírica acerca do qual somente um psicólogo poderia nos dar informações. Um filósofo que se preocupa essencialmente com questões conceituais faria bem, poderia parecer, em não se intrometer nesta área. Para esclarecer nosso objetivo, portanto, é necessário que indiquemos claramente em que sentido um filósofo pode contribuir para a solução desse problema. Vimos atrás que o conceito de ensino inclui uma referência ao conceito de aprendizagem (mais precisamente, faz referência à intenção de produzir a aprendizagem). O que queremos examinar aqui é se o conceito de aprendizagem exclui a possibilidade de que a aprendizagem seja vista como o produto, o resultado, ou a consequência do ensino, pelo menos em alguns casos. Já admitimos a possibilidade de que a aprendizagem ocorra sem ensino. Queremos, agora, examinar a suposta impossibilidade de que ela aconteça em decorrência do ensino, como efeito ou consequência deste [12]. Se esta impossibilidade for real, isto é, se o conceito de aprendizagem logicamente exclui a possibilidade de que a aprendizagem seja vista como (em alguns casos) uma decorrência do ensino, então o ensino, como uma atividade que é desenvolvida com a intenção de que dela resulta a aprendizagem, é um empreendimento fútil. Não caberá mais ao professor ensinar — restar-lhe-á apenas a tarefa de detectar obstáculos e empecilhos à aprendizagem (como falta de motivação, desnutrição, etc.) e de procurar encontrar maneiras de remover esses obstáculos e empecilhos, tornando-se, portanto, caso venha a ser bem sucedido, um facilitador da aprendizagem. Diga-se de passagem que essa tarefa não é pequena, nem fácil, e muito menos indigna. Todo professor sensível se dedica a ela. Acontece, porém, que muitos professores acreditam que, além da tarefa de detectar obstáculos e empecilhos à aprendizagem e de procurar encontrar maneiras de removê-los, cabe-lhes a tarefa de ensinar, ou seja, de desenvolver certos tipos de atividade que deverão resultar na aprendizagem, por parte dos alunos, de certos conteúdos. Ora, essa tarefa só é realizável se a impossibilidade a que nos referimos não for real.

Para elucidar essas questões que, embora conceituais, têm muitas implicações práticas, é necessário levar em conta o que psicólogos afirmam acerca da natureza da aprendizagem. Mas nossa investigação não é equivalente a uma investigação psicológica, de natureza empírica.

Há um certo sentido em que é verdade que toda aprendizagem á autoaprendizagem, que é o seguinte: ninguém pode aprender por mim. Se eu quero vir a saber (ou dominar) um certo conteúdo, sou eu e ninguém mais que tenho que aprender esse conteúdo. Alguém pode me explicar em detalhe o conteúdo a ser aprendido, pode discuti-lo comigo, esclarecer minhas dúvidas, estabelecer paralelos entre esse conteúdo e outros que já conheço (ou domino), etc., mas a aprendizagem, em última instância, é minha. Sou eu que tenho que assimilar, compreender, dominar o que deve ser aprendido. Se é só isso que se quer dizer quando se afirma que toda aprendizagem é autoaprendizagem, então o slogan é perfeitamente aceitável.

Mas muita gente quer dizer mais com o slogan. Quer dizer que o professor não deve interferir no processo de aprendizagem do aluno (a não ser para remover obstáculos a essa aprendizagem) e que este deve descobrir por si só aquilo que deve aprender. O melhor que o professor pode fazer, em uma linha de ação positiva, talvez seja criar condições propícias para que o aluno descubra, ele próprio, o conteúdo a ser aprendido. Interpretado dessa maneira, o slogan já não nos parece tão aceitável. Em primeiro lugar, essa aprendizagem por descoberta parece inteiramente apropriada em contextos nos quais a pessoa está aprendendo sozinha, sem o auxílio do professor, ou em contextos nos quais aquilo que deve ser aprendido ainda não foi descoberto por ninguém, sendo, portanto, desconhecido. Em segundo lugar, não nos parece que jamais tenha sido provado que, no que diz respeito a conteúdos já conhecidos, já descobertos por alguém, a melhor maneira de aprender esses conteúdos seja trilhar o caminho seguido por quem originalmente os descobriu. Em outras palavras, parece ser bem possível, por exemplo, que a melhor maneira de aprender um dado conteúdo já conhecido seja seguir o caminho inverso daquele percorrido por quem descobriu esse conteúdo (reverse engineering). Ou algum outro caminho, talvez. Essas questões precisam ser investigadas empiricamente. Não há garantias conceituais para a suposição de que no caso de verdades já conhecidas — estamos falando agora de conteúdos cognitivos — a melhor maneira de aprendê-los seja redescobri-las. Por um lado, o processo de descobrimento (ou redescobrimento) é altamente demorado, e muitas vezes não é bem sucedido. Por outro lado, não há a menor garantia de que, se cada geração precisar redescobrir as verdades já descobertas por prévias gerações, se vá chegar muito além do ponto ao qual as gerações prévias chegaram. Isto nos mostra que, em relação a certos conteúdos, é bem possível que a melhor maneira de ocasionar uma aprendizagem rápida e fácil seja através do ensino.

Ora, se isto é possível — note-se que não estamos dizendo que seja o caso — então não é (logicamente) impossível que a aprendizagem aconteça em decorrência do ensino, como efeito ou consequência do ato de ensinar.

III. Educação, Ensino e Aprendizagem

Pode haver ensino sem que haja educação? Pode haver aprendizagem sem que haja educação? Para respondermos a essas perguntas é necessário que investiguemos o conceito de educação.

Uma investigação exaustiva, que descreva e analise os vários conceitos de educação existentes em nossa cultura, ou em outras culturas, distantes de nós no tempo ou no espaço, não é possível dentro do escopo do presente trabalho. Os conceitos são tantos, e tão variados, que somente poderíamos discuti-los com algum proveito dentro de um livro dedicado especialmente ao assunto. A alternativa que nos resta é a de propor uma caracterização do conceito de educação que seja suficientemente ampla, que faça sentido e seja justificável. A partir dessa caracterização tentaremos responder às perguntas formuladas no parágrafo anterior, bem como às suas correlatas: Pode haver educação sem que haja ensino? Pode haver educação sem que haja aprendizagem?

1. O Conceito de Educação

Entendemos por “educação” o processo através do qual indivíduos adquirem domínio e compreensão de certos conteúdos considerados valiosos.

Vamos esclarecer o sentido dos principais termos dessa proposta de definição, pois sem esse esclarecimento a proposta fica muito vaga. [13]

Conteúdos: Como vimos na seção anterior, o termo “conteúdo” tem sentido bastante amplo, podendo designar coisas as mais variadas. Quando falamos em conteúdos, no contexto educacional, temos em mente não só conteúdos estritamente intelectuais ou cognitivos, mas todo e qualquer tipo de habilidade, cognitiva ou não, atitudes, etc. Note-se, porém, que na nossa proposta de definição o termo “conteúdos” está qualificado (falamos em “certos conteúdos considerados valiosos”), fato que já é indicativo de uma certa restrição no tocante aos conteúdos que podem ser objeto do processo educacional. Mas falaremos sobre isto mais adiante. Aqui é suficiente indicar que quando falamos de conteúdos estamos nos referindo a coisas tão diferentes umas das outras como geometria euclideana, teoria da relatividade, habilidade de extrair a raiz quadrada ou calcular a área do círculo, habilidade de amarrar os sapatos, de mexer as orelhas sem mover outros músculos da face, atitude positiva para com a vida, a morte, para com os outros, etc.

Adquirir domínio: Estamos usando a expressão “adquirir domínio” como basicamente equivalente ao termo “aprender”. Adquirir domínio de um dado conteúdo é, portanto, aprendê-lo, no sentido mais amplo do termo. Neste sentido, alguém adquiriu domínio da habilidade de calcular a área de um círculo quando aprendeu e é capaz de (“sabe”) calcular a área de qualquer círculo que lhe seja apresentado.

Adquirir compreensão: Em nossa proposta de definição dissemos que a educação é o processo através do qual indivíduos adquirem domínio e compreensão de certos conteúdos considerados valiosos. Nossa intenção ao acrescentar “e compreensão” não foi a de simplesmente dar maior ênfase. Cremos que algo diferente e muito importante foi acrescentado à definição com a inclusão dessas duas palavras. Para que um processo seja caracterizado como educacional não basta que através dele indivíduos venham a dominar certos conteúdos: é necessário que esse domínio envolva uma compreensão dos conteúdos em questão. Uma coisa é saber que a fórmula para calcular a área de um círculo é Pr2 e mesmo ser capaz de aplicá-la. Outra coisa é compreender porque é que se utiliza essa fórmula para calcular a área de um círculo. Uma coisa é saber que não se deve tirar a vida de uma outra pessoa. Outra coisa é compreender porque é que não se deve fazer isso. Uma coisa é assimilar, pura e simplesmente, os valores de uma dada cultura. Outra coisa é aceitá-los, criteriosamente, após exame que leve à compreensão de sua razão de ser. Quando falamos em educação não estamos falando simplesmente em socialização ou aculturação, por exemplo. O processo de assimilação de normas sociais e de valores culturais pode ou não ser educacional: se essas normas e esses valores são simplesmente incorporados pelo indivíduo, ou inculcados nele, sem que ele compreenda sua razão de ser, o processo é de mera socialização ou aculturação, não havendo educação. Para que haja educação é necessário que o indivíduo, além de dominar certos conteúdos, que no caso são normas sociais e valores culturais, venha a compreendê-los, venha a entender sua razão de ser, venha a aceitá-los somente após investigação criteriosa que abranja não só as normas e os valores em questão, mas também possíveis alternativas.

Conteúdos considerados valiosos: Esta expressão talvez seja a mais problemática na proposta de definição feita por nós. O domínio, mesmo com compreensão, de certos conteúdos não é parte integrante de um processo educacional se os conteúdos em questão são considerados perniciosos ou sem valor algum. O domínio da habilidade de mexer as orelhas sem mover outros músculos da face não é, em nossa cultura, parte integrante do processo de educação dos indivíduos. O valor dessa habilidade é considerado virtualmente nulo. O desenvolvimento de uma atitude positiva, de aceitação, de relações sexuais entre irmãos também não é, em nossa cultura, parte integrante do processo de educação dos indivíduos, pois essa atitude é vista como perniciosa. Há, portanto, uma importante restrição no tocante aos conteúdos que podem ser objeto do processo educacional, como mencionamos atrás, e essa restrição diz respeito ao valor que se atribui a esses conteúdos, em determinados contextos. Essa introdução de um elemento valorativo na definição de educação limita os conteúdos que podem ser parte integrante do processo educacional. Ao mesmo tempo que faz isso, essa referência ao valor dos conteúdos coloca a educação dentro da problemática maior do chamado relativismo, pois o que é tido como valioso em uma dada cultura pode não ser assim considerado em outra, e vice-versa. Foi por isso que tivemos o cuidado de dizer “conteúdos considerados valiosos”, e não simplesmente “conteúdos valiosos”, pois ao optar pela segunda possibilidade estaríamos nos comprometendo com um dos lados de uma controvérsia que está longe de ser resolvida. É perfeitamente concebível que a habilidade de mexer as orelhas sem mover outros músculos da face seja considerada valiosa em algumas culturas, como é claramente possível que o desenvolvimento de uma atitude positiva para com o incesto entre irmãos seja considerado valioso em outras culturas. Se isso é verdade, então o domínio daquela habilidade e o desenvolvimento desta atitude seriam parte integrante do processo educacional nessas culturas, do mesmo modo que não o são na nossa. É possível, para citar outro exemplo, que o desenvolvimento de uma atitude crítica para com as opiniões de outras pessoas, incluindo-se aí os mais velhos, ou aqueles em posição de autoridade, seja considerado algo indesejável em algumas culturas e algo altamente valioso em outras. Se este for o caso, o desenvolvimento dessa atitude não será parte integrante do processo educacional nas primeiras culturas e o será nas outras. E assim por diante. Não nos compete aqui discutir a questão da objetividade ou não dos valores, embora este seja um tópico fascinante. Também não entraremos na complicada questão que é colocada pela coexistência de valores conflitantes dentro de uma mesma cultura (concebendo-se o termo “cultura” aqui em um sentido bastante amplo): em caso de conflito, deverão ter prioridade e prevalecer os valores de quem? Os dos pais do educando? Os dos professores? Os dos governantes? Os da igreja? Ou os do próprio educando?

Tendo em mente essa caracterização do conceito de educação, retomemos as perguntas formulados no início desta seção: Pode haver ensino sem que haja educação? Pode haver aprendizagem sem que haja educação?

2. Pode Haver Ensino e Aprendizagem sem que Haja Educação?

Parece óbvio que, se a educação é o processo através do qual indivíduos adquirem domínio e compreensão de certos conteúdos considerados valiosos, naturalmente pode haver ensino e aprendizagem sem que haja educação, ou seja, ensino e aprendizagem não-educacionais. Basta que as condições estipuladas na caracterização do conceito de educação não sejam cumpridas, para que o ensino e a aprendizagem deixem de cumprir função educacional.

Já observamos atrás que o domínio de habilidades às quais não se atribui valor, ou o desenvolvimento de atitudes consideradas perniciosas, em um dado contexto, não são partes integrantes do processo educacional, dentro daquele contexto. Em uma cultura semelhante à nossa, por exemplo, o fato de um indivíduo aprender a mexer as orelhas sem mover outros músculos da face, ou de desenvolver um atitude de aceitação ou tolerância para com relações sexuais entre irmãos, não é visto como uma contribuição para o seu processo educacional. Consequentemente, se alguém ensina a uma outra pessoa aquela habilidade ou esta atitude, esse ensino estará se realizando fora do contexto educacional, pois esses conteúdos não são considerados valiosos em nossa cultura. Igualmente, ensinar a alguém a arte (ou técnica) de arrombar cofres fortes, ou de bater carteiras, ou de mentir com perfeição, não é contribuir para sua educação, em um contexto cultural em que esses conteúdos não são considerados valiosos, como, queremos crer, seja aquele em que vivemos.

Pode haver, portanto, ensino e aprendizagem sem que haja educação, quando os conteúdos ensinados e aprendidos não são considerados valiosos.

Contudo, mesmo o ensino e a aprendizagem de conteúdos considerados valiosos podem ser não-educacionais se, por exemplo, levam ao domínio sem compreensão (no sentido ilustrado) desses conteúdos. Alguém que aceita normas sociais e valores culturais sem examinar e compreender sua razão de ser, sem dúvida aprendeu um certo conteúdo (possivelmente até através do ensino), mas o fez sem compreensão: a aprendizagem, neste caso, foi não-educacional, e se a aprendizagem foi decorrência de um ensino que estava interessado apenas na aceitação das normas e dos valores, e não na sua compreensão, o ensino também foi não-educacional (tendo sido, possivelmente, doutrinacional). O chamado condicionamento, na medida em que produz um certo tipo de comportamento que não é acompanhado de compreensão, não pode ter lugar dentro de um processo educacional.

Quer nos parecer, pois, que não resta a menor dúvida de que o ensino e a aprendizagem podem ser não-educacionais, ou porque os conteúdos ensinados e/ou aprendidos não são considerados valiosos ou porque levam ao domínio sem compreensão. É por isso que se pode criticar o ensino que insiste na mera memorização ou a aprendizagem puramente mecânica, automática, não-significativa. O ensino e a aprendizagem, nesses casos, não estão contribuindo para a educação do indivíduo, mesmo que os conteúdos ensinados e aprendidos sejam considerados valiosos, porque não estão levando o indivíduo a compreender esses conteúdos.

Da mesma maneira, perece-nos bastante impróprio falar em educação de animais, por exemplo, embora não reste dúvida de que animais possam aprender, frequentemente em decorrência de atividades de ensino. Muitos animais são perfeitamente capazes de dominar habilidades às vezes bastante complexas. É difícil imaginar, porém, que esse domínio seja acompanhado de compreensão (no sentido visto). Não o sendo, é impróprio afirmar que foram educados: parece ser bem mais correto dizer que foram meramente treinados, ou talvez, condicionados.

De igual maneira, o ensino e a aprendizagem de conteúdos que consistam de enunciados falsos, ou de enunciados que a melhor evidência disponível indique terem pouca probabilidade de serem verdadeiros (e, consequentemente, grande probabilidade de serem falsos), ou, talvez, de enunciados acerca dos quais a evidência, favorável ou contrária, seja inconclusiva, não devem ser parte integrante do processo educacional, pois quer nos parecer que em nossa cultura não seja considerado valioso um conteúdo que consista de enunciados falsos, ou contrários à melhor evidência disponível, ou acerca dos quais a evidência seja inconclusiva. O ensino de conteúdos deste tipo parece bem mais próximo da doutrinação do que da educação. Devemos ressaltar, para evitar mal-entendidos, que ensinar que um dado enunciado, ou conjunto de enunciados, é falso ou não-evidenciado é afirmar algo verdadeiro, se os enunciados em questão forem realmente falsos ou não-evidenciados, e se constitui, portanto, em uma atividade que pode, legitimamente, ser parte integrante do processo educacional. O que não pode ser visto como educacional é o ensino (e a aprendizagem) de enunciados falsos ou não-evidenciados como sendo verdadeiros ou evidenciados.

3. Um Parêntese

A esta altura vários problemas muito interessantes poderiam ser levantados, como elemento para futuras reflexões.

Primeiro: Ensinar (em geral, incluindo-se ensinar em contextos não-educacionais) é desenvolver certas atividades com a intenção de que os alunos aprendam um dado conteúdo x. Ensinar (em contextos, agora, estritamente educacionais) é desenvolver certas atividades com a intenção de que os alunos aprendam e compreendam um dado conteúdo x. Não há garantias de que as atividades desenvolvidas no ensino não-educacional e no ensino educacional de um mesmo conteúdo x sejam, necessariamente, as mesmas — muito pelo contrário.

Segundo: Ensinar, como visto, é sempre ensinar um certo conteúdo. Mas é perfeitamente possível que o conteúdo a ser ensinado, em um dado momento, seja o próprio ato de ensinar, ou a própria arte (ou habilidade) de ensinar. Neste caso, o próprio ensino seria o conteúdo do ensino.

Terceiro: O ensino que leva à aprendizagem sem compreensão e a aprendizagem não acompanhada de compreensão são, como acabamos de ver, não-educacionais. O elemento que os torna educacionais é a compreensão. A seguinte pergunta, portanto, é bastante importante e pertinente: É possível ensinar a compreensão como conteúdo, isto é, ensinar aos alunos a arte ou habilidade de compreender qualquer conteúdo que estejam aprendendo, ou tenham aprendido, ou que venham a aprender? Queremos crer que sim, embora este não seja o lugar de justificar esta resposta. Quer nos parecer, porém, que aqueles que afirmam que a função primordial da educação é fazer com que indivíduos aprendam a pensar estejam, na realidade, querendo dizer que a função primordial da educação é fazer com que indivíduos aprendam certos conteúdos com compreensão, de maneira crítica, etc., e não de modo puramente mecânico, não significativo.

Quarto: Quando o conteúdo do ensino é o próprio ensino (a arte ou habilidade de ensinar), também este conteúdo pode ser ensinado de maneira não-educacional e de maneira educacional, isto é, com a intenção de que os alunos meramente o dominem ou com a intenção de que os alunos o dominem e compreendam. Quer nos parecer que quem aprende ou domina com compreensão este conteúdo (a arte ou habilidade de ensinar) terá melhores condições, caso venha, eventualmente, a ensinar outros conteúdos, de fazê-lo de maneira educacional, isto é, de modo que seus alunos venham a aprender e compreender esses outros conteúdos.

Quinto: Quem aprende com compreensão um conteúdo qualquer (diferente do ato ou da habilidade de ensinar) geralmente tem melhores condições de ensinar aquele conteúdo, ou mesmo de ensinar a ensinar aquele conteúdo, do que alguém que só se preocupa com ensinar o ato ou a habilidade de ensinar (em geral). (parágrafo acrescentado).

Todas essas questões são altamente complexas, mas muito interessantes, merecendo estudo e reflexão. Dadas as limitações de tempo e espaço, não podemos investigá-las mais detalhadamente no presente trabalho. Somos da opinião de que o esquema conceitual aqui apresentado, além de permitir que essas questões sejam levantadas, sugere algumas maneiras de abordá-las, que poderão ser desenvolvidas em outros trabalhos.

4. Pode Haver Educação sem que Haja Ensino e Aprendizagem?

Acabamos de ver, pois, que pode haver ensino e aprendizagem que não são educacionais. Pode haver educação, porém, sem que haja ensino e sem que haja aprendizagem? Vamos discutir esta questão em partes, examinando, primeiro, se pode haver educação sem que haja aprendizagem, e, segundo, se pode haver educação sem que haja ensino.

Nossa proposta de definição de educação e nossa caracterização do termo “aprendizagem” nos mostram que há um vínculo conceitual entre educação e aprendizagem. Todo processo educacional implica, por definição, a aprendizagem de algum conteúdo, ou seja, envolve, necessariamente, alguma forma de aprendizagem. Habilidades que decorrem de processos puramente fisiológicos ou de amadurecimento não podem ser parte integrante do processo educacional porque não envolvem domínio, aprendizagem. A capacidade de fazer com que os intestinos funcionem, por exemplo, e a capacidades de gerar filhos, não são aprendidas: são decorrentes de processos puramente fisiológicos e de amadurecimento. Consequentemente, o seu desenvolvimento não pode ser visto como parte integrante do processo de educação de uma criança ou de um jovem. A habilidade de controlar os intestinos e de manter sob controle a capacidade reprodutora, de modo a permitir que esta se manifeste apenas em certas situações e sob certas condições, é, porém, decorrente de um processo de aprendizagem, e, consequentemente, o seu desenvolvimento pode se constituir em um dos objetivos específicos do processo de educação de indivíduos.

Não nos parece fazer o menor sentido dizer que um certo tipo de atividade contribui para a educação de um indivíduo se, em decorrência dessa atividade, o indivíduo nada vai aprender. A educação é o processo através do qual indivíduos aprendem e compreendem certos conteúdos considerados valiosos. Não é possível, pois, que haja educação sem que haja aprendizagem.

A situação é diferente no que diz respeito à relação entre ensino e educação. Vimos, atrás, que pode haver aprendizagem sem que haja ensino. A educação está conceitualmente vinculada à aprendizagem, e esta pode ocorrer sem que haja ensino. Deste argumento não decorre, porém, aparências ao contrário, que a educação possa ocorrer sem que haja ensino, pois não é o caso que, necessariamente, toda aprendizagem seja conceitualmente ligada à educação, sendo possível que apenas seja ligada à educação a aprendizagem decorrente do ensino. Contudo, prima facie não há razão para negar que esteja se educando o indivíduo que aprende por si próprio (o auto-aprendiz), e vem a compreender (no sentido dado ao termo por nós), conteúdos considerados valiosos. A menos, portanto, que se apresente um argumento convincente para mostrar que a educação não pode ocorrer sem o ensino, devemos concluir que possa.

É bem possível, porém, como ressaltamos na seção anterior, que a aprendizagem de certos tipos de conteúdo se realize mais fácil e rapidamente através do ensino. Se este realmente for o caso — e, como dissemos, não nos parece que o contrário tenha sido jamais provado — então a educação pode e deve se utilizar do ensino. Mas não há, neste caso, um vínculo conceitual entre educação e ensino, como acontece no caso de educação e aprendizagem. No caso de educação e ensino o vínculo é puramente acidental. Desde que o ensino pode ser uma das maneiras de alguém chegar à aprendizagem de certos conteúdos, podendo mesmo ser, no caso de alguns conteúdos, a maneira mais eficiente, a educação pode se utilizar do ensino. Mas não é necessário, do ponto de vista lógico, que o faça. Consequentemente, pode haver educação sem que haja ensino.

IV. Educação Formal e Informal e os Objetivos da Educação

Antes de passarmos à discussão do conceito de doutrinação, parece-nos oportuno acrescentar alguns comentários adicionais sobre o conceito de educação.

1. Educação Formal e Educação Informal

O primeiro comentário diz respeito à distinção entre educação formal e educação informal. Há, pelo menos, duas maneiras de entender essa distinção. De um lado, pode-se afirmar que educação formal é aquela ministrada em instituições especialmente criadas e organizadas com o objetivo de educar, a saber, escolas, e que educação informal é aquela que se realiza através de outras instituições, cuja finalidade precípua e principal talvez não seja a de educar, a saber, o lar, a igreja, a empresa, centros comunitários, etc. Não resta a menor dúvida de que pessoas educam-se, e são educadas, sem jamais frequentar uma escola. Neste sentido, a chamada “educação sem escolas” não só sempre foi possível como sempre ocorreu e ainda ocorre em larga escala, e o apelo no sentido de que a educação, hoje em dia, se torne mais informal seria uma convocação de outras instituições (além da escola) a um maior envolvimento com o processo educacional, muitas vezes relegado, nos dias atuais, por razões várias, quase que exclusivamente à escola.

Acontece, porém, que a educação informal, neste sentido do termo, frequentemente é bastante “formal” (em um sentido um pouco diferente do termo), ocorrendo de maneira bastante semelhante à utilizada nas escolas. Igrejas criam “Escolas Dominicais”, “Classes de Catecismo”, etc., as empresas e centros comunitários oferecem e ministram “Cursos”, etc., onde há professores, alunos, ensino, salas de aula, em uma réplica quase perfeita do que acontece na escola propriamente dita. Nesses casos, a aprendizagem é promovida principalmente através do ensino, o qual, muitas vezes, assume feições altamente tradicionais. Neste sentido dos termos, portanto, não há muito que distinga educação formal de educação informal, além do fato de que a primeira ocorre em instituições criadas com a finalidade quase única de educar e a segunda em instituições que têm outros objetivos além do objetivo de educar, objetivos esses que se sobrepõem às suas tarefas educacionais.

Passemos, pois, à segunda maneira de entender a distinção entre educação formal e educação informal. Vimos, há alguns parágrafos, que a educação, embora implique, necessariamente, a aprendizagem, não implica, com igual necessidade, o ensino. Como o ensino é, segundo nossa análise, uma atividade intencional, a educação que se realiza através de atividades de ensino também é intencional, seja ela realizada na escola ou em outras instituições. Acabamos de mencionar o fato de que essas instituições não-escolares que se ocupam da educação muitas vezes o fazem de modo a imitar o que acontece na escola. Isto nos sugere uma outra maneira de entender a distinção em questão. Educação formal seria aquela que se realiza através de atividades de ensino, e que se caracteriza, portanto, por ser intencional, ou melhor ainda, por ter a intenção de produzir a aprendizagem de conteúdos considerados valiosos. Educação informal, do outro lado, seria aquela que se realiza não-intencionalmente (ou, pelo menos, sem a intenção de educar), quando, em decorrência de atividades ou processos desenvolvidos sem a intenção de produzir a aprendizagem de algum conteúdo considerado valioso, pessoas vêm a aprender e compreender certos conteúdos considerados valiosos — às vezes considerados de altíssimo valor. Essas atividades e esses processos podem ocorrer fora da escola, em outras instituições, ou de maneira inteiramente não institucionalizada, como também pode ocorrer dentro da própria escola. Em decorrência do modo pelo qual uma escola é organizada e administrada, ou da maneira pela qual professores e funcionários se comportam em relação uns aos outros e aos alunos, pessoas podem vir a aprender e compreender conteúdos considerados de grande valor, sem que houvesse, a qualquer momento, a intenção de que alguém aprendesse alguma coisa em consequência disto (o que não quer dizer que a forma de organização e administração da escola, ou o comportamento de seus professores e funcionários, seja não-intencional; frequentemente é intencional, mas a intenção não é a de produzir a aprendizagem de conteúdos considerados valiosos). Frequentemente, o exemplo de um professor é mais educacional do que os conteúdos que ele ensina, pois seus alunos podem aprender mais conteúdos valiosos (ou conteúdos mais valiosos) em decorrência da observação de suas atitudes e de seu comportamento do que em consequência de seu ensino. E embora o professor possa se comportar de uma ou outra maneira com a intenção de que seus alunos aprendam algo valioso em função de seu comportamento, o professor, frequentemente, não tem esta intenção ao se comportar como o faz (o que, novamente, não quer dizer que seu comportamento não é intencional; pode sê-lo, mas em função de outras intenções). Pais frequentemente procurar educar seus filhos, e grande parte das vezes tentam fazê-lo através do ensino (via de regra verbal). As atitudes, o comportamento dos pais, porém, podem ensejar a aprendizagem e compreensão de conteúdos muito valiosos, principalmente na área da moralidade, sem que os pais tenham a intenção de que seus filhos aprendam alguma coisa em decorrência da maneira pela qual se comportam. E assim por diante.

Cremos que, com esses exemplos, tenha ficado claro o segundo modo de entender a distinção entre educação formal e educação informal.

2. A Questão dos Objetivos Educacionais

O segundo comentário que gostaríamos de fazer se relaciona com algumas das questões que levantamos, ao final da primeira seção, acerca das relações que porventura possam existir entre educação e conhecimento, educação e democracia, educação e profissionalização, etc. No início da presente seção, quando procuramos caracterizar o conceito de educação, afirmamos que iríamos propor uma conceituação de educação que fosse suficientemente ampla. Com esta expressão quisemos dizer que uma conceituação de educação, para ser viável, deveria ser suficientemente ampla para permitir que conceitos de educação mais específicos, que enfatizassem aspectos diferentes do processo educacional, pudessem encontrar guarida debaixo dessa conceituação mais ampla. Vejamos como isto pode acontecer.

Nossa conceituação de educação é, basicamente, uma conceituação formal. Com isto queremos dizer que qualquer visão substantiva da educação, que se preocupe em definir objetivos educacionais em um sentido mais específico — poderíamos dizer que o objetivo educacional mais geral está contido na conceituação de educação, a saber, fazer com que indivíduos adquiram domínio e compreensão de conteúdos considerados valiosos — cabe, muito bem, debaixo de nossa conceituação.

V. Educação Humanística e Educação Técnico-Profissionalizante

Analisemos, por exemplo, de início, a questão da chamada educação humanística versus a chamada educação técnico-profissionalizante. Certamente nesta questão tem havido radicais de ambos os lados.

De um lado há aqueles que enfatizam a conexão entre educação e conhecimento, concebendo a noção de conhecimento de modo a incluir nela quase que tão somente os pontos de vista e temas que, de certa maneira, sobreviveram o teste de durabilidade e que, portanto, se mostraram “perenes” — há uma escola de teoria educacional chamada “perenialismo” — e de modo a excluir da noção de conhecimento, e, consequentemente, de sua visão da educação, tudo aquilo que se refere mais diretamente ao preparo para o exercício de uma profissão técnica. Este preparo é considerado como mero treinamento ou adestramento em certas técnicas e habilidades e não deveria merecer o honroso privilégio de ser considerado parte integrante do processo educacional, sendo batizado com vários nomes diferentes, como “processo de qualificação de mão-de-obra especializada”, “processo de formação de recursos humanos para as áreas técnicas”, etc.

Do outro lado há aqueles, frequentemente não menos radicais, que enfatizam a conexão entre educação e vida, concebendo a noção de vida de modo a realçar suas ligações com o trabalho, e a deixar de lado suas ligações com o lazer. Educar, afirmam, é preparar para a vida, para o exercício de uma profissão. Tudo o mais é “ornamento”, “adorno”, “perfumaria”, menos educação. Dentre os que assumem esta posição há os que enfatizam o trabalho como forma de auto-realização individual, há os que procuram realçar o papel do trabalho como fator de desenvolvimento econômico, etc. Concordam, porém, em que o objetivo educacional básico é a preparação do indivíduo para a vida ativa do trabalho. (De certa maneira, as velhas discussões medievais acerca das vantagens e desvantagens da vida contemplativa e da vida ativa se repetem, com outras roupagens).

Não vamos tentar resolver essa controvérsia. Somente vamos procurar situá-la dentro de nossa conceituação de educação. Ao conceituar a educação, e ao explicitar aquela conceituação, observamos que os conteúdos (no sentido visto) que podem ser parte integrante do processo educacional são conteúdos considerados valiosos dentro de um dado contexto sociocultural. Mencionamos, também, sem discutir o fato, que se considerarmos o termo “cultura” em um sentido amplo (como quando se fala em “cultura brasileira”), valores conflitantes podem coexistir dentro de uma mesma cultura. Imaginemos, agora, para efeito de argumentação, uma cultura cujos valores sejam bastante coerentes, na qual o trabalho, seja como forma de realização pessoal, seja como fator básico de desenvolvimento econômico, seja o valor preponderante. Nesta cultura, a preparação para o trabalho, a formação profissional, será, quer nos parecer, o elemento predominante no processo educacional, outros ingredientes que possam não parecer diretamente profissionalizantes só sendo permitidos, dentro do processo educacional, na medida em que, mesmo de maneira indireta, venham a contribuir para o bom desempenho profissional. Estamos, sem dúvida, simplificando as coisas aqui, não fazendo várias distinções básicas e deixando de lado os aspectos complexos que envolvem processos educacionais concretos (e não imaginários), apenas para esclarecer alguns aspectos da questão e mostrar a abrangência de nossa conceituação de educação. Em um contexto socioeconômico como o que acabamos de imaginar, ninguém, mesmo que não concorde com a hierarquia de valores predominante naquele contexto, pode condenar a educação por ser estritamente profissionalizante: ela estará se ocupando dos conteúdos considerados valiosos naquele contexto. Se nossos valores não coincidem com os dessa cultura que imaginamos, devemos criticar e combater os valores dessa cultura, e não condenar o seu sistema educacional por incorporá-los. Em uma cultura cujos valores sejam diametricamente opostos aos da cultura que acabamos de imaginar, o processo educacional terá conteúdos basicamente diferentes no que diz respeito ao seu teor, mas ainda assim conteúdos considerados valiosos naquele contexto.

VI. Educação e Democracia

O que acabamos de dizer aplica-se, a nosso ver, mutatis mutandis, à relação entre educação e democracia. Em um contexto sociocultural em que a democracia é um valor básico, e o exercício da cidadania democrática é tido como algo valioso, o processo educacional vai ser visto como (pelo menos em parte) preparação para o exercício da cidadania democrática, fato que levará, sem dúvida, o sistema educacional a apresentar certas características que poderia não apresentar em outros contextos, onde diferentes fossem os valores. Naturalmente, a democracia, enquanto valor, é plenamente compatível com outros valores, e um processo educacional que prepara o indivíduo para o exercício da cidadania democrática pode também prepará-lo para o exercício de uma profissão, para a apreciação das artes, para o gozo dos momentos de lazer, etc.

Voltamos a enfatizar: se não concordamos com os valores de uma determinada cultura, devemos criticar e combater esses valores, e não condenar o seu sistema educacional por incorporá-los.

A questão difícil que pode ser colocada, entretanto, é como mudar valores sem atuar na educação?

1. Educação e Sociedade

Isto nos traz ao nosso terceiro comentário, que está estreitamente ligado ao que acabamos de dizer, e que diz respeito ao que poderíamos chamar de relacionamento entre educação e sociedade. Observamos atrás que, se concebermos o termo “cultura” em um sentido amplo, podem coexistir, dentro de uma mesma cultura, valores conflitantes. A maior parte do mundo vive em sociedades de classes, e as várias classes sociais, frequentemente, têm valores diferentes. Em uma sociedade pluralista, onde valores se chocam, onde os conteúdos considerados valiosos por uns e por outros não se identificam, que foram deverá tomar o sistema educacional?

Uma solução que se tem dado a este problema é o da criação de vários subsistemas educacionais, cada um deles enfatizando um certo conjunto de valores. Esta solução pareceria democrática, pois permitiria que cada qual escolhesse o subsistema em que iria ingressar, ou para o qual enviaria seus filhos, dependendo de seus próprios valores e daqueles que cada um dos subsistemas enfatizasse. Na prática sabemos que esta solução não tem sido muito democrática. Na verdade, os que propõem um sistema educacional único (a “escola única”) têm reivindicado, igualmente, a democraticidade de sua proposta e combatido a falta de democraticidade da solução que esboçamos, observando que esta solução leva, invariavelmente, à existência de um subsistema educacional para os “nossos filhos” e de outro(s) subsistema(s) para “os filhos dos outros”, visto que o acesso a um e a outro subsistema não é, por razões predominantes econômicas, franqueado, de igual maneira, a todos.

Outra solução, mais em moda no Brasil de hoje, preconiza a existência de um sistema educacional único que gradativamente se diferencia em subsistemas e que permite mobilidade horizontal (entre os subsistemas) e vertical (entre os subsistemas de um nível e os de outro nível).

Não vamos entrar aqui nos méritos ou deméritos dessas soluções nem mencionar outras que têm sido propostas. Esta não é nossa intenção. Estamos simplesmente procurando ilustrar o fato de que dentro de uma mesma cultura pode haver valores conflitantes, fato este que faz com que o sistema educacional enfrente sérios problemas e dificuldades para levar em conta esta divergência e conflitância de valores, e, consequentemente, de conteúdos considerados valiosos e de concepções de quais devam ser os objetivos educacionais específicos a serem promovidos.

2. Educação e a Chamada “Classe Dominante”

Problema mais sério e grave é trazido à tona por aqueles que apontam ao fato de que sistemas e subsistemas educacionais são organizados e administrados por uma ínfima parcela da população, invariavelmente da chamada classe dominante, e refletem, em decorrência disso, os interesses e os valores dessa classe (que, porque dominante, está desejosa de manter o status quo, de perpetuar seus privilégios, e que, consequentemente, vê a tarefa da educação como sendo, de um lado, preparar uma elite para vir a ser os futuros “donos do poder”, e, de outro lado, preparar o restante da população para se conformar com a condição de dominados) e não daqueles a quem esses sistemas e subsistemas se destinam. Não nos cabe aqui analisar esta questão, pois nosso propósito é mostrar que mesmo esse ponto de vista acerca da educação se enquadra dentro de nossa conceituação, pois nela, deliberadamente, não incluímos nenhuma indicação acerca de quem considera valiosos os conteúdos do processo educacional, apontando, inclusive, para o problema que surge em decorrência da coexistência de valores conflitantes dentro de uma mesma cultura. Deixamos, portanto, espaço para aqueles que conceituam a educação em termos do que ela é, bem como para aqueles que a conceituam em termos do que ela deve ser.

3. A Educação que é e a que deve ser

Cumpre-nos relembrar, porém, que incluímos, em nossa conceituação de educação, a exigência de que o processo, para que seja educacional, deva levar ao domínio e à compreensão de conteúdos considerados valiosos, e observamos que um processo que leva ao domínio, sem compreensão, sem crítica, sem investigação da razão de ser, de certos conteúdos, não pode ser visto como educacional. Este é um lembrete que qualifica o que dissemos no final do parágrafo anterior, porque muito embora possamos falar em educação em termos do que ela é, não devemos nos esquecer de que a educação como ela é frequentemente não é educação, mas, sim, como veremos, doutrinação.

4. O Grande Dilema da Educação

A exigência de que um processo, para ser educacional, deva levar ao domínio e compreensão de conteúdos considerados valiosos coloca o processo educacional diante daquilo que consideramos sua maior dificuldade, e, por isso mesmo, seu maior desafio: de que maneira podem indivíduos vir a adquirir domínio de certos conteúdos considerados valiosos e, ao mesmo tempo, adquirir suficiente compreensão desses conteúdos de modo a assumir diante deles uma postura crítica e aberta, que os leve a um exame criterioso desses conteúdos e das alternativas a eles, exame esse de que pode, inclusive, resultar sua rejeição?

Naquela cultura que imaginamos atrás, na qual o valor preponderante era o trabalho, o desafio educacional maior seria o de encontrar uma maneira de promover a educação profissional que cumprisse o objetivo de preparar para o trabalho e para uma profissão, e, ao mesmo tempo, possibilitasse ao aluno assumir uma postura crítica diante do próprio tipo de educação que estava recebendo. O dilema educacional por excelência é, portanto, o do autoquestionamento da educação. É somente na medida em que a educação leva o indivíduo a questionar sua própria educação que está recebendo que ela está se desincumbindo de sua tarefa. Processos que levam ao mero domínio e à mera aceitação de conteúdos, mesmo daqueles unanimemente considerados valiosos, não são educacionais por não levarem os indivíduos à compreensão desses conteúdos, compreensão esta que inevitavelmente envolve o seu questionamento. É aqui que estabelecemos o contato com a seção seguinte de nosso trabalho, onde discutiremos o problema da doutrinação.

VII. Educação e o Desenvolvimento das Potencialidades do Indivíduo

Mas antes disso, em um último comentário, este acerca do ponto de vista, bastante difundido, que conceitua a educação como o desenvolvimento das potencialidades do indivíduo. A dificuldade básica dessa conceituação diz respeito à noção de potencialidades. Em relação a qualquer indivíduo, quer nos parecer que seja impossível dizer, a priori, quais sejam as suas potencialidades. A noção de potencialidades, a nossa ver, quando aplicada a seres humanos, é uma daquelas noções que só têm sentido retrospectivamente. Baseando-nos naquilo que um dando indivíduo se torna, podemos afirmar que tinha potencialidade de tornar-se aquilo (pois doutra forma não se teria tornado). Só sabemos, portanto, quais as potencialidades de alguém a posteriori, depois que essas potencialidades já foram “atualizadas”, isto é, depois de este alguém ter se tornado aquilo para que tinha potencialidade.

Contudo, mesmo que fosse possível descobrir a priori quais as potencialidades dos indivíduos, nada nos garante que todas as suas potencialidades devessem, igualmente, ser desenvolvidas. Pode ser que algumas potencialidades (como, possivelmente, a potencialidade para comportamento agressivo e destrutivo) não devessem ser desenvolvidas. E ao decidirmos quais potencialidades deveriam e quais não deveriam ser desenvolvidas cairíamos no domínio dos “conteúdos considerados valiosos”.

Portanto, essa difundida conceituação de educação caracteriza o processo educacional como algo impossível (por não ser possível identificar a priori quais as potencialidades de alguém), ou, então, cai dentro de nossa conceituação (se se admite a possibilidade de identificar potencialidades a priori, cai-se na necessidade de discriminar entre as potencialidades que devem e as que não devem ser desenvolvidas, entre as potencialidades cujo desenvolvimento é considerado valioso e aquelas cujo desenvolvimento não é assim visto).

VIII. Educação e Doutrinação

Há muita controvérsia, hoje em dia, em relação ao conceito de doutrinação. Não vamos, aqui, tentar solucionar todas as disputas e divergências: vamos apenas nos situar dentro da controvérsia, apresentando e defendendo um conceito de doutrinação e mostrando como o conceito de doutrinação, por nós caracterizado, se relaciona com os conceitos de educação, ensino e aprendizagem.

Antes, algumas considerações gerais.

1. Considerações Gerais

Quando, na seção anterior, procuramos conceituar a educação, afirmamos que os conteúdos que podem ser objeto de educação são (desde que considerados valiosos) os mais amplos possíveis, não restringindo, de maneira alguma, esses conteúdos à esfera intelectual e cognitiva. Quando falamos em doutrinação, porém, parece haver uma grande limitação no tocante aos conteúdos que podem ser doutrinados, a saber: apenas crenças, ou pontos de vista, ou convicções, ou ideologias, ou, talvez, teorias, podem ser doutrinados. Não parece fazer o menor sentido afirmar que alguém foi doutrinado, a menos que conteúdo dessa doutrinação seja alguma coisa do tipo que acabamos de mencionar. Parece-nos absurdo dizer que alguém foi doutrinado a adotar uma atitude passiva diante da violência, por exemplo, ou a tomar banho diariamente, ou qualquer coisa desse tipo. Alguém pode ter sido condicionado a adotar uma atitude passiva diante da violência, ou a banhar-se diariamente, mas condicionamento e doutrinação não são a mesma coisa. Condicionamento tem que haver com comportamento, atitudes, hábitos. Doutrinação tem que haver com crenças, pontos de vista, etc. Alguém pode, portanto, ser doutrinado na crença de que se deva tomar uma atitude passiva diante da violência — mas isto já é outra coisa: estamos lidando, agora, com crenças e não com atitudes. (Não há, por exemplo, garantias de que quem acredite que se deva tomar uma atitude passiva diante da violência venha a assumir esta atitude quando confrontado com a violência: há sempre a possibilidade de que haja incoerência entre o pensamento e comportamento de uma pessoa, e já os gregos nos alertavam acerca da “akrasia“, ou fraqueza da vontade).

Parece haver pouca dúvida, portanto, de que os conteúdos que podem ser doutrinados são sempre conteúdos intelectuais e cognitivos do tipo mencionado (crenças, etc.), excluindo-se da esfera da doutrinação mesmo conteúdos intelectuais e cognitivos de outros tipos (como, por exemplo, habilidades intelectuais).

Uma segunda consideração geral que devemos fazer acerca do conceito de doutrinação é a de que, muito embora a educação possa ocorrer, como vimos, sem ensino, e mesmo de modo não-intencional, a doutrinação é sempre intencional, ocorrendo sempre em situações de ensino. (NOTA: Esse vínculo é empírico ou conceitual?) Vimos, também, que a educação tem um vínculo conceitual com a aprendizagem — não faz sentido dizer que houve educação se não houve nenhuma aprendizagem — e que o ensino tem um vínculo conceitual com a intenção de produzir a aprendizagem. Desde que a doutrinação tem, a nosso ver, um vínculo (conceitual) com o ensino, a doutrinação também tem um vínculo (conceitual) com a intenção de produzir a aprendizagem [14].

Mas por que é que afirmamos que a doutrinação só pode ocorrer em situações de ensino? A resposta a esta pergunta nos parece óbvia e simples. Ao passo que faz bastante sentido dizer que alguém educou-se, isto é, aprendeu certos conteúdos considerados valiosos de maneira a realmente compreendê-los, não nos parece fazer o menor sentido afirmar que alguém doutrinou-se: sempre afirmamos que alguém foi doutrinado [15].

Isto posto, devemos abordar a seguinte questão: tendo em vista as conclusões alcançadas atrás, de que a educação pode ocorrer, e frequentemente ocorre, através do ensino, será que o único aspecto a distinguir a educação da doutrinação é que esta é um caso específico daquela? Em outras palavras, será que a doutrinação nada mais é do que a educação, quando esta ocorre através do ensino e se ocupa de conteúdos intelectuais e cognitivos do tipo mencionado (crenças, etc.)? A resposta a esta questão deve ser, a nosso ver, enfaticamente negativa. Mas se este é o caso, o que realmente distingue a doutrinação da educação?

Em duas ocasiões, em nossa seção anterior, aludimos, de passagem, à doutrinação. Pare melhor entendermos esse conceito, relembramos aqui essas passagens: “Alguém que aceita normas sociais e valores culturais sem examinar e compreender sua razão de ser, sem dúvida aprendeu um certo conteúdo (possivelmente até através do ensino), mas o fez sem compreensão: a aprendizagem, neste caso, foi não-educacional, e se a aprendizagem foi decorrência de um ensino que estava interessado apenas na aceitação das normas e dos valores, e não na sua compreensão, o ensino também foi não-educacional (tendo sido, possivelmente, doutrinacional). Na segunda passagem observamos: “… O ensino e aprendizagem de conteúdos que consistam de enunciados falsos, ou de enunciados que a melhor evidência disponível indique terem pouca probabilidade de serem verdadeiros (e, consequentemente, grande probabilidade de serem falsos), ou, talvez, de enunciados acerca dos quais a evidência, favorável ou contrária, seja inconclusiva, não devem ser parte integrante do processo educacional, pois quer nos parecer que em nossa cultura não seja considerado valioso um conteúdo que consista de enunciados falsos, ou contrários à melhor evidência disponível, ou acerca dos quais a evidência seja inconclusiva. O ensino de conteúdos deste tipo parece bem mais próximo da doutrinação do que da educação”.

O que nos sugerem estas observações feitas atrás? A primeira nos sugere que o tipo de aprendizagem associado com a doutrinação, ou que resulta da doutrinação, é o da aprendizagem não acompanhada por compreensão, da aprendizagem não-significativa, meramente passiva — o indivíduo, no caso, meramente aceita, sem examinar e compreender sua razão de ser, certos conteúdos intelectuais e cognitivos (normas sociais e valores culturais). O que a segunda passagem nos sugere é que a intenção de quem doutrina está muito mais voltada para a aceitação dos conteúdos que ele está ensinando do que para um exame criterioso dos fundamentos epistemológicos desses conteúdos, exame este indispensável para sua compreensão. Em outras palavras, quem doutrina está muito mais interessado em que seus alunos simplesmente aceitam (acreditem em) certos pontos de vista do que em que eles venham a examinar os fundamentos desses pontos de vista, e, consequentemente, a compreendê-los, no sentido visto.

É aqui que aquilo que a segunda passagem nos sugere se liga com o que a primeira nos sugeriu, a saber, que a aprendizagem que se associa com a doutrinação, diferentemente daquela que se associa com a educação, é a aprendizagem não acompanhada por compreensão, e isto em função da intenção daquele que ensina de que exatamente isto ocorra.

2. O Conceito de Doutrinação

Feitas essas colocações, estamos em condições de conceituar, mais precisamente, a doutrinação: doutrinação é o processo através do qual uma pessoa ensina a outra certos conteúdos intelectuais e cognitivos (crenças, etc.), com a intenção de que esses conteúdos sejam meramente aprendidos (isto é, aprendidos mas não compreendidos), ou seja, com a intenção de que estes conteúdos sejam aceitos não obstante a evidência, sem um exame criterioso de seus fundamentos epistemológicos, de sua razão de ser — em suma, sem a compreensão que é condição sine qua non da educação.

Baseando-nos neste conceituação de doutrinação, podemos agora procurar esclarecer alguns dos aspectos mais controvertidos desse conceito, bem como seu relacionamento com o conceito de educação.

Vamos começar com a questão do relacionamento entre educação e doutrinação.

A. Os Conteúdos como Critério de Doutrinação

Desde que, como acabamos de observar, doutrinação tem que haver apenas com conteúdos intelectuais e cognitivos de um certo tipo (crenças, etc.), vamos comparar educação e doutrinação no que dizem respeito a esses conteúdos, deixando fora de nossa análise outros conteúdos (habilidades intelectuais e cognitivas, atitudes, comportamentos, etc.) de que se ocupa a educação mas que não são objeto da doutrinação. Também deixaremos de lado, nessa comparação, a educação informal (no segundo sentido visto) para nos determos na educação que se realiza através do ensino, pois, como constatamos, a doutrinação se realiza somente através do ensino.

Tomemos, pois, como ponto de referência, um certo conteúdo intelectual e cognitivo: digamos, uma doutrina política, ou uma teoria científica. Vamos supor, para efeito de argumentação, que este conteúdo seja considerado valioso no contexto em que se realiza seu ensino [16]. Se este é o caso, o conteúdo em questão pode ser ensinado de maneira educacional bem como de maneira não-educacional. Se a intenção de quem ensina é a de que os alunos aprendam e compreendam este conteúdo, o ensino estará sendo educacional. Se a intenção é a de que os alunos meramente aprendam (i.e., aceitem, acreditem em) o conteúdo em questão, o ensino está sendo não-educacional, ou, segundo nossa conceituação, doutrinacional.

B. A Intenção como Critério de Doutrinação

O que distingue a educação da doutrinação, portanto, é basicamente a intenção da pessoa que ensina, e é a intenção que se torna o critério básico e fundamental que nos permite diferenciar entre um ensino educacional e um ensino doutrinacional. É verdade que vimos que apenas certos conteúdos podem ser doutrinados (conteúdos intelectuais e cognitivos de um certo tipo, a saber, crenças, pontos de vista, etc.). Mas isto não quer dizer que mesmo estes conteúdos não possam ser ensinados de dois modos diferentes, educacionalmente e doutrinacionalmente. Além disso, mesmo conteúdos considerados valiosos podem ser doutrinados, como veremos, sendo, talvez, exatamente quando se trata de conteúdos considerados como altamente valiosos que há o maior risco de doutrinação. Portanto, o conteúdo não é o critério básico e fundamental que nos permite diferenciar entre educação e doutrinação. O mesmo conteúdo poderá ser ensinado de um ou de outro modo, educacionalmente ou doutrinacionalmente.

Isto quer dizer que não há conteúdos que estejam inevitavelmente fadados a serem objeto de doutrinação, como sugerem alguns, embora alguns conteúdos sejam, talvez, mais preferidos por doutrinadores do que outros. Com esta tomada de posição nos contrapomos àqueles que afirmam que em áreas coimo religião, moralidade, e política não há como evitar a doutrinação e que em áreas como a física e a astronomia não faz sentido falar-se em doutrinação, pois os que assim afirmam privilegiam o conteúdo como critério básico e fundamental de diferenciação entre educação e doutrinação. Dada nossa conceituação de educação e doutrinação, tanto podem a religião, a moralidade e a política serem ensinadas de maneira educacional, como podem a física e a astronomia serem ensinadas de modo doutrinacional, como bem mostram algumas pesquisas recentes na área da história e sociologia da ciência.

C. Os Métodos como Critério de Doutrinação

Nem é tampouco o método de ensino, como sugerem outros, o critério básico e fundamental de diferenciação entre doutrinação e educação, embora seja de es esperar que aquele que ensina com a intenção de que seus alunos aprendam e compreendam os conteúdos ensinados e aquele que ensina coma intenção de que seus alunos meramente aceitem os conteúdos ensinados venham a se valer de métodos de ensino diferentes. O primeiro possivelmente utilizará métodos que envolvam a livre discussão de ideias, a análise séria de alternativas, e, principalmente, um exame crítico e rigoroso dos fundamentos epistemológicos do conteúdo em questão; na verdade, poderíamos afirmar que ele se preocupará muito mais em fazer que seus alunos considerem a evidência e, à luz da evidência, tirem suas próprias conclusões, do que em fazer com que seus alunos simplesmente aceitem o conteúdo: seu intuito não é persuadir seus alunos a aceitarem o conteúdo, mas levá-los a compreendê-lo, e, em função dessa compreensão, aceitá-lo ou rejeitá-lo. O segundo, mesmo que se refira à evidência, aos fundamentos epistemológicos do conteúdo em pauta, subordinará a análise da evidência à sua intenção de fazer com que os alunos aceitem o conteúdo; é de se esperar, portanto, que esta evidência, se não inteiramente suprimida, seja distorcida, que evidência contrária não seja apresentada, ou, sendo apresentada, não seja analisada com justiça e isenção de ânimos e preconceitos.

D. As Consequências como Critério de Doutrinação

Também não é em função das consequências do ensino que podemos dizer se o ensino foi educacional ou doutrinacional, como sugerem ainda outros, embora neste caso também seja de esperar que as consequências do ensino educacional e do ensino doutrinacional sejam diferentes. Em condições normais, é de se esperar que o ensino educacional resulte em aprendizagem acompanhada de compreensão, e que o ensino doutrinacional resulte na mera aceitação (sem compreensão) dos conteúdos ensinados. É de se esperar, consequentemente, que, em decorrência de um ensino educacional, o aluno venha a ter uma mente mais aberta e flexível, que se preocupe com a análise e o exame da evidência, condicionando sua aceitação ou não dos conteúdos ensinados a este exame da evidência, como é de se esperar, também, que em decorrência de um ensino doutrinacional, o aluno venha a ter uma mente mais fechada, uma atitude mais dogmática e menos crítica, um apego mais emocional do que evidencial às suas convicções, pois lhe foi ensinado preocupar-se mais com certas crenças, ou doutrinas, ou teorias, do que com a análise crítica, isenta de preconceitos, da evidência. É de se esperar que o aluno doutrinado acabe por assumir a seguinte atitude: “É nisto que acredito: vamos ver agora se encontro alguma evidência para fundamentar minhas crenças”. Com esta atitude, é possível que suas razões para aceitar suas crenças não passem de racionalizações.

Não podemos nos esquecer, porém, de que tanto o ensino realizado de maneira educacional, quanto o realizado de maneira doutrinacional, podem ser mal sucedidos, em cujo caso as consequências que deles poderiam advir não seriam aquelas que, normalmente, se esperariam.

Podemos concluir, pois, que, a nível das intenções, a educação é um processo que tem por objetivo a abertura de mentes, a ampliação de horizontes, o incentivo à livre opção dos alunos, após análise e exame críticos da evidência, dos fundamentos epistemológicos, enquanto a doutrinação é um processo que tem por objetivo a transmissão e mera aceitação de crenças, etc., o fechamento de mentes, a redução de horizontes, a limitação de opções (frequentemente a uma só), o “desprivilegiamento” da evidência em favor da crença, a persuasão e não o incentivo ao livre exame.

Aquele que ensina de maneira educacional coloca-se na posição de quem, humildemente, está em incessante busca da verdade, através do estudo e do exame da evidência. O que ensina de maneira doutrinacional coloca-se na posição do orgulhoso possuidor da verdade. Desde que, na busca da verdade, não se pode negligenciar nenhum aspecto da evidência que possa ser relevante, a educação é tolerante, pois mesmo as críticas e a evidência negativa — diríamos mesmo, principalmente estas — podem contribuir para que nos aproximemos da verdade. Na medida, porém, em que a verdade já é considerada uma possessão, não há mais porque buscá-la, porque tolerar pontos de vista alternativos e conflitantes, pois na medida em que estes divergem da “verdade” só podem ser errôneos ou falsos, e quem os propõe só pode ser ignorante ou mal-intencionado. Daí a conexão, já mostrada por muitos, entre a crença na posse da verdade e a intolerância, mesmo a repressão, de pontos de vista divergentes, que ocorre quando há doutrinação.

Poderíamos mesmo dizer, fazendo paralelo a uma importante corrente de filosofia de ciência e de filosofia política, que a educação se preocupa muito mais em dar ao indivíduo condições de não ser facilmente persuadido, de evitar o erro, a falsidade, e, assim, aproximar-se, cada vez mais, da verdade, enquanto a doutrinação se preocupa muito mais com a persuasão, com a transmissão de crenças que se supõem verdadeiras (ou, mesmo, em alguns casos piores de doutrinação, crenças em que o próprio doutrinador não acredita, mas que, por algum motivo, deseja incutir em seus alunos).

3. Observações Específicas

Isto posto, podemos fazer algumas observações específicas em relação aos aspectos mais controversos do problema da doutrinação.

A. Doutrinação de Conteúdos Verdadeiros

Em primeiro lugar, o que acabamos de ver nos permite afirmar que é inteiramente possível que haja doutrinação mesmo de conteúdos verdadeiros.

B. Doutrinação de Conteúdos Valiosos

Em segundo lugar, temos que admitir que pode haver doutrinação mesmo quando os conteúdos são considerados valiosos e todos aprovam o que está acontecendo. Na verdade, é em situações assim que a doutrinação se torna mais fácil e mais provável, pois ninguém questiona o valor e a veracidade daquilo que está sendo ensinado. É muito mais fácil doutrinar alguém na ideologia capitalista nos Estados Unidos do que em um país radicalmente socialista, onde argumentos contra a ideologia capitalista provavelmente serão muito mais abundantes e comuns; e vice-versa.

C. Doutrinação Não Intencional?

Em terceiro lugar, devemos concluir que não há doutrinação não-intencional. A questão, porém, é mais complexa aqui. Desde que, como vimos, a intenção de alguém (que não nós mesmos) só pode ser determinada pela análise de suas ações em um dado contexto, é possível atribuir a alguém a intenção de doutrinar mesmo que esta pessoa não admita esta intenção. Também no caso de alguém que não tem conhecimento de evidência contrária àquilo que está ensinando, a situação é complexa. Podemos atribuir-lhe a intenção de doutrinar, se ele tem condições de obter acesso a esta evidência e não se preocupa em fazê-lo. Teríamos maiores reservas em atribuir-lhe esta intenção se não houvesse maneiras viáveis de ele obter acesso a esta evidência. Isto significa que professores de conteúdos intelectuais e cognitivos do tipo visto (crenças, etc.) correm grande risco de doutrinarem (ao invés de educarem) se não estiverem constantemente atualizados acerca dos desenvolvimentos nas áreas que ensinam. Como vimos atrás, o professor que ensina conteúdos falsos como sendo verdadeiros, ou conteúdos que a melhor evidência disponível indique terem pouca probabilidade de serem verdadeiros como sendo, de fato, verdadeiros, etc., estará, muito provavelmente, doutrinando, a menos que esteja em condições tais que o acesso a esta evidência lhe seja totalmente impossível. Não importa que ele acredite que os conteúdos que ensina sejam verdadeiros. Esta é uma questão subjetiva. A questão importante é a do relacionamento entre o conteúdo e a evidência, entre os conteúdos e os seus fundamentos epistemológicos — questão esta que, apesar das controvérsias atuais na área da epistemologia e da filosofia da ciência, nos parece ser objetiva.

D. A Doutrinação de Crianças Pequenas

Em quarto lugar, devemos abordar, ainda que brevemente, a complicada questão que se coloca em relação a crianças em tenra idade, que ainda não atingiram a chamada “idade da razão”. Será que, no que diz respeito a estas crianças, só nos resta a alternativa de doutrinação, visto não serem elas capazes, segundo se crê, de compreensão, no sentido visto, de exame de evidência, de opção livre e consciente?

Em relação a este problema devemos distinguir (pelo menos) dois aspectos. O primeiro é que exigir que crianças pequenas se comportem de determinada maneira, ou que adotem determinadas atitudes, não é, segundo nossa caracterização, doutriná-las, porque os conteúdos aqui não são conteúdos intelectuais e cognitivos do tipo passível de doutrinação (crenças, etc.), mas comportamentos e atitudes. A doutrinação poderá ocorrer no momento em que se procura fazer com que as crianças aceitem certas justificativas para o comportamento e as atitudes que lhes estão sendo exigidos. O segundo aspecto é que mesmo a crianças que ainda não atingiram a maturidade mental e intelectual necessária para compreender a razão de ser de certos comportamentos e atitudes que lhes são exigidos podem ser oferecidas as razões dessas exigências, as alternativas, etc., de maneira bastante aberta e flexível. Haverá doutrinação se a intenção for a de que as crianças aceitam estas justificativas (ou qualquer outro conteúdo do tipo passível de doutrinação) passivamente, sem discussão, a despeito de qualquer outro tipo de consideração, ou argumentação, ou evidência.

E. Doutrinação e o Dilema da Educação

Em quinto lugar, a possibilidade de doutrinação faz com que aqueles que se preocupam com a educação, de seus filhos ou de seus alunos, se confrontem com um sério dilema, semelhante ao grande desafio a que fizemos menção no final da seção anterior. Este dilema, embora possa aparecer em qualquer área, aparece mais frequentemente naquelas áreas em que a evidência parece ser mais inconcludente mas em que, por ironia do destino, se encontram algumas das questões mais básicas e importantes com que tem que se defrontar o ser humano: a moralidade, a política, e a religião. Por um lado, acreditamos (por exemplo) ser necessário apresentar a nossos filhos e alunos o ponto de vista moral, o lado moral das coisas, para que venham a ser seres morais. Do outro lado, acreditamos que temos de evitar a doutrinação, se queremos realmente educar nossos filhos e alunos, isto é, se queremos que sejam indivíduos livres para pensar e escolher, liberdade esta que é pré-condição para que eles venham a ser seres morais. É diante desse dilema que os educadores terão que procurar as melhores maneiras de prosseguir, sabendo, de antemão, que a tarefa é dificílima e que muitos, antes deles, optaram, ou por não procurar oferecer nenhum ensino nessas áreas, ou, então, pela doutrinação como única outra alternativa viável. [E o exemplo?] É em confronto com este dilema que muitos têm optado pela alternativa da chamada “educação negativa”, que não é nem educação nem negativa, devendo, talvez, ser descrita como “não educação neutra”, por paradoxal que esta expressão também pareça: afirmam que o ensino da moralidade, da política, e da religião não deve ser ministrado até que a criança atinja maturidade suficiente para analisar a evidência e tirar suas próprias conclusões. Outros têm se desesperado e concluído que a única outra alternativa, apesar dos pesares, é doutrinar — estes são os doutrinadores contra sua própria vontade. Tanto os defensores da “educação negativa” como os que, contra a vontade, optam pela doutrinação, não veem uma terceira alternativa, não veem uma solução realmente educacional para o problema. Embora não afirmemos que esta solução seja fácil de alcançar, cremos que desenvolvimentos recentes, principalmente no campo da educação moral, têm nos indicado o caminho a seguir na direção de uma educação moral viável e digna do nome. Mas ainda há muito por fazer nesta área.

F. Porque a Doutrinação é Censurável e Indesejável

Em sexto e último lugar, gostaríamos de observar que, de tudo o que foi dito acerca da doutrinação, fica claro porque a doutrinação é indesejável e moralmente censurável. Quem doutrina não respeita a liberdade de pensamento e de escolha de seus alunos, procurando incutir crenças em suas mentes e não lhes dando condições de analisar e examinar a evidência, decidindo, então, por si próprios; quem doutrina desrespeita os cânones de racionalidade e objetividade, tratando questões abertas como se fossem fechadas, questões incertas como se fossem certas, enunciados falsos ou não demonstrados como verdadeiros como se fossem verdades acima de qualquer suspeita. É verdade que esta tomada de posição contra à doutrinação já implica, ao mesmo tempo, um comprometimento com certos valores e ideais básicos, como o da liberdade de pensamento e de escolha dos alunos (e de qualquer pessoa), o da racionalidade, etc. É importante que se reconheça isto para que não se incorra no erro de pensar que a adoção desses valores e ideais não precisa ser defensável, e, mais que isto, defendida, através da argumentação. Argumentos contra a adoção desses valores e ideais precisam ser cuidadosamente analisados para que, ao propor a tese da indesejabilidade e falta de apoio moral da doutrinação, não o façamos de modo a imitar os doutrinadores, isto é, tratando como fechada uma questão que é realmente aberta. Cremos não ser esta a ocasião de fazer esta defesa dos valores e ideais da liberdade de pensamento e escolha, nem da racionalidade. Mas isto não significa que estes valores e ideais não precisem ser defendidos.

Com estas observações concluímos esta seção sobre doutrinação. Cremos que a análise desse conceito, além de valiosa em si mesma, nos ajuda a compreender melhor, por contraste, o que seja a educação. Uma análise mais completa deveria incluir um exame das semelhanças e diferenças existentes entre doutrinação, treinamento, condicionamento, lavagem cerebral, etc. Há importantes diferenças, bem como semelhanças, entre estes conceitos. Isto, porém, precisará ficar para um outro trabalho.

VI. Observações Finais: Filosofia da Educação e Teoria Educacional

Cremos ter dado respostas a algumas das perguntas formuladas no final de nossa primeira seção acerca do relacionamento existente entre o conceito de educação e os conceitos de ensino e aprendizagem, bem como entre educação e valores, educação e cultura, etc. Nossas respostas, reconhecidamente em forma de esboço, são, na verdade, bastante pessoais. É possível e provável que muitos discordem delas. Cremos, contudo, que elas fazem sentido, são justificáveis, e nos ajudam a “colocar a cabeça em ordem” em relação a essas noções. Dada a importância que atribuímos ao conceito de doutrinação, resolvemos dedicar a este conceito uma seção em separado, pois quer nos parecer que a análise desse conceito nos ajuda a compreender melhor, por contraste, o conceito de educação.

A muitos pode parecer que o tipo de investigação que caracterizamos na primeira seção deste trabalho e ilustramos nas outras quatro, embora de alguma utilidade e de algum interesse, não seja de grande importância. Mais importante do que a tarefa “clarificatória” que a filosofia pode desenvolver, diriam, é sua tarefa “normativa”, à qual ela não se deve furtar: a filosofia deve contribuir — continuariam — para que as grandes e pequenas decisões que diariamente precisam ser tomadas na área da educação sejam tomadas de maneira a evidenciar sabedoria, e não apenas clareza de pensamento. À filosofia da educação competiria, pois, segundo muitos, investigar a questão dos objetivos específicos da educação, propondo metas a serem atingidas e valores a serem promovidos.

Concordamos, em grande parte, com o espírito dessas observações. Achamos que clareza em nossos conceitos e acerca de nossas pressuposições básicas não é tudo, não é condição suficiente para a sabedoria de nossas decisões, dos alvos que propomos, a nós mesmos e aos outros, dos valores que adotamos e que desejamos que os outros também cultivem. Contudo, estamos certos de que esta clareza seja condição necessária para esta sabedoria. Embora alguém possa ter clareza quanto às suas concepções, sem ser sábio, ninguém consegue ser sábio sem antes adquirir clareza acerca das convicções mantidas por ele próprio e por outros.

Quer nos parecer, portanto, que a tarefa do educador, e quiçá do filósofo da educação, não termine com a análise e clarificação dos conceitos educacionais básicos e das pressuposições que sustentam a atividade educacional. A tarefa clarificatória da filosofia é apenas um preâmbulo à tarefa mais normativa de examinar, questionar, e propor objetivos e valores. O filósofo, porém, não detém o monopólio destas últimas questões. No que diz respeito aos objetivos e valores que devem nortear a vida, e, consequentemente, o processo educacional, o filósofo, como qualquer outra pessoa, estará sempre buscando, procurando, pois na área de valores e objetivos de vida não há peritos e profissionais: cada um, em última instância, tem que escolher os seus valores básicos e os objetivos que deverão nortear sua vida. Não há como abrir mão dessa tarefa solicitando a um filósofo (ou a seja lá quem for) que faça isto por nós, sem abrirmos mão de nossa autonomia, e, em última instância, de nós mesmos.

À filosofia da educação como aqui caracterizada deve, portanto, seguir uma teoria da educação que tenha como principal tarefa o exame dos princípios básicos, objetivos, valores, etc., que prevalecem em nossa cultura e que norteiam, atualmente, a educação em nosso país, a reflexão crítica sobre eles e sobre a realidade social, econômica e cultural que envolve o processo educacional, e, se necessário for (e quase sempre o é), a proposta de novos princípios básicos, objetivos e valores para a nossa cultura e para a nossa educação. À teoria da educação compete, portanto, a tarefa normativa a que fizemos referência, e para se desincumbir desta tarefa a teoria da educação deve recorrer não só à filosofia da educação, mas também à sociologia da educação, à psicologia da educação, à economia da educação, à medicina preventiva e social, etc. — ou, para encurtar, a qualquer ramo do saber que possa contribuir alguma coisa, nunca se esquecendo de incluir na mistura uma boa dose de bom senso.

Para muitos, o que acabamos de caracterizar como sendo a tarefa da teoria da educação nada mais é do que a real tarefa da filosofia da educação. Não temos o menor interesse em discutir rótulos, pois a discussão seria meramente acadêmica. Quer nos parecer, porém, que a bem da clareza, seja recomendável e de bom alvitre estabelecer uma distinção entre a filosofia da educação e a teoria educacional, pelas seguintes razões.

(a) A filosofia da educação, como aqui caracterizada, é uma atividade reflexiva de segunda ordem, que tem como objeto as reflexões de primeira ordem feitas sobre os vários aspectos do processo educacional; a teoria educacional é uma atividade reflexiva de primeira ordem, no nosso entender, que tem por objeto básico a realidade educacional e não reflexões que tenham sido feitas sobre esta realidade; estas reflexões servirão de subsídios ao teórico da educação para que este elabore suas próprias conclusões, mas ele tem, basicamente, que “debruçar-se sobre a realidade educacional”, para entendê-la, explicá-la, criticá-la e propor sua reformulação.

(b) Na medida em que a teoria educacional tem que se valer das contribuições das várias ciências que estudam a educação, ela extrapola os domínios da filosofia e, consequentemente, da filosofia da educação. A filosofia da educação, como aqui concebida, deveria ser vista, como observamos, como um prolegomenon, um preâmbulo à teoria educacional, cuja tarefa principal seria fornecer ao teórico da educação os instrumentos conceituais básicos para a sua teoria.

(c) A teoria educacional, embora possa (e talvez deva) ser considerada científica, tem uma finalidade que vai além da mera explicação e interpretação da realidade educacional: ela procura orientar e guiar a prática educacional. É por isso que a teoria da educação, além de estudar e examinar a realidade educacional, tem a função de criticar esta realidade e de propor novas direções a seguir. A teoria da educação, para usar uma expressão que se torna comum, não tem como tarefa simplesmente constatar qual é a realidade educacional: ela vai além e contesta esta realidade, não em função de um espírito puramente negativista, mas em função de uma proposta de realidade diferente. E esta proposta envolve, inevitavelmente, valores diferentes. Portanto, a teoria educacional, em sua tarefa de orientar e guiar a prática educacional, envolve, necessariamente, um ingrediente de valores.

O presente trabalho, dentro de seus limites, procurou, entre outras coisas, apresentar os rudimentos de um preâmbulo à teoria educacional, fazendo, no processo, um primeiro ensaio em direção a uma demarcação entre filosofia da educação e teoria educacional.

Notas

[1]      Dada a finalidade precípua do presente trabalho, a saber, introduzir o leitor a uma certa visão da natureza e tarefa da filosofia da educação, preferimos não atravancar o texto com citações, ou referências a autores, vivos ou mortos. Se este trabalho possui alguns méritos, certamente a originalidade nas ideias apresentadas não será um deles. Um exame, ainda que rápido, das poucas obras incluídas na sugestão de Leituras Complementares comprovará isto. Os defensores e proponentes das várias posições analisadas e discutidas no corpo do trabalho poderão ser identificados por qualquer um que esteja familiarizado com a literatura educacional.

[2]      Isto mostra que a reflexão filosófica é, de certa maneira, parasítica: ela precisa de outros tipos de reflexão para existir. Esta constatação, por sua vez, significa que, se todas as pessoas do mundo, exceto os filósofos, fossem mudas, e, portanto, incapazes de comunicar suas reflexões, os filósofos teriam, obrigatoriamente, que refletir (filosoficamente) somente suas próprias reflexões (não-filosóficas), ou então deixar de filosofar, a menos que algum filósofo engenhoso concluísse que a tarefa da filosofia, então, devesse ser refletir sobre o silêncio…

[3]      Procuraremos, no decorrer do trabalho, dar uma resposta a cada uma dessas perguntas. Elas serão respondidas, porém, em ordem inversa à de sua formulação aqui.

[4]      É importante ressaltar que quando se fala em conteúdo não se tem em mente apenas conteúdos estritamente intelectuais ou cognitivos. Na terceira parte do trabalho a noção de conteúdo será discutida mais detalhadamente, ainda que de maneira breve.

[5]      Parece irrelevante a esta questão, mas certamente é relevante à questão correlata, a saber: Pode haver aprendizagem sem que haja ensino?

[6]      Uma outra decorrência estranha e até divertida desse ponto de vista é a seguinte: somente poderemos afirmar que alguém esteve realmente ensinando depois de testar seus alunos para verificar se de fato aprenderam o que se ensinou. Mas a que momento se faz esta verificação da aprendizagem? Logo após a aula? No dia seguinte? Uma semana depois? Ao final do semestre? E o que dizer quando alguns alunos aprendem mas outros não: houve ensino ou não, nesse caso? E o que acontece quando os alunos aprendem, mas retêm o que aprenderam apenas por um período relativamente curto? Diremos, então, que o professor havia aparentemente ensinado, mas que após algum tempo se verificou que de fato não ensinou? Um outro problema, agora de natureza prática, e somente para levar as consequências ao absurdo: Quando uma instituição contrata alguém para ensinar, deve esperar até após os exames finais dos seus alunos para determinar se o indivíduo cumpriu com suas obrigações contratuais (isto é, para verificar se ele de fato ensinou), e só então (em caso positivo) pagar o seu salário? É verdade que neste nosso Brasil há algumas instituições de ensino que somente renovam o contrato de um professor se ele aprovar os seus alunos (tenham eles aprendido ou não). Talvez a estas instituições se deva sugerir a adoção do ponto de vista em discussão: só renovar o contrato do professor se ele realmente ensinou, isto é, se seus alunos de fato aprenderam…

[7]      Não dizemos, simplesmente, que as duas perguntas são idênticas, porque estamos procurando mostrar que a intenção de produzir a aprendizagem é condição necessária para o ensino, e não que seja condição necessária e suficiente. Pode haver outras condições igualmente necessárias, o que faz com que a presença da intenção em questão não implique, necessariamente, a existência de ensino.

[8]      Uma ação de verdade, parece ser constituída de movimentos físicos mais intenções. Quando alguém pisca ou tosse, involuntariamente (isto é, não intencionalmente), não está realizando uma ação, embora esteja realizando certos movimentos físicos. Se a a piscada ou a tosse forem intencionais, porém, a situação muda de figura. A pessoa que pisca para chamar a atenção de alguém, ou que tosse para advertir alguém de algum perigo, está realizando uma ação.

[9]      Não dizemos que no segundo “houve” ensino, mas, isto sim, que “pode ter havido”, em virtude daquilo que observamos na Nota nº 7: estamos procurando mostrar que a presença da intenção de produzir a aprendizagem é condição necessária para a existência de ensino, mas não que seja também condição suficiente. Se o fosse, estaríamos inclinados a dizer que houve ensino no segundo caso, e não, simplesmente, que pode ter havido. No primeiro caso, porém, estamos propensos a admitir que não houve ensino (e, não meramente, que pode não ter havido), porque dificilmente se poderá constatar a presença da condição necessária em pauta naquela situação.

[10]     Vida a Nota anterior, bem como a Nota nº 7, para a explicação da expressão “pode estar havendo ensino”.

[11]     O argumento a ser apresentado no presente parágrafo é frequentemente utilizado por pessoas que se opõem ao ponto de vista que vamos defender. Embora haja muitos pontos aceitáveis nesse argumento, nós, obviamente, não o endossamos, na íntegra, como se verá nos parágrafos seguintes.

[12]     Em outras palavras, vamos examinar a suposta necessidade lógica (isto é, decorrente do próprio conceito de aprendizagem) de que toda aprendizagem seja autoaprendizagem.

[13]     Ao discutir o conceito de educação não nos será possível responder a todas as questões levantadas no início deste trabalho, como, por exemplo, acerca da relação entre educação e conhecimento, educação e democracia, educação e as chamadas potencialidades do indivíduo, educação e profissionalização, etc. Isto terá que ficar para um outro trabalho.

[14]     É esse vínculo empírico ou conceitual?

[15]     Isso parece sugerir que o vínculo é conceitual

[16]     A necessidade dessa suposição se faz sentir em função do fato de na doutrinação não existir a limitação de que os conteúdos sejam considerados valiosos: eles podem, mas não precisam, ser considerados valiosos.

Leituras Complementares

Hirst, P. H. e Peters, R. S., A Lógica da Educação. Tradução do Inglês de Edmond Jorge. Rio de Janeiro, Zahar, 1972.

Scheffler, Israel, A Linguagem da Educação. Tradução do Inglês de Balthazar Barbosa Filho. São Paulo, Editora da Universidade de São Paulo, 1974.

Snook, I. A., Doutrinação e Educação. Tradução do Inglês de Edmond Jorge. Rio de Janeiro, Zahar, 1974.

Transcrito aqui em São Paulo, 26 de Janeiro de 2016

Cutucando ainda mais o Paradigma…

Artigo número 10, escrito por Eduardo Chaves em 12/5/2011, e publicado originalmente no site das Editoras Ática e Scipione em 23/5/2011.

No último artigo prometi falar sobre Ivan Illich neste. Cumpro aqui a promessa. Mas não vou falar só dele. Vou colocá-lo no contexto do último artigo, o nono.

No artigo anterior (Cutucando o Paradigma…), apresentei o artigo de Bruce Dixon e Susan Einhorn que tem o título de O Direito de Aprender. Nele os autores reconhecem e defendem o direito de aprender da pessoa humana e expressam preocupação de que a escola possa se tornar uma barreira para o pleno exercício desse direito, em vez de ser, como seria lícito esperar, uma via para a sua fruição. O artigo foi escrito recentemente – na verdade, neste ano de 2011.

Quarenta anos antes, em 1971, Ivan Illich, um sacerdote católico nascido em 1926 na Áustria, mas radicado em Cuernavaca, no México, onde dirigia o Centro Intercultural de Documentación (CIDOC), criado por ele próprio em 1961, publicou seu livro mais conhecido: Deschooling Society, traduzido para o Português como Sociedade Sem Escolas (a tradução literal do título do livro seria, naturalmente, Desescolarização da Sociedade). No Prefácio do livro ele expressa sua convicção de que “para a maioria das pessoas o direito de aprender é limitado e restringido pelo dever de frequentar a escola”. Ou seja: a escolarização obrigatória é, para a maioria das pessoas, um impedimento para o pleno exercício de seu direito de aprender (não uma forma de viabilizá-lo). Ou, ainda em outras palavras: mais escola não implica mais aprendizagem: pelo contrário. Illich morreu em 2002, na Alemanha. Para sua breve biografia, ver

http://en.wikipedia.org/wiki/Ivan_Illich.

[Estou usando o texto em Inglês de Deschooling Society, e as traduções para o Português são minhas].

Ainda no Prefácio do livro Illich admite que, por muito tempo, acreditou, como a maioria das pessoas, que obrigar todas as pessoas a frequentar a escola era algo bom. Quem o convenceu do contrário foi Everett Reimer, um autor que alcançou certa notoriedade nos anos 70 com seu livro School is Dead (A Escola Está Morta), publicado também em 1971. Reimer faleceu em 1998. Para sua sucinta biografia, ver

http://en.wikipedia.org/wiki/Everett_Reimer.

Illich toma o cuidado de dizer que a escolaridade obrigatória conspira contra o direito de aprender “para a maioria das pessoas”. Essa ressalva deixa a porta aberta para o reconhecimento do fato de que algumas pessoas têm uma experiência positiva na escola e de fato aprendem coisas importantes nela. Mas isso, para ele, é a exceção, não a regra.

A minha opinião (não a opinião de Illich, neste caso) é de que as pessoas que tiveram uma experiência positiva de aprendizagem na escola a tiveram porque foram afortunadas de encontrar, na escola, professores que, além de professores, eram pessoas excepcionais, que acabaram por fazer uma diferença na vida de seus alunos. O fato de que essas pessoas foram encontradas na escola é, em grande medida, fruto do acaso, e representa a exceção, não a regra. O mais comum é que esses contatos significativos aconteçam fora da escola: um pai, um avô, um tio, um pastor, um amigo… A revista Seleções do Reader’s Digest (http://www.selecoes.com.br/) costumava ter uma seção chamada “Meu Tipo Inesquecível” destinada a permitir que as pessoas registrassem experiências com essas pessoas especiais – que raramente eram professores.

A pequena passagem a seguir transcrita, de John Steinbeck, o grande escritor americano, Prêmio Nobel da Literatura de 1962, aborda a questão:

“É comum que adultos se esqueçam de quão difícil, chata e interminável é a escola. (…) A escola não é coisa fácil e, a maior parte do tempo, não é nada divertida. Contudo, se você tem sorte, pode ser que encontre ali um grande professor. Professores verdadeiros, com a melhor das sortes, você vai encontrar no máximo uns três durante a vida. Acredito que um grande professor é como um grande artista: há poucos deles, como há poucos grandes artistas. . . . Os meus três tinham estas coisas em comum: (a) todos eles amavam o que estavam fazendo; (b) eles não nos diziam o que saber, mas catalisavam em nós um desejo fervente de aprender; (c) e, sob sua influência, os horizontes de repente se abriam, o medo ia embora e o desconhecido se tornava conquistável. Resumindo, por sua influência a verdade, essa coisa perigosa, se tornava bela e muito preciosa”. (Ênfase acrescentada. Infelizmente, não consegui traçar a referência dessa citação, que me foi passada pela Profa. Maria Eugênia Castanho da Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica de Campinas – PUCCAMP. Nem mesmo ela dispõe, atualmente, da referência. Não excluo de todo a possibilidade de que o texto não seja dele.)

Esses professores especiais – e eu tive minha cota deles – em regra não fizeram diferença em nossa vida pelo que falaram (ensinaram) ou fizeram em sala de aula, mas, sim, por serem as pessoas que eram.

Michael Hammer, em seu livro Beyond Reengineering (1996), caracterizou a educação como “aquilo que permanece conosco depois que nos esquecemos do que nos foi ensinado”. Se não formos afortunados de encontrar na escola nenhum dos professores especiais de que fala Steinbeck, podemos muito bem passar pela escola sem nela obter educação alguma… Educar, como disse alguém, é algo semelhante a acender uma vela, não algo como encher um balde…

Mas voltemos a Illich.

Se desescolarizarmos a sociedade, se acabarmos com a escola (pelo menos com a escola obrigatória), não teremos nem mesmo a oportunidade de aprender por encontros com as pessoas especiais que às vezes encontramos na escola. Neste caso, como aprenderemos?

A resposta de Illich é surpreendente, em especial diante do fato de que foi dada em 1971, cerca de apenas um ano após a Internet ter sido criada em universidades americanas, com recursos fornecidos pelas Forças Armadas daquele país – e mais de trinta anos antes de a Internet haver saído do gueto acadêmico-universitário e ter se tornado popular (algo que se deu nos Estados Unidos por volta de 1993 e no Brasil cerca de dois anos depois). Illich diz que devemos aprender através de redes – “teias educacionais” (educational webs), ele as chama – que nos proporcionariam, a cada um de nós, a oportunidade “de transformar cada momento de nossa vida em um momento de compartilhamento, de preocupação e cuidado com o outro, de aprendizagem, enfim” (Prefácio).

É interessante que, ao fazer referência a pessoas que o influenciaram, Illich inclua Paulo Freire, que havia publicado Pedagogia do Oprimido no ano anterior (1970) àquele em que Illich publicou o seu livro. Paulo Freire diz, nessa sua obra maior: “Ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo”. Essa é uma das passagens mais radicais de nosso grande educador, cujo retorno definitivo ao Brasil, em Junho de 1980, para trabalhar na Faculdade de Educação da UNICAMP, eu tive a satisfação de ajudar a viabilizar, quando era Diretor da Faculdade de Educação daquela universidade (cargo que exerci de Abril de 1980 a Abril de 1984). Nessa passagem Freire enfatiza que nossa educação é “mediatizada pelo mundo” – não pela escola – e se dá num processo de “comunhão”, em que nos educamos uns aos outros – sem qualquer referência a professores…

O texto completo de Pedagogia do Oprimido, em formato pdf, pode ser encontrado em:

http://portal.mda.gov.br/portal/saf/arquivos/view/ater/livros/Pedagogia_do_Oprimido.pdf.

Um breve relato do retorno definitivo de Freire ao Brasil em Junho de 1986 pode ser encontrado em:

http://www.projetomemoria.art.br/PauloFreire/biografia/06_biografia_reaprendendo_o_brasil.html.

O primeiro capítulo de Deschooling Society começa com a seguinte passagem lapidar:

“Muitos alunos, especialmente aqueles que são pobres, intuitivamente têm conhecimento daquilo que a escola faz a eles: a escola os leva a confundir processo com substância, . . . ensino com aprendizagem, progressão de uma série para a outra com desenvolvimento na educação, diploma com competência e fluência com a habilidade de dizer algo novo. Sua imaginação, uma vez ‘escolarizada’, é levada a aceitar serviço em vez de valor.”

 Mais adiante, no mesmo capítulo, Illich observa:

 “A mera existência da escola desencoraja os pobres de assumir controle de seu próprio aprendizado. No mundo inteiro a escola tem um efeito sobre a sociedade que contraria os interesses da educação. A escola é reconhecida como instituição que se especializa em prover educação para as pessoas. Quando ela não faz isso, esse fato é percebido, pela maioria das pessoas, não como fracasso da escola, mas como prova de que a educação é um processo muito oneroso, muito complexo, sempre arcano, e, frequentemente, uma tarefa quase impossível”.

 Acrescento: que requer mais investimento, salários mais altos para os professores, melhores condições de trabalho… Por mais que invistam na educação, os governos são acusados de ter descaso com a educação, de estar sucateando a escola…

 Diz Illich, mais adiante:

 “O paradoxo das escolas é evidente: quando mais se investe nelas, mais destrutivas elas se tornam.  . . .   A escalada das escolas é tão destrutiva quanto a escalada das armas, mas é menos visível. A equalização de oportunidades educacionais é um objetivo desejável e alcançável, mas é absurdo considerar esse objetivo equivalente à meta de escolarização obrigatória universal. Confundir esses dois é a mesma coisa que confundir a salvação com a igreja”.

Na sequência, Illich nos dá o seu entendimento da aprendizagem:

“Aprender é adquirir uma nova habilidade ou uma nova forma de ver o mundo”.

Ele continua dizendo que é inadmissível considerar aprendizagem e escolarização como equivalentes, e que o importante é desenvolver competências, não passar pelo currículo prescrito pela escola. Ele sugere que deveria haver leis proibindo discriminação das pessoas com base em sua escolaridade, da mesma forma que há leis proibindo discriminação das pessoas com base em suas convicções políticas e religiosas, ou em sua linhagem, ou em seus hábitos sexuais, ou em sua raça ou etnia.

“É uma ilusão – e essa ilusão está na base do sistema escolar – que a maior parte da aprendizagem seja o resultado do ensino.   . . .   A maior parte das pessoas adquire a maior parte de suas habilidades e de seus conhecimentos fora da escola e, quando alguma aprendizagem tem lugar na escola, a isso se dá apenas porque, em alguns países ricos, a escola se tornou um local de confinamento obrigatório dos alunos por períodos cada vez maiores de suas vidas. A maior parte do aprendizado ocorre casualmente, e mesmo a maior parte da aprendizagem intencional, não é decorrente de instrução planejada. Crianças normais aprendem sua primeira língua casualmente, embora o façam mais rapidamente se seus pais lhe dão a atenção devida. A maior parte das pessoas que aprendem bem uma segunda língua o faz em decorrência de uma série de circunstâncias às vezes insólita, não através de ensino sequencial: elas vão viver com seus avós, que falam a língua, ou se apaixonam por um estrangeiro, por exemplo. Fluência em leitura também é, a maior parte do tempo, o resultado de atividades extracurriculares. As pessoas que leem bastante, e bem, e com prazer, apenas acreditam que adquiriram o hábito e a competência na escola, mas, se interrogados, a maior parte acaba admitindo influências extraescolares. A aprendizagem em geral ocorre casualmente como subproduto de alguma atividade geralmente classificável como lazer ou trabalho. . . . Só se aprende em decorrência de instrução quando se está altamente motivado para adquirir uma habilidade nova, específica e complexa. Às vezes o desenvolvimento de uma habilidade depende do domínio prévio de outra habilidade – mas não requer que ela tenha sido desenvolvida por um processo especificado”.

Aos poucos Illich fornece mais detalhes sobre seu ponto de vista, ainda no primeiro capítulo:

“Aprendizagem criativa e exploratória requer que pares (peers) estejam naquele momento encafifados com algum problema ou alguma questão. [Para que isso se concretize, é preciso reunir pessoas com interesses afins.] As pessoas poderiam, a qualquer momento, e por um preço mínimo, se identificar em um computador, fornecendo seu endereço e número de telefone, e indicando quais as coisas (livros, artigos, filmes, gravações) para as quais gostariam de ter parceiros de discussão. Em poucos dias, receberiam pelo correio uma listagem com os nomes, endereços e telefones de pessoas com os mesmos interesses. Isso lhes permitiria contatar os possíveis parceiros, agendar uma reunião, conversar e discutir com elas. Não é preciso que essas pessoas se conheçam previamente. A única exigência é que estejam, todas, interessadas em discutir o mesmo assunto”.

Essa é a rede, a “teia educacional” que Illich imaginava em 1971. O que ele não diria acerca do potencial para a aprendizagem de nossas redes sociais de hoje? De Facebook, por exemplo.

Partidos políticos, igrejas, sindicatos, clubes, centros comunitários e sociedades profissionais, continua Illich, também poderiam reunir pessoas com interesses afins desejosas de encontrar parceiros de discussão. Dessa forma a aprendizagem teria lugar num contexto libertário, democrático, não autoritário – e a sociedade iria se desescolarizando e se tornando mais educacional…

A educação para todos”, afirma Illich ao chegar próximo do final do primeiro capítulo, “é, necessariamente, a educação por todos”.

Continuarei a apresentar e comentar as ideias propostas por Illich no próximo capítulo.

Mas minha apresentação e meus comentários não são discussão… Se você acha essas ideias dignas de discussão, vamos discuti-las aqui neste blog. Não hesite em deixar uma resposta, concordando com elas ou delas discordando. Vamos criticar as propostas de Illich, que em 2011 completam quarenta anos, não simplesmente ignorá-las, como se apenas uma mente desvairada ou mal-intencionada pudesse tê-las gerado. A escola que temos é uma instituição humana, criada por nós para determinados fins. Não é uma instituição sacrossanta. Não é heresia discutir se ela é ou não necessária, especialmente na era da comunicação intensiva propiciada pelas redes sociais. Não é porque somos professores e trabalhamos em escolas que a discussão crítica do ofício do mestre e da função da escola como ambiente de aprendizagem estará vedada. Não adiante rotular de crítica a nossa postura ou abordagem se nos negamos a discutir o que fazemos, como, onde e por que o fazemos.

Prometo comentar o que você disser, elogio ou crítica. Vamos fazer deste espaço virtual uma verdadeira “teia educacional”, como a imaginou Illich, para discutir questões básicas acerca da educação e da aprendizagem – e do papel da escola e do professor nelas. Vamos usar as redes sociais de hoje para aprender. Para, quem sabe, criar coragem para desafiar o paradigma…

São Paulo, 12 de Maio de 2011

Transcrito aqui em Salto, 3 de Janeiro de 2016

Cutucando o Paradigma…

Artigo número 9, escrito por Eduardo Chaves em 5/5/2011, e publicado originalmente no site das Editoras Ática e Scipione em 16/5/2011.

Neste meu nono artigo no blog vou dialogar, de forma talvez um pouco provocadora, com três artigos que me vieram parar nas mãos nos últimos dias. Há, a meu ver, um tema comum a perpassar os três. E esse tema me faz lembrar de Ivan Illich e A Sociedade Sem Escolas (1971 – a tradução literal do título do livro de Ivan Illich seria A Desescolarização da Sociedade)… E me sugere algo do tipo: “The school is dead! Long live learning”.

(O artigo é longo. Deixo-o assim porque o assunto merece. Mas se você é daqueles que acha que a escola uma instituição “imexível”, tome uma maracujina antes de continuar.)

o O o

O primeiro dos três artigos é um instigante texto de Rosa María Torres, educadora equatoriana, diretora do Instituto Fronesis (vide http://www.fronesis.org/). O artigo tem o título de (traduzindo do correspondente em Inglês) “Aprendizagem ao Longo da Vida: indo além de Educação para Todos” e foi apresentado primeiro como conferência principal no Fórum Internacional sobre Aprendizagem ao Longo da Vida que se realizou em Shanghai, na China, de 19-21 de Maio de 2010. (O texto do artigo de Rosa María Torres e as demais contribuições ao Fórum podem ser encontrados em:
http://unesdoc.unesco.org/images/0019/001920/192081e.pdf).

O texto discute sutis diferenças de ênfase entre dois movimentos iniciados pela UNESCO nos últimos anos, Educação para Todos e Aprendizagem ao Longo da Vida.

Educação para Todos foi (na verdade, ainda é) um movimento iniciado pela UNESCO em 1990, na Conferência Mundial da Educação de Jomtien, na Tailândia. Nessa Conferência, participantes de 155 países e 150 organizações aprovaram a Declaração Mundial sobre Educação para Todos, em que se comprometiam a buscar a meta de, nos dez anos seguintes (até no ano 2000, portanto), oferecer educação básica para todas as crianças, jovens e adultos do planeta – e ter a oferta aceita.

Vide os sites da UNESCO:

http://www.unesco.org/education/efa/ed_for_all/,

sobre o movimento, e

http://www.unesco.org/education/efa/ed_for_all/background/jomtien_declaration.shtml

sobre a declaração.

O movimento Educação para Todos alcançou sua culminância no Forum Mundial da Educação que teve lugar em Dakar, no Senegal, dez anos depois, no ano 2000. Esse fórum também aprovou um documento, a Estrutura para Ação de Dakar: Como Implementar o Nosso Compromisso Coletivo com a Educação para Todos.

Vide os sites da UNESCO:

http://www.unesco.org/education/efa/wef_2000/index.shtml,

sobre o fórum, e

http://www.unesco.org/education/efa/ed_for_all/dakfram_eng.shtml

sobre o documento.

(É bom registrar, em parênteses, que, quando esses documentos falam em educação, eles têm em vista a educação básica formal, isto é, a educação básica oferecida em escolas. A Constituição Federal Brasileira de 1988 define educação básica de modo a incluir a educação infantil, a educação fundamental e a educação de nível médio. Ela cobre, portanto, cerca de 14 anos da vida da pessoa: digamos que dos quatro aos dezessete anos, se atribuirmos apenas dois anos à educação infantil. Aqui entre nós, quatorze anos é duração de pena para crime razoavelmente sério… É mais do que o dobro da pena mínima para homicídio simples, que tem pena de reclusão de 6 a 20 anos, por exemplo. Fim do parêntese).

O documento de Dakar, de 2000, constata que houve progresso na década anterior em direção ao objetivo maior de propiciar educação básica para todos, mas que o objetivo ainda estava longe de ser alcançado. Metas bem mais modestas, mas mais realistas, foram então propostas – o prazo também sendo estendido para o ano 2015 (porque o prazo anterior estava esgotado).

Entre essas metas estavam:

  1. Expandir e aprimorar o cuidado e a educação de crianças pequenas, “em especial as mais vulneráveis”;
  1. Garantir que todas as crianças, “especialmente as meninas, as crianças em circunstâncias difíceis e as crianças pertencentes a minorias étnicas”, tenham acesso a “educação primária” de boa qualidade, gratuita e compulsória;
  1. Garantir que as necessidades de aprendizagem de jovens e adultos sejam atendidas através de programas apropriados, voltados para o desenvolvimento das habilidades requeridas para a aprendizagem e para a vida;
  1. Alcançar melhoria de 50% nos níveis de alfabetização de adultos, “especialmente para as mulheres”;
  1. Reduzir disparidades entre a educação primária e secundária oferecida a pessoas de um sexo e de outro (neste caso até 2005) e totalmente eliminar essas disparidades até 2015;
  1. Disponibilizar programas de educação básica e educação continuada para todos os adultos.

Novamente entre parênteses, no Brasil a campanha Todos pela Educação (vide http://www.todospelaeducacao.org.br/) propõe que lutemos para alcançar as seguintes metas (relativamente modestas) até o ano 2022:

  1. Toda criança e jovem de 4 a 17 anos na escola;
  1. Toda criança plenamente alfabetizada até os 8 anos (i.e., ao começar o seu quarto ano na Educação Fundamental);
  1. Todo aluno tendo aprendizado adequado à sua série;
  1. Todo jovem concluindo a Educação de Nível Médio até os 19 anos;
  1. O investimento em educação sendo ampliado e bem gerido.

Voltando ao artigo de Rosa María Torres, mais recentemente a UNESCO propôs a discussão do tema Aprendizagem ao Longo da Vida (vide http://www.uil.unesco.org/), que, segundo a autora, introduz sutis diferenças nas questões propostas até então.

Em primeiro lugar, fala-se agora em aprendizagem, não em educação. Com isso parece que a importância da distinção entre aprendizagem formal (escolar) e aprendizagem não-formal (não-escolar) é reduzida, pois se trata, em ambos os casos, igualmente de aprendizagem. Assim, a escola deixa de ser o foco exclusivo de atenção, pois se reconhece o papel, na aprendizagem, também da família, da comunidade, dos meios de comunicação e acesso à informação, da vida profissional, e das atividades culturais e de lazer, viabilizadas ou não pela tecnologia – como bem já o colocava Jacques Delors, no Prefácio de 1996 ao relatório publicado no Brasil como Educação: Um Tesouro a Descobrir (http://unesdoc.unesco.org/images/0010/001095/109590por.pdf).

(Mais algumas observações entre parênteses. É curioso que, em sua edição original em Inglês, o relatório da Comissão de Jacques Delors tem o título de Learning: The Treasure Withinhttp://unesdoc.unesco.org/images/0010/001095/109590eo.pdf. Por que os tradutores brasileiros substituíram “Learning”, que deve ser traduzido como “Aprendizagem”, por “Educação” é algo sobre que só se pode especular – especialmente porque “Aprendizagem” é uma palavra acima de qualquer suspeita. Outra mudança sutil é a tradução de “Within”, “Dentro”, por “A Descobrir”. Um tesouro a descobrir sugere algo que está fora da pessoa e que ela pode encontrar, como numa caça ao tesouro. Um tesouro dentro sugere que o tesouro está dentro da pessoa e precisa ser buscado ali… Por fim, os tradutores traduziram “The Treasure”, “O Tesouro”, por “Um Tesouro”… Durma-se com um barulho desses.)

Em segundo lugar, na argumentação de Rosa María Torres, enfatiza-se agora o fato de que a aprendizagem tem lugar ao longo da vida toda, desde o nascimento da pessoa até a sua morte. Com isso parece que a importância da aprendizagem que acontece na educação básica escolar é relativizada, passando a receber ênfase comparável à que é dada à educação de jovens e adultos, à educação técnica, tecnológica e profissional, ao que se chamava anteriormente de educação de adultos, às diversas formas de aprendizagem decorrentes de programas de educação continuada (mesmo os que têm lugar no contexto do trabalho), ao e-learning corporativo, e, por que não, até mesmo ao ensino superior (graduação e pós-graduação). Tudo isso está incluído em Aprendizagem ao Longo da Vida – e tudo isso está fora da educação básica oferecida pela escola.

Pessoalmente, considero essas mudanças sutis destacadas por Rosa María Torres um grande e bem-vindo avanço – mas esse avanço só torna as metas que a UNESCO se propõe alcançar ainda mais difíceis. (Tudo aquilo que, não sendo natural, como o ar que respiramos, é para todos, não resta dúvida que é difícil – em especial aprendizagem de qualidade para todos ao longo de toda a sua vida).

Isso quer dizer que, no Dia Mundial da Educação de 2011 celebrado em 28 de Abril passado, o grande desafio continuou sendo conseguir envolver a todos na luta pela educação para todos e na busca de uma aprendizagem que possa ser cultivada por cada e um e por todos ao longo de toda a sua vida.

E, naturalmente, conseguir que a qualidade da educação e das experiências de aprendizagem melhore em relação ao nível de qualidade alcançado hoje – que, convenhamos, é baixo.

o O o

O segundo artigo com o qual quero sucintamente dialogar é um white paper escrito por meu amigo Bruce Dixon, presidente da Anytime Anywhere Learning Foundation (AALF – http://www.aalf.org), com a cooperação de Susan Einhorn. O título do artigo é: O Direito de Aprender: Identificando Precedentes para Mudanças Sustentáveis. (O texto completo do artigo pode ser encontrado em http://thebigsummit.wordpress.com/the-right-to-learn/).

 Bruce Dixon resume a discussão realizada e as sugestões feitas na Reunião de Cúpula Global sobre Grandes Ideias 2010, que foi dedicada ao tema de Um Computador por Criança (não por Aluno). A reunião foi realizada em Portland, Maine, em Junho do ano passado, perto da residência de Seymour Papert, que foi o convidado de honra. Tive o privilégio de participar do evento e de revê-lo. (Maine foi escolhido para sediar a cúpula por ser o primeiro estado americano a colocar um computador nas mãos de cada aluno. O governador que tomou essa ousada decisão foi Angus Watkins, que, agora ex-governador, participou da reunião. Foi um prazer conhecê-lo.)

As principais sugestões feitas pelos participantes às autoridades responsáveis por políticas educacionais, ou a quem de direito, foram:

  1. Reconhecer o direito de aprender da pessoa humana, pois é aprendendo que ela se desenvolve;
  1. Permitir que as pessoas foquem sua aprendizagem em seus talentos e suas paixões;
  1. Garantir que os ambientes de aprendizagem orientem
    e apoiem os desejosos de aprender, expandindo suas oportunidades e não lhes criando barreiras artificiais;
  1. Usar a avaliação como parte natural do processo de desenvolvimento da pessoa, não como barreira;
  1. No caso da escola, focar a preparação de professores no seu papel de protetores e promotores desse direito essencial do ser humano.

Aqui, novamente, é preciso estar atento às ênfases, porque elas são sutis.

Primeiro, o direito que se proclama é o direito de aprender – não o direito à educação, vale dizer, o direito de frequentar a escola (que, na nossa legislação, é um direito que também é um dever – mais sobre isso, adiante).

Segundo, indica-se, no espírito das observações de Sir Ken Robinson sobre “O Elemento”, já discutidas por mim em dois artigos anteriores aqui (http://blog.aticascipione.com.br/eu-amo-educar/o-elemento/ e http://blog.aticascipione.com.br/eu-amo-educar/como-aplicar-o-elemento-a-aprendizagem-escolar/), que a aprendizagem que vale a pena é a que une os talentos e as paixões das pessoas.

Terceiro, sugere-se que a escola (o principal ambiente de aprendizagem reconhecido), longe de proteger e promover esse direito, concebido na forma indicada, tem construído barreiras artificiais ao seu exercício – como os currículos padronizados, “de tamanho único”, o foco nos conteúdos em vez de nas competências, o foco exclusivo no cognitivo em detrimento do não-cognitivo, as avaliações na forma de testes padronizados, os professores especialistas em conteúdo que raramente conhecem bem os fatos necessários acerca do desenvolvimento humano e da aprendizagem e raramente possuem as competências pessoais e interpessoais necessárias para atuar como protetores e promotores do direito de aprender das alunos e facilitadores do seu exercício.

Como se pode ver, o que aqui se propõe não é incompatível com as sutilezas que Rosa María Torres detecta na evolução das iniciativas da UNESCO. Pelo contrário: leva a discussão um passo adiante.

o O o

Finalmente, o terceiro artigo, uma matéria de Rosely Sayão na Folha de S. Paulo de 3 de Maio de 2011, com o título de Infância Roubada. (Os assinantes da Folha ou do portal UOL, que o hospeda, têm acesso ao  texto completo do artigo no site do jornal em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/equilibrio/eq0305201113.htm).

Destaco algumas passagens do texto da conhecida psicóloga:

“A criança deve ter o direito de ser criança enquanto pode. Deveríamos, todos, defender essa causa.”

“Temos nos ocupado tanto com o futuro das crianças que esquecemos que elas têm um presente que precisa ser vivenciado, explorado, vivido até as últimas consequências. Aliás, antes de tudo, vamos lembrar que a maneira como vivemos o presente ajuda a desenhar o traçado do futuro.”

“Será que, porque o destino da criança é crescer, precisamos fazer com que isso aconteça o mais rapidamente possível? Não faz o menor sentido pensar e agir assim. Seria a mesma coisa pensar que, já que vamos mesmo morrer, não faz o menor sentido viver, não é verdade?”

“Já não lembramos mais que a maioria dos adultos chegou onde chegou tendo vivido calmamente a sua infância, sem grandes preparações para o futuro. E isso faz com que a gente tente atropelar a infância de quem hoje é criança.”

Neil Postman já havia apontado alguns desses problemas, e ainda outros, em seu livro O Desaparecimento da Infância, de 1982. As crianças estão se tornando adultos precoces, porque as tratamos como se o fossem. Nós, os pais, damos-lhes demasiadas responsabilidades antes que elas estejam preparadas para assumi-las, discutimos com elas assuntos e problemas que elas não entendem direito e para os quais elas pouco podem contribuir – e o fazemos para lhes dar a impressão de que somos todos democraticamente iguais… Enchemos seu horário de compromissos (escola, curso de Inglês, de judô, de dança, de tênis de mesa, acampamentos, passeios programados…) de tal modo que elas precisam de uma agenda para coordená-los – e, quem sabe, um motorista, para atendê-los todos. Deixamos – ou mesmo incentivamos – que as meninas se vistam, se calcem, se pintem e se comportem como mulheres adultas… Resultado: nossas crianças passam pela vida como Dom Fulgêncio, o homem que não teve infância… O pior é que a infância suprimida às vezes aponta a sua cara quando elas já são adultas, o adulto infantil sendo, talvez, a contrapartida necessária, mas ridícula, da criança adulta…

o O o

Concluindo…

Preocupa-me a superescolarização da nossa sociedade. Preocupa-me a tendência de colocar a criança na escola o mais cedo possível (dois anos está se tornando padrão nas classes A-C), de aumentar o número de dias letivos no ano, de estender as horas em que as crianças são obrigadas a ficar na escola (até o dia todo, o famigerado, mas tão louvado “período integral”), de reduzir o tempo do recreio e as “janelas vagas” no horário das turmas, de pressionar o professor a não “desperdiçar” o tempo em sala de aula com conversa miúda com os alunos e tarefas burocráticas, de estender os anos ou as idades de escolaridade obrigatória (eram quatro, passaram a ser oito, depois nove, logo serão doze…).

A menos que a escola proporcione excepcionais experiências de aprendizagem (que a maioria das escolas hoje certamente não proporciona), precisamos reduzir a presença da escola na vida das crianças, precisamos reduzir o tempo em que as crianças ficam institucionalizadas (a sua “sentença”), permitindo que elas brinquem mais, desfrutem mais as alegrias da infância, vivam mais, aprendam mais, em contextos não-formais, como conseguir que seus talentos e suas paixões convirjam…

O que é que diz o poema Instantes, atribuído a Jorge Luís Borges? O autor está no fim da vida, com mais de oitenta anos, e reflete:

“Si pudiera vivir nuevamente mi vida,
en la próxima trataría de cometer más errores.
No intentaría ser tan perfecto, me relajaría más.
Sería más tonto de lo que he sido,
de hecho tomaría muy pocas cosas con seriedad.

.  .  .

Si pudiera volver a vivir,
comenzaría a andar descalzo a principios de la primavera
y seguiría descalzo hasta concluir el otoño;
daría más vueltas en calesita,
contemplaría más amaneceres, y jugaría con más niños…
si tuviera otra vez vida por delante.”

O poema Epitáfio, cantado pelos Titans, vai na mesma linha…

“Devia ter amado mais, ter chorado mais,
Ter visto o sol nascer…
Devia ter arriscado mais e até errado mais,
Ter feito o que eu queria fazer…

.  .  .

Devia ter complicado menos, trabalhado menos
Ter visto o sol se pôr…
Devia ter me importado menos com problemas pequenos
Ter morrido de amor…”

(Vide o texto completo dos dois poemas em meu blog pessoal: http://liberalspace.net/2008/07/25/instantes-e-epitafio/).

Mas a tônica dos dois poemas pode ser resumida na frase de Horácio: carpe diem, quam minimum credula postero – aproveite o dia de hoje, porque no futuro não se pode confiar…

Quando vamos aprender?

A inteligência, como disse um colega meu, professor de filosofia da PUC-SP, requer uma certa dose de ociosidade – vagabundagem, mesmo – para prosperar. A criatividade, como disse um jornalista famoso que trata de educação, requer liberdade e uma certa dose de indisciplina – anarquia e bagunça, mesmo – para prosperar.

O Senador Cristovam Buarque, com quem tive o privilégio de compartilhar uma mesa redonda no dia 3 de Maio último, no IPEA, em Brasília, em encontro promovido pela UNESCO sobre Educação e Desenvolvimento: Integrando Políticas (o programa do encontro estando disponível em http://www.unesco.org/new/fileadmin/MULTIMEDIA/FIELD/Brasilia/images/brz_ed_seminar_education_development_agenda_pt_2011-2.pdf), sugeriu que devemos parar de pensar em crescimento econômico e pensar em decrescimento econômico, vida mais simples e frugal, redução de consumo, redução de produção… Menos, neste caso, pode ser mais: menor crescimento econômico, maior qualidade de vida, no sentido que realmente importa. Mas, para o Senador, precisa haver mais escola e mais tempo na escola… 😦

Será que, nesse espírito, seria uma heresia muito grande se eu propuser menos escola? Menos escola, e mais qualidade de vida, mais brincadeira, mais ociosidade, e mais aprendizagem, no sentido que realmente importa, que envolve mais inteligência e mais criatividade?

Ou será que o Senador e eu somos, cada um a seu modo, sonhadores incorrigíveis?

Nossa Constituição diz que a educação (escolar, no caso – tente educar seus filhos em casa para ver como o Ministério Público vem atrás de você) é um direito de todos (Art. 6º). Diz também que a liberdade é um direito individual nosso. No entanto, obriga as crianças a frequentar a escola dos 7 (agora 6) aos 14 anos, e obriga os pais a colocarem os filhos na escola. O que era para ser um direito passou a ser um dever – para as crianças, uma sentença, a menos que ir para a escola se torne algo que lhes traga prazer, por permitir que, lá, elas encontrem o seu “elemento”.

Onde está Ivan Iliich quando a gente mais precisa dele? Este ano faz 40 anos que ele escreveu A Sociedade sem Escolas (A Desescolarização da Sociedade). Ele morreu em 2002 – mas o seu livro, publicado no auge da contracultura e do movimento hippie, apesar de ter influenciado importantes pessoas, como John Holt, morreu antes. Na verdade, porém, e surpreendentemente, o livro é mais radical hoje do que quando foi publicado. A sociedade, em vez de se desescolarizar, como ele propunha e queria, está cada vez mais escolarizada. E o estabelecimento educacional acredita que criticar a escola é mais inadmissível do que profanar o nome da Santíssima Trindade. Illich, nas palavras de um resenhador, “vê na escola moderna um falso mito da salvação”. (Vide o texto completo do livro de Ivan Illich em http://www.arvindguptatoys.com/arvindgupta/DESCHOOLING.pdf e a resenha mencionada, escrita por Justin Wyllie, em http://www.justinwyllie.net/essays/deschooling_society.pdf).

Semana que vem, Illich e as redes sociais. O artigo de hoje foi apenas um preâmbulo.

São Paulo, 5 de Maio de 2011

Traanscrito em Salto, 3 de Janeiro de 2016

Como Aplicar ‘O Elemento’ à Aprendizagem Escolar?

Artigo número 8, escrito por Eduardo Chaves em 28/4/2011, e publicado originalmente no site das Editoras Ática e Scipione em 9/5/2011.

No meu sexto artigo aqui neste blog, que teve o título de “O Elemento”, falei da necessidade de inverter o nosso enfoque em relação ao trabalho. Em vez de trabalhar fazendo algo de que não gostamos, apenas para ganhar dinheiro que nos permita fazer, fora do trabalho (no fim  do dia, nos fins de semana, nos feriados, nas férias, na aposentadoria), as coisas que realmente nos dão prazer, devemos descobrir e cultivar as coisas que a gente realmente gosta de fazer, que nos dão prazer, e que a gente faria por puro prazer, mesmo que ninguém nos pagasse para fazê-lo, e, daí, encontrar ou inventar formas de ganhar dinheiro, fazendo-as.

Neste artigo, o oitavo, queria aplicar esse princípio à aprendizagem escolar.

A escola básica é um ambiente em que crianças, adolescentes e jovens aprendem aquilo que é considerado necessário e importante para a sua educação, para o seu desenvolvimento. Em geral as crianças não têm grande interesse em aprender a maioria das coisas que a escola deseja e espera que aprendam. Por isso, o problema da motivação – na verdade, o problema da falta de motivação – acaba se tornando um dos maiores obstáculos para a aprendizagem dos alunos na escola.

 Diante da ausência de motivação intrínseca por parte dos alunos (falta de interesse em aprender o que a escola deseja que eles aprendam), a escola procura motivar os alunos extrinsecamente. Aprender as coisas que ali são propostas, afirma-se, é necessário para arrumar um bom emprego e auferir uma boa renda, que, daí, lhes permitirá fazer as coisas em que realmente têm interesse – fora do horário de trabalho, nos fins de semana, nos feriados, nas férias, na aposentadoria… Bons professores tentam, muitas vezes, fazer as aulas divertidas, prazerosas, para compensar a falta de interesse dos alunos. Professores de cursinhos se tornam, em muitos casos, verdadeiros artistas de palco para motivar extrinsecamente os seus alunos. Muitas vezes eles conseguem tornar a aula razoavelmente divertida e conseguem entreter relativamente bem os seus alunos – mas não conseguem que seus alunos fiquem intrinsecamente interessados no que estão fazendo.

 É possível, entretanto, encontrar uma solução melhor…

 Se o currículo escolar, em vez de focar a assimilação de conteúdos informacionais disciplinares, focar o desenvolvimento de competências e habilidades básicas, é possível mudar o enfoque, de forma análoga à sugerida em O Elemento, o livro de Sir Ken Robinson – e resolver o problema da falta de motivação dos alunos para a aprendizagem.

 Digamos que uma das competências previstas no currículo seja resolver ou solucionar problemas – problemas de vários tipos. O foco estará em construir métodos e técnicas para resolver diferentes tipos de problemas. Neste caso, é perfeitamente possível deixar os alunos escolherem em que problema, ou em que tipo de problema, querem trabalhar. Uma aluna pode querer descobrir se animais podem manter relacionamentos homossexuais. Outro aluno pode querer saber por que a temperatura está quente aqui no sul do Brasil quando está fria no norte dos Estados Unidos e da Europa, e vice-versa. Outra aluna pode estar interessada em saber por quanto tempo teria de olhar as crianças da vizinha para ganhar dinheiro suficiente para comprar uma bicicleta. Outro aluno pode querer saber como é que o trem do metrô consegue parar exatamente no lugar certo na estação mesmo sem ter um condutor. E assim vai.

Todos podem trabalhar nos problemas que lhes interessam – e, no entanto, todos vão aprender, se bem assistidos por um professor competente, os mesmos métodos e técnicas de solucionar problemas.

 Em outras palavras, aborda-se a aprendizagem a partir dos interesses dos alunos, das coisas que eles já estão interessados em fazer, e daí se descobrem ou inventam maneiras de eles aprenderem, fazendo o que lhes interessa, os métodos e técnicas de solução de problemas que a escola deseja que aprendam. O problema da falta de motivação nem surge aqui.

Na Escola Lumiar de São Paulo, quando trabalhei lá, os alunos escolhiam os projetos em que queriam trabalhar – e, depois, a equipe pedagógica encontrava formas de estruturar os projetos de aprendizagem de modo que eles aprendessem também outras coisas importantes, enquanto faziam o que lhes interessava.

Uma vez os alunos escolheram, por votação, trabalhar com a preparação de alimentos. Queriam aprender a cozinhar. O projeto recebeu o grandioso nome de Projeto Gastronomia. O trabalho com o projeto envolveu a preparação de diversos tipos de alimento, desde sushi e sashmi, churrasco, massas, saladas, etc. até diferentes tipos de sobremesa. Enquanto eles preparavam esses alimentos, os alunos foram levados contemplar questões de diversos tipos: por que em alguns alimentos colocamos sal e em outros, açúcar? Como é que a gente sabe quanto sal deve colocar numa massa ou no arroz e quanto açúcar colocar na massa do bolo? Por que algumas coisas são medidas por xícaras, outras por colheres de sopa, outras por colheres de sobremesa, etc. Não seria possível medir tudo em gramas? Por que alguns alimentos estragam mais rapidamente se ficarem fora do refrigerador? Por que alguns alimentos mofam? Por que a gente fica com dor de barriga, ou ainda coisa pior, quando come comida estragada? Por que alguns tipos de alimento fazem mal à saúde e outros são considerados sadios? Por que diferentes tipos de alimento têm prazo de validade diferente do dos outros (maior ou menor)? Por que diferentes partes do país, ou diferentes países, têm hábitos alimentares tão distintos? É sadio tomar leite não pasteurizado? Por que a maior parte dos indianos adota o vegetarianismo? Por que os judeus não comem carne de porco? Por que, tradicionalmente, católicos não comiam carne na Quaresma? Por que se come mais peixe na Semana Santa? Por que os japoneses (e tantos outros) gostam de comer carne crua? Por que a gente em geral gosta mais de alimento que fica bonito depois do preparo? A propósito, por que alguns tipos de carne diminuem de tamanho quando cozidas? Por que diferentes tipos de alimentos produzem cheiros diferentes quando estão sendo cozinhados?

Provavelmente, se um professor tentasse fazer com que as crianças aprendessem as respostas a todas essas perguntas num outro contexto, elas achariam o aprendizado extremamente chato… Aqui, entretanto, quando elas estão fazendo o que escolheram fazer, essas perguntas e respostas se encaixam bem.

Note-se que não está se propondo aqui um anarquismo pedagógico, uma escola em que cada um aprende o quer – inclusive nada, se assim for sua decisão. Defende-se aqui a necessidade de a escola ter uma proposta pedagógica e uma definição clara do que ela espera que seus alunos aprendam, daquilo que ela espera que os alunos saiam de lá sabendo e sabendo fazer. Mas há, isto sim, o reconhecimento do fato de que há várias maneiras de aprender algo, e que é possível aprender a resolver problemas, por exemplo, ou a responder perguntas cuja resposta se desconhece, ou a fazer pesquisa, trabalhando com tópicos ou assuntos os mais diversos. Por isso, é perfeitamente possível deixar que os alunos trabalhem naquilo que lhes interessa e, ainda, aprendam o que a escola deseja que eles aprendam – desde que o currículo da escola esteja focado no desenvolvimento de competências básicas em vez de na assimilação de informações de natureza disciplinar e desde que os professores sejam capazes de mediar o aprendizado desejado a partir dos interesses de cada um dos alunos.

O princípio, aqui, é o mesmo proposto no livro O Elemento, de Ken Robinson. Achar uma coisa que nos interessa, que queremos fazer, independentemente do aprendizado que ela possa propiciar, e daí descobrir ou inventar formas de desenvolver competências e habilidades importantes fazendo aquilo que queremos, de qualquer forma, fazer.

São Paulo, 28 de Abril de 2011

Transcrito aqui em Salto, 3 de Janeiro de 2016.

Redes Sociais, Um Computador por Aluno e a Reinvenção da Escola

Artigo número 7, escrito por Eduardo Chaves em 21/4/2011, e publicado originalmente no site das Editoras Ática e Scipione em 2/5/2011.

Volto, neste sétimo artigo da série, ao tema do primeiro: as Redes Sociais que se criaram a partir da chamada Web 2.0. E acrescento um tema novo: Um Computador por Aluno.

Encontrei uma passagem interessante sobre a Web 2.0 em um estimulante livro de Marc Prensky: Teaching Digital Natives: Partnering for Real Learning. Ele é a pessoa que criou e popularizou o uso das expressões “Nativo Digital” e “Imigrante Digital”. Só isso já lhe valeria um prêmio…

Mas eis o que Prensky diz sobre a Web 2.0:

“É difícil, hoje, falar em tecnologia e escola sem mencionar os grandes benefícios da Web 2.0 para a aprendizagem. Caso você não saiba, o que as pessoas querem dizer por Web 2.0 é que, além de ser um meio (medium) em que se leem e se veem coisas (que, faz muito tempo, ela já é), a Web também é um meio (medium) em que qualquer um pode publicar seus textos, suas fotos, seus vídeos, etc.

Também isso não é muito novo. O inventor da Web, Tim Berners-Lee, já disse, muitos anos atrás, que ‘aquilo que as pessoas colocam na Web é muito mais importante do que aquilo que elas retiram de lá‘.

A Web 2.0 só assusta aqueles que enxergam a Web apenas como uma biblioteca, um lugar de ler e ver coisas. Quem ainda adota esse modelo da Web não tem sido capaz de perceber a evolução que vem ocorrendo nela.

O que acontece hoje é que ferramentas extremamente amigáveis permitem que qualquer um – inclusive os nossos alunos – publique seus textos, suas fotos, seus videos na Internet, para o mundo inteiro ler e ver. Assim, qualquer aluno pode ser um editor (publisher) de seu trabalho.

A publicação do trabalho dos alunos é importante para o aprendizado, especialmente quando acompanhada de feedback dos que o leem ou veem o que foi publicado.

. . .

Os alunos devem ser encorajados a usar as ferramentas da Web 2.0, como blogs, wikis, YouTube, as Redes Sociais, etc., o mais possível. E todos devemos ficar à espreita, na espera da Web 3.0, a ‘web semântica’, em que a gente vai poder pesquisar qualquer coisa em qualquer trabalho jamais criado (texto, imagem, video, etc.) e daí facilmente interligar (link) os resultados num novo trabalho.

A Web 3.0 está pertinho… Basta virar a esquina”.

o O o

Há escolas que, ainda hoje, proíbem seus alunos de entrar na escola com telefones celulares – mesmo que não sejam smartphones com acesso à Internet. E há professores, e muitas outras pessoas que se julgam avançadas, que acham que essa proibição está certa.

Li, há algum tempo, um livrinho sobre Um Computador por Aluno (1:1 Computing), publicado por algumas das maiores empresas de tecnologia do nosso tempo. Nesse livrinho, ao mesmo tempo que se defendia a necessidade de que, nas escolas, cada aluno tivesse seu computador, e até mesmo pudesse levá-lo para casa ao fim da jornada escolar, tentava-se arrancar palmas de professores resistentes a essa medida dizendo algo mais ou menos assim (parafraseio de memória):

“O fato de cada aluno ter em mãos seu próprio computador não significa, professor, que você vai perder controle de sua sala de aula. A escola, e se ela não o fizer, você, no âmbito da sua sala de aula, deve estabelecer normas para uso dos computadores durante a aula. Você pode estipular, por exemplo, que enquanto você estiver falando, todos os notebooks ficarão obrigatoriamente com as tampas baixadas a um ângulo de 45 graus”.

Se empresas que se julgam avant garde na educação sugerem isso, o que não acontecerá nas salas de aula dos locais mais recônditos do país?

Mas esse cenário vai mudar.

Você já imaginou uma empresa que proíba seus funcionários de usar computadores conectados à Internet dentro da empresa porque os funcionários podem desperdiçar seu tempo em Redes Sociais, lendo jornais, enviando mensagens para seus amigos, etc., ou porque o uso do computador na frente dos chefes é um gesto de desrespeito à sua autoridade?

Não faz sentido, não é mesmo? Nem na empresa, nem na escola.

Mas você já pensou, professor, o que você vai fazer quando, em sua escola, todos os seus alunos tiverem acesso a um notebook conectado à Internet 100% do tempo, contarem com autorização da administração da escola para utilizá-los até mesmo dentro da sua sala de aula, criarem seus blogs, seus wikis, seus sites de desenhos, pinturas e fotos, seus sites de pequenos vídeos stop and motion, e estiverem ansiosos para abastecê-los com crônicas, contos, poemas, desenhos, pinturas, fotos e histórias em vídeo?

Será que você é daqueles que, ao contemplar um cenário desses, dá graças a Deus porque imagina que, quando isso acontecer, você já estará gozando sua merecida aposentadoria?

Ou será que você fica aliviado porque acredita que a administração de sua escola nunca vai permitir uma coisa dessas?

O futuro espera que você seja daqueles que contemplam esse quadro, refletem sobre ele, e dizem, com esperança: Imagine the possibilities!?

o O o

A  Web 1.0 ampliou, facilitou  e assim democratizou o consumo da informação. Nunca antes na história da humanidade se viu tanta informação sendo consumida como nos últimos anos do século XX e nos primeiros anos do século XXI.

A Web 2.0 está possibilitando, entretanto, que milhões de indivíduos se tornem produtores de informação – algo anteriormente limitado a uma minoria extremamente restrita. Hoje, o céu é o limite. Em princípio, nada impede que todo mundo se torne um produtor de informação – inclusive cada um de nossos alunos. E provavelmente os próximos anos serão anos dos quais venhamos a dizer que nunca na história da humanidade tanta gente produziu tanta informação de forma tão democrática…

Como disse Marc Prensky, a publicação dos trabalhos dos alunos na Internet é importante para o seu aprendizado, especialmente quando acompanhada de feedback dos que o leem ou veem o que foi publicado. Paulo Freire ressaltou que aprendemos uns com os outros, num plano horizontal, bilateral ou multilateral, em comunhão, não em relações verticais, unilaterais, como a que prevalece entre professor e aluno na sala de aula. Na sala de aula, o professor fala, em geral sobre um assunto que o aluno não escolheu e em que não está interessado – o aluno é obrigado a ficar quieto e prestar atenção. Poucos ambientes são mais inadequados à aprendizagem do que esse.

A Web 2.0, com sua interatividade, com sua liberalidade, com a promiscuidade entre experts e iniciantes que ela permite nas Redes Sociais, se tornou, dessa forma, um gigantesco “supermegahiper” ambiente de aprendizagem extremamente importante para o desenvolvimento dos alunos – muito mais importante, ouso dizer, do que as salas de aula de nossas escolas.

o O o

Meu querido amigo Les Foltos, criador do programa Peer Coaching (Aprender em Parceria, no Brasil), hoje distribuído no mundo inteiro pela Microsoft, uma vez contou à Mary Grace Andrioli (minha mulher, Paloma, e eu fomos testemunhas), o seguinte causo, acontecido nos primórdios da era dos blogs, quando a expressão Web 2.0 ainda nem existia. Um professor de Redação e Composição nas cercanias de Seattle resolveu estimular seus alunos de 11-12 anos a criar seus blogs e neles escrever sobre assuntos de seu interesse. O negócio virou uma febre, e os blogs dos alunos começaram a receber visitantes externos, que deixavam palavras de estímulo, faziam comentários e sugestões, ou, por vezes, criticavam um ou outro aspecto do que havia sido publicado.

O professor deixou claro para os alunos, porém, que esse trabalho com os blogs era, por assim dizer, e aproveitando um termo da teologia, supererrogatório: ficava além do que era necessário como trabalho obrigatório da classe e não deveria ser visto como um substitutivo para as exigências regulares. Assim sendo, surpreendeu-se um dia quando uma menininha, que era uma das melhores alunas da classe e sempre fora pontual na entrega dos deveres, lhe disse que não havia feito a tarefa de casa prescrita no dia anterior e que agora lhe era cobrada. O professor logo imaginou que a menina tivesse ficado doente, algo assim, para deixar de fazer seu dever. Mas surpreendeu-se ainda muito mais com a resposta da menina: “Professor, eu estava escrevendo uma coisa tão bacana no meu blog, que pensei assim. Se eu parar de escrever isso para fazer a tarefa, dezenas, quem sabe centenas, de pessoas na Internet não vão poder ler um artigo novo no meu blog. E elas normalmente deixam comentários e elogios. Se eu não fizer a minha tarefa, que só o professor lê, raramente comenta e quase nunca elogia, apenas ele ficará sem algo meu para ler e comentar. Diante disso, achei preferível não fazer a tarefa de casa.”

Dá pra entender? Bem, claro que dá para entender. Quem sabe no lugar dela a gente não faria o mesmo, não é verdade? Quem sabe a gente já não fez algo equivalente, em condições semelhantes, quando optou por fazer algo que dava mais satisfação e não o que era esperado e nos seria cobrado…

Mas o que faz um professor numa situação inusitada dessas? A menina não inventou uma desculpa qualquer que enganasse o seu professor. Podia muito bem tê-lo feito – tantos o fazem! Ela disse, na cara do professor, e com todas as palavras, que havia encontrado algo mais importante para fazer do que realizar para ele pequenos deveres de casa.

o O o

Meu amigo Glen Bull, diretor do Centro de Tecnologia e Formação do Professor da Faculdade de Educação da Universidade de Virgínia, em Charlottesville, VA, uma vez me contou um caso interessante, sobre  John Grisham, o famoso escritor de bestsellers, que mora ao lado de Charlottesville. Vendo a história pelo preço que paguei por ela… John Grisham, que é um filantropo batista muito interessado na educação, e que está rico com as vendas de seus livros e dos direitos de filmagem sobre eles, resolveu fazer uma proposta para a High School que fica perto de seu ranch. Daria um notebook para cada aluno e equiparia a escola com redes sem fio da última geração, bem como com acesso à Internet da melhor qualidade, sob uma condição: a escola não deveria impor restrições ao uso dos notebooks pelos alunos, fora ou dentro da sala  de aula. Nada de tampa baixada num ângulo de 45 graus aqui.

A escola concordou. Aqui entre nós: que administrador de escola não concordaria?

Você já se imaginou, professor, nesse tipo de escola? Se você diz alguma coisa interessante, todos os alunos vão checar o que você disse na Internet. Se algo não bate, você provavelmente vai ficar sabendo através de um nerdzinho ou de alguém que é amigo, no Facebook, de um grande especialista na área. Se você diz coisas que não são interessantes, você perde os alunos, que vão fazer outra coisa, não prestando mais atenção ao que você está dizendo.

E daí? Fazer o quê?

o O o

Um contexto escolar assim, em que cada aluno tem seu computador e tem acesso constante e de qualidade à Internet, em especial à Web 2.0, dentro e fora da sala de aula, vai nos obrigar a repensar a educação escolar: será preciso reinventar a escola, talvez abandonar a idéia de aula e de sala de aula, recriar, quem sabe a partir do zero, o nosso ofício de mestre. A aprendizagem será 24/7/52: ela acontecerá vinte e quatro horas por dia, sete dias por semana, 52 semanas por ano – e ela será eminentemente horizontal, multilateral.

O quanto antes começarmos a pensar nisso, melhor.

São Paulo, 21 de Abril de 2011

Transcrito aqui em Salto, 3 de Janeiro de 2016.

O Elemento

Artigo número 6, escrito por Eduardo Chaves em 15/4/2011, e publicado originalmente no site das Editoras Ática e Scipione em 25/4/2011.

“O Elemento”

Há muitos anos assisti na TV a um filme antigo, daqueles em branco e preto, de cujo nome já me esqueci. Mas não me esqueci de um trecho do filme em que um personagem explica a outro o seguinte.

As pessoas, diz ele, em geral trabalham fazendo coisas de que não gostam, apenas para ganhar dinheiro que custeie as necessidades básicas da vida e, quem sabe, permita que, no tempo livre (à noite, nos fins de semana e feriados, nas férias, na aposentadoria), elas possam fazer aquilo de que realmente gostam e que lhes dá prazer.

É muito difícil ser bem sucedido no trabalho, explicou ele, se a gente não gosta do que faz e, por conseguinte, trabalha sem nenhum prazer.

A chave do sucesso, continuou ele, está em descobrir o que a gente realmente gosta de fazer, e que faria por puro prazer, mesmo que ninguém nos pagasse para fazê-lo, e, daí, encontrar ou inventar formas de ganhar dinheiro fazendo aquilo.

Se conseguirmos realizar essa proeza, conclui sabiamente, passaremos a vida inteira sem sentir que estamos trabalhando, nunca precisaremos nos aposentar, e, possivelmente, seremos bem sucedidos e realizados na vida profissional e felizes na vida pessoal.

Sir Ken Robinson, educador britânico atualmente residindo nos Estados Unidos, é um fantástico palestrante e um grande escritor. Em suas palestras é, além de tudo, divertido. Uma busca pelo seu nome no YouTube vai revelar inúmeras palestras e entrevistas dele – todas excelentes. Recomendo especialmente o conjunto de duas palestras de quinze minutos em que ele denuncia o fato de que a escola frequentemente desvia as crianças daquilo que elas realmente gostam de fazer e assim mata a sua criatividade. Vale a pena assistir. Essas duas palestras estão legendadas para o Português.

Neste artigo, porém, não vou comentar as palestras, mas, sim, o último livro de Ken Robinson, publicado em 2009 com o título de The Element: How Finding your Passion Changes Everything (O Elemento: Como sua Vida Pode Mudar se Você Encontrar sua Paixão). “Paixão”, no título, não se refere a amor romântico, naturalmente: refere-se ao que mencionei no quarto parágrafo: aquilo que realmente gostamos de fazer, aquilo que nos faz vibrar, aquilo que nos dá prazer sustentável – aquilo que faríamos por puro prazer, mesmo que ninguém nos pagasse nada para fazê-lo.

O livro de Ken Robinson discute, portanto, o mesmo assunto daquele trecho do filme antigo que me ficou na memória até hoje, apesar de visto há bem mais de uma década.

O termo “elemento” não é fácil de entender e deve ser explicado. Robinson não gasta muito tempo nesse detalhe, de modo que a explicação é em grande parte minha.

Cada animal tem um elemento no qual vive naturalmente – no qual, digamos, se sente em casa. Para os pássaros, é o ar. Embora vivam bem na terra também, é no ar que parecem se realizar. Para os peixes, por outro lado, é a água. Para boa parte dos demais animais, e para nós humanos, o elemento é a terra. A terra é a nossa casa. (Também a Terra o é, mas aqui estamos falando na terra, com minúscula, algo que se contrasta com o ar e a água.)

O ser humano, porém, tem características especiais. Sua “programação genética”, por assim dizer, é relativamente aberta, o que lhe permite definir, no devido tempo, que tipo de indivíduo deseja ser. Mas ele nasce, segundo tudo indica, não uma tabula rasa, na qual qualquer coisa pode ser escrita, mas com certas características pessoais e capacidades ou aptidões naturais (como a de aprender) que o fazem único e inconfudível entre as espécies animais.

Para se desenvolver, como ser humano, o bebê humano precisa, em interação com o seu meio social, cultural e natural, desenvolver capacidades adicionais, que são adquiridas ou construídas através da sua capacidade ou aptidão natural para aprender. A essas capacidades adquiridas ou construídas dá-se hoje o nome de competências. Uma competência é um conjunto de habilidades adquiridas ou construídas pela aprendizagem que permite ao ser humano fazer coisas que ele não sabe fazer naturalmente – como, por exemplo, falar uma linguagem verbal específica, ou ler e escrever o código escrito dessa linguagem.

No devido tempo, o ser humano precisa definir para si um projeto de vida: isto é, ele precisa decidir que tipo de vida quer ter ou levar, que tipo de pessoa gostaria de ser… O processo que chamamos de educação é, em última instância, um processo de desenvolvimento humano que abrange dois componentes:

  • Um, a definição da vida queremos ter ou levar, da pessoa que gostaríamos de ser;
  • O outro, a busca das competências necessárias para viver essa vida e ser essa pessoa.

[Nessa visão da educação não somos nós, os educadores, que definimos o tipo de ser humano que queremos “formar”, mas, sim, a criança que escolhe que tipo de pessoa ela quer ser, vale dizer, que ela pretende tornar-se.]

Algumas competências básicas, como falar uma linguagem verbal, são essenciais para qualquer projeto de vida. No tipo de sociedade desenvolvida em que vivemos, ler e escrever o código escrito dessa linguagem também são competências essenciais para qualquer projeto de vida. Muitos argumentam que manejar tecnicamente as tecnologias digitais, e saber o que fazer com elas, também são competências essenciais aos seres humanos privilegiados que vivem no Século XXI, em que essas tecnologias estão por toda a parte.

Mas, depois dessa excursão a terreno próprio, voltemos ao livro de Sir Ken Robinson.

Ele não tem dúvida (e eu também não tenho, embora reconheça que essa questão, como qualquer outra, esteja aberta a discussão) de que todos nós nascemos com certas capacidades e aptidões naturais adicionais, isto é, além da capacidade ou aptidão de aprender. Normalmente chamamos essas capacidades ou aptidões adicionais de talentos naturais, ou dons – um dom é algo que nos é dado, que não fomos nós que adquirimos ou construímos. Uns têm o dom da comunicação verbal (oral ou escrita), outros o dom de lidar com números, outros o dom da música (que se desdobra em vários dons subsidiários), outros o dom da dança (que também se desdobra em vários dons subsidiários), outros o dom do esporte (que igualmente se desdobra em vários dons subsidiários), outros o dom da negociação e da busca de acordos e consensos, etc.

Há cinco coisas importantes que precisam ser ditas acerca desses talentos naturais ou dons.

Primeiro, os talentos naturais ou dons dos seres humanos são incrivelmente variados e divergentes;

Segundo, todos nós temos algum talento natural ou dom – ou, em muitos casos, mais de um;

Terceiro, muitos de nós passamos a vida inteira sem descobrir quais os nossos talentos naturais ou dons;

Quarto, mesmo quando os descobrimos, nada garante que venhamos a ter prazer no exercício de nossos talentos naturais ou dons;

Quinto, a escola é uma instituição convergente, oposta à diversidade, e, ao tentar vestir em todos nós a camisa de força da padronização e da uniformização, conspira contra a descoberta de nossos talentos naturais ou dons ou contra o exercício prazeroso e sem culpa deles.

O segundo desses itens pode parecer a alguns um artigo de fé, mas todo o trabalho que tem sido feito acerca do que Howard Gardner chama de “inteligências múltiplas” parece confirmar esse princípio.

Ao lado de nossos talentos naturais ou dons, todos nós – ou, talvez, a maioria de nós – tem uma  paixão: alguma coisa que realmente gostamos de fazer, e que faríamos por puro prazer, mesmo que ninguém nos pagasse para fazê-la. Alguns, quem sabe, bafejados pela sorte, têm mais de uma.

Como dissemos atrás, é possível ter talento natural ou dom para alguma coisa cujo exercício, entretanto, não nos dá nenhum prazer. O talento sem paixão pode até levar ao sucesso, mas não traz realização profissional e pessoal.

Por outro lado, muitos de nós somos apaixonados por coisas para as quais não temos muito talento natural ou dom. Todos nós conhecemos gente que adora cantar ou tocar violino mas acaba martirizando seus amigos com essa paixão sem talento. A paixão sem talento pode até trazer prazer pessoal mas dificilmente leva ao sucesso e à realização profissional. (Neste caso, se a paixão é cantar, o banheiro, com a porta bem trancada e algum dispositivo de isolamento acústico, é um lugar bastante adequado para o exercício dessa paixão.)

O desafio, diz Sir Ken Robinson, ecoando o personagem do meu filme antigo, é encontrar aquele ponto em que nossos talentos naturais ou dons e nossa paixão convergem e finalmente se misturam. Quando o encontramos, estamos naquilo que ele chama de nosso elemento.

Talvez este seja realmente um artigo de fé, mas se o procurarmos com afinco, e principalmente a escola e outras instituições sociais não nos atrapalharem, todos nós oportunamente encontraremos o nosso elemento. Infelizmente, às vezes tarde demais para nos valer alguma coisa significativa.

Como sou filósofo por formação, vou terminar vendendo meu peixe. Entre as atribuições da filosofia da educação está definir um conceito de educação. Faz uma diferença enorme – mas enorme, mesmo – qual é o nosso conceito de educação, e, portanto, o nosso entendimento da educação.

Se entendemos a educação, como o fez o sociólogo francês Émile Durkheim (1858 – 1917), como o processo através do qual as gerações mais velhas “procuram suscitar e desenvolver, nas crianças, . . .[os] estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política no seu conjunto e pelo meio especial a que a criança, particularmente, se destine”, nós vamos ver a função da escola de um jeito…

A educação, neste caso, é um processo que age de fora para dentro, é algo que as gerações mais velhas fazem com as mais novas, com o intuito de adaptá-las à vida social, em geral, e para as funções sociais específicas a que a criança particularmente se destine. Nesse caso, os talentos naturais ou os dons da criança – o seu potencial – pouco importam. Ela  tem de ser o que ela tem de ser.

Se entendemos a educação, entretanto, como o faz meu amigo Antonio Carlos, o Toninho, professor de educação básica em Campinas, que chega a dar aulas 60 horas por semana na escola pública, como o processo mediante o qual nos tornamos capazes de sonhar os próprios sonhos e competentes para transformá-los em realidade, nós vamos ver a função da escola de um outro jeito…

A educação, neste caso, é o processo que contribui para que encontremos o nosso elemento – e a escola, a instituição que busca promovê-lo, não coibi-lo ou cerceá-lo.

Fazendo a ponte com o meu artigo anterior, quando estamos no nosso elemento, nossas ferramentas são também nossos brinquedos, e nossos brinquedos, as nossas ferramentas de trabalho.

E, neste caso, não faz sentido nenhuma outra educação que não a personalizada.

São Paulo, 15 de Abril de 2011

Transcrito aqui em Salto, 3 de Janeiro de 2016

Ferramentas e Brinquedos

Artigo número 5, escrito por Eduardo Chaves em 31/3/2011, e publicado originalmente no site das Editoras Ática e Scipione em 18/4/2011.

Em meu artigo inicial disse que iria usar, neste blog, uma definição bastante abrangente de tecnologia: tecnologia é tudo aquilo que o ser humano inventa para tornar sua vida mais fácil ou mais agradável.

Às invenções humanas que se destinam a tornar nossa vida mais fácil decidi dar o nome genérico de ferramentas; as invenções humanas que têm por objetivo nos dar prazer, tornar nossa vida mais agradável, resolvi chamar de brinquedos.

Uma classificação interessante da tecnologia, portanto, a divide nessas duas categorias: ferramentas (tools) e brinquedos (toys). Technology: tools and toys. Três palavrinhas interessantes iniciadas com a letra “t” em Inglês.

Os leitores dedicados de Rubem Alves, e há muitos, reconhecerão aqui a influência de sua tese de que a educação deve nos capacitar a criar e utilizar duas caixinhas: uma caixinha de ferramentas, cheia de coisas úteis, que nos ajudam a permanecer vivos, ou seja, a sobreviver, e uma caixinha de brinquedos, cheia de coisas inúteis, mas prazerosas, que nos dão as razões necessárias para querer permanecer vivos, posto que nos permitem fruir a vida.

O arado, o martelo, a chave-de-fenda são ferramentas. Também o são os utensílios domésticos (o fogão, a geladeira, a batedeira), que são chamados assim porque são úteis na casa. A penicilina, o aparelho de raio x, o tomógrafo, também estão nessa categoria. O quadro-negro, o giz, o lápis, o caderno, o livro, o retroprojetor (já esqueceram que isso um dia existiu?) – tudo isso é ferramenta. Também o é o mimeógrafo a álcool. Ele foi muito útil para muitos professores. Mas não conheci nenhum professor que derivasse prazer de sujar seus dedos de roxo com ele…

Uma pipa, um peão, uma bola, por outro lado, são brinquedos. Um aparelho de videogames também o é, sem dúvida. Lego também. Todas essas coisas são absolutamente inúteis em termos de nossa sobrevivência. Mas nos dão prazer. Um violino também é um brinquedo, porque dá prazer, a quem toca e a quem ouve.

É verdade que um violino pode ser também ferramenta de trabalho, caso seja usado por um músico profissional para ganhar a vida. O violino, nesse caso, passa a ser meio de vida. Mesmo assim, tocá-lo continua a dar prazer ao violonista, a maior parte das vezes – e ao público, que chega a pagar para ouvi-lo.

Um computador é uma tecnologia que pode ser tanto ferramenta como brinquedo, pois podemos trabalhar ou brincar com ele…

Nesse contexto é interessante levantar desde já a seguinte questão, com duas faces:

  • aprender é mais como trabalhar ou mais como brincar?
  • a tecnologia mais relevante para a educação é a tecnologia-ferramenta ou a tecnologia-brinquedo?

Nós, educadores, usamos várias tecnologias para educar. Usamos, naturalmente, o livro, mas usamos também o quadro negro, o giz, o lápis, a borracha, a caneta, o mimeógrafo, quem sabe até o retroprojetor, a máquina fotográfica, o projetor de slides, o toca-discos, o gravador e reprodutor de sons, a câmera de vídeo, o DVD player, o televisor, o projetor multimídia, o telão… Enfim, usamos uma quantidade enorme de tecnologias no nosso trabalho pedagógico.

Por que essas tecnologias apenas, e não também computadores, tablets e telefones celulares?

Por que somente essas e não o PSP, o DS/DSi/DX,  o Wii e o Xbox Kinect?

Os telefones celulares são ferramentas. Falamos uns com os outros com eles, mandamos torpedos, verificamos e respondemos nossos e-mails, conferimos a programação do cinema na Internet, encontramos a rota para o nosso destino no trânsito…

Mas será que os celulares são apenas ferramentas? Pergunte a um adolescente qualquer se o telefone dele é apenas uma ferramenta. Claramente não é. Além de ferramenta, é brinquedo, é fonte de lazer e de prazer.

A maior parte dos professores é contra o uso do celular dentro da escola por quê? Por que ele é ferramenta? Mas há tantas dentro da sala de aula, a começar pelo livro, pelo caderno, pela esferográfica ou lapiseira!

Será que o celular não é proibido dentro da escola porque é (também) brinquedo, fonte de prazer, e a gente acha que educação é coisa séria?

Quando é que vamos reconhecer que, da mesma forma que aprendemos enquanto trabalhamos, podemos aprender, e muito, enquanto brincamos?

Será possível imaginar que o Wii e o Xbox Kinect um dia venham a adquirir direito de cidadania no ambiente escolar?

Vamos complicar a discussão um pouco. E a arte? A educação artística faz parte do currículo da maior parte das escolas de educação fundamental. Mas é bom lembrar o que disse Ana Ralston no lançamento dos sites de Mídia Social da Ática e da Scipione: tudo o que entra na escola a escola mastiga, digere, e transforma em escola… Será por isso que, na escola, a arte vira educação artística ou arteducação – e, no processo, perde a graça?

Será que ler Dom Casmurro e A Moreninha porque estão na lista de “livros paradidáticos” exigidos, ou na lista de livros que podem cair no Vestibular, é a mesma coisa que ler esses livros por prazer?

Participei uma vez, faz tempo, de um colóquio sobre Ensino a Distância no Ensino Superior na sede da Microsoft, em Redmond, perto de Seattle. Alguns professores universitários das melhores universidades do mundo estavam perplexos diante do enigma causado pelo fato de que estas duas premissas desse quase silogismo não produziam, na prática, o resultado esperado:

Jovens gostam de tecnologia

Ensino a Distância usa tecnologia

Logo…

Logo, jovens devem gostar de Ensino a Distância, certo? ERRADO. Jovens gostam de tecnologia para promover seus interesses, porque isso lhes traz satisfação, lhes dá prazer… Mas uma aula sobre um assunto que não tem interesse para eles continua a ser chata, ainda que faça uso da mais mirabolante tecnologia… Se a tecnologia é desconhecida, ela pode até despertar algum interesse no início, fruto mais da curiosidade do que do prazer – mas, assim que a tecnologia é dominada, o mistério desaparece e o interesse se esvai.

Acho que a frustração que muitos professores sentem ao tentar usar a tecnologia com seus alunos está no fato de que os professores veem a tecnologia mais como ferramenta (uma ferramenta de ensinar, ou de ajudar o ensino), enquanto os alunos a veem mais como brinquedo.

Voltando às perguntas feitas atrás:

  • aprender é mais como trabalhar ou mais como brincar?
  • a tecnologia mais relevante para a educação é a tecnologia-ferramenta ou a tecnologia-brinquedo?

Se prestarmos atenção ao processo que uma criança usa para aprender – para aprender a andar, a falar, a correr, a saltar, a pular corda, a fazer estrela, a andar de bicicleta, a pedalar no jogo de futebol, a nadar, a jogar um videogame difícil, a fazer um desenho ou uma pintura para adornar a mesa de trabalho da mãe, a consertar um brinquedo que quebrou, etc… – veremos que aprender, para ela, é muito mais afim ao brincar do que ao trabalhar.

Não é preciso reencantar a educação: ela já é encantada.

Consequentemente, a tecnologia mais relevante para a educação é a tecnologia-brinquedo, a tecnologia que a criança já gosta de usar fora do contexto escolar.

Mas é preciso tomar cuidado para que a escola não mastigue e digira a tecnologia, transformando-a em escola. Um livro chato lido num iPad continua a ser chato… O Podcast de uma aula, também. A tecnologia não é uma alquimia que transforma o chato em agradável, o indigesto em saboroso.

Mário Prata uma vez escreveu uma deliciosa crônica intitulada “As Meninas-Moça”. O texto pode ser encontrado na Internet em http://www.marioprataonline.com.br/obra/cronicas/prata990407.html. Ele era torcedor do time de vôlei da Leites Nestlé (que fabrica o Leite Moça) – e, pelo jeito, até meio apaixonado por aquela jogadora alta e bonita, a Leila… Mas não o suficiente para não admirar também as pernas da Karim e outros atributos da Helena e da americana Tara.

Tempo depois, o Mário Prata escreveu uma outra crônica, intitulada “O que é isso, Ministro Paulo Renato?”. É impossível resumi-la. Por isso vou citar alguns trechos (mas você pode lê-la na íntegra em http://www.marioprataonline.com.br/obra/cronicas/prata990616.html):

Saber que uma crônica minha, publicada aqui neste espaço, foi tema da prova de português num vestibular para medicina só me envaidece. O ego dá um pulo. Melhor até mesmo que um elogio no The New York Times (sorry, mas eu tinha de contar).

A crônica imposta aos jovens se chama As Meninas-Moça. Publicaram a danada inteira e depois fizeram oito perguntas em forma de múltipla escolha.

E eu, que escrevi, que sou o autor, errei as oito.

Imagino os meninos e as meninas, que querem ser médicos, submetidos a tal dissecação.

Fico aqui me perguntando, ministro, pra que isso? Será que, para cuidar de uma dor de cabeça, um jovem tem de saber se a minha expressão “esparramados em seios esplêndidos” é uma paráfrase, uma metáfase, uma paródia, uma amplificação ou o resumo de um texto bem conhecido pelo cidadão brasileiro? Com toda a sinceridade, ministro da Educação Paulo Renato, você sabe me responder isso? Algum assessor seu sabe? . . .

O título da crônica do vestibular, já disse, era As Meninas-Moça e eu me referia ao time feminino de vôlei da Leites Nestlé, que ia acabar. Olha o que eles perguntaram aos alunos, sobre o título:

a – ao usar meninas-Moça, não flexionou no plural o segundo elemento porque criou um neologismo, processo que não se submete a normas da língua; 

b – ao criar um novo vocábulo, não transgrediu as regras de flexão dos compostos;

c – usou uma flexão admissível porque o segundo elemento é um nome próprio feminino;

d – ao usar a expressão do composto, violentou a regra da língua que preconiza, para esse caso, a variação no plural para os dois elementos;

e – usou apropriadamente a forma meninas-Moça, visto que o segundo elemento tem função apositiva. . . .

E agora, meu querido ministro, só para terminar a aula, me diga, nas expressões abaixo, onde você identifica um exemplo de intertextualidade:

a – “… principalmente o feminino balé de braços, de loiras e altitudes mil”;

b – “Não, leite Moça foi feito para flanar esparramado em seios esplêndidos, chacoalhando no ar, jornadando até as estrelas”;

c – “Aquelas meninas-moças, todas voando pela quadra já fazem parte da latinha”;

d – “Embaixo, está escrito: indústria brasileira”;

e – “… que saem de dentro da lata como que convocadas pelos gênios das lâmpadas que iluminam.”

E agora, C, D, ou F?

O MEC, o patrão das escolas, desencantou o que era encantado. Mastigou, digeriu e transformou em escola a crônica do Mário.

O que precisa se tornar encantado é a escola. Não é o caso de reencantá-la. Não acredito que ela jamais tenha sido encantada. É uma pena. Mas ela precisa pelo menos aprender a não desencantar o que é encantado, a não tratar como ferramenta o que é brinquedo.

São Paulo, 31 de Março de 2011

Transcrito aqui em Salto, 3 de Janeiro de 2016

A Tragédia da Escola do Realengo

Artigo número 4, escrito por Eduardo Chaves em 8/4/2011, e publicado originalmente no site das Editoras Ática e Scipione em 11/4/2011.

Comecei a escrever este artigo no próprio dia da tragédia; terminei-o no dia seguinte de manhã. Talvez seja cedo demais para conseguir escrever alguma coisa que faça sentido e que respeite o sentimento dos parentes das crianças mortas e feridas no Rio de Janeiro hoje cedo – e o sentimento das crianças ferias que sobreviveram. Afinal de contas, até mesmo os detalhes do fato custam a aparecer: o que de fato aconteceu, que culminou na morte de inicialmente onze (agora já doze) crianças e do atirador?

Mas é difícil ficar calado. Até comentaristas esportistas e econômicos no rádio não conseguiram, num primeiro momento, ater-se às suas pautas e se sentiram obrigados a falar no assunto.

Isto por que todo mundo está chocado. Mais do que chocado: sacudido, chacoalhado. Até a Presidente da República, durona, ex-guerrilheira, chorou.

Por que tamanha comoção neste caso?

Lamentavelmente, o Rio de Janeiro e muitas outras grandes cidades brasileiras já aprenderam a conviver com tireoteios e mortes nas ruas e nas casas – estão relativamente dessensibilizados em relação à violência e à morte nas ruas e nas casas.

Mas desta vez foi numa escola e foram crianças as principais vítimas: onze delas morreram na hora, uma depois, dez meninas (que geralmente se sentam na frente na sala de aula) e dois meninos. E não foram crianças que dormiam na rua, como na chacina da Candelária: foram crianças que estavam na escola, fazendo o que se esperava delas.

Lamentavelmente, o mundo já aprendeu a conviver com tragédias desse tipo nos Estados Unidos.

Mas desta vez foi aqui, no Brasil, local que acreditávamos imune a esse tipo de absurdo. Não foi um aluno atual da escola que cometeu o crime, como em geral acontece nos Estados Unidos, mas foi um ex-aluno. No fundo, dá no mesmo. (Alguns já se perguntam se finalmente chegamos lá, ao primeiro time dos países desenvolvidos, agora que coisas assim acontecem aqui também).

Os caçadores de explicações já trabalham a toda. A mãe biológica do rapaz aparentemente era isso; a família que o adotou aparentemente era aquilo; o rapaz, sentencia o governador do Rio, era um animal, um psicopata. Repórteres descobrem, com base em testemunhos de sobreviventes, relatados por parentes, que o assassino aparentemente poupou alguns, que preferiu matar meninas, e que, em muitos casos, as defigurou atirando-lhes no rosto. Tudo isso parece requerer explicações. Buscam-se psicólogos, psiquiatras, psicanalistas…

A maioria de nós fica tentado a buscar e aceitar explicações que enquadrem o acontecido na categoria das excepcionalidades, das anormalidades e psicopatias, mesmo (como já o decretou o Governador) – algo que não aconteceria numa escola particular de elite, como a frequentada por nossos filhos ou netos…

Mas não nos esqueçamos de que, há algum tempo, segundo tudo indica, numa família de classe rica, em São Paulo, uma menina jovem e linda mancumunou-se com o namorado para assassinar os pais… Foram só os dois que morreram, não onze, e eram adultos – mas quem planejou o assassinato, segundo consta, era jovem e era filha deles. Isso parece até pior – se é que dá para comparar essas coisas…

Também há algum tempo, e também aqui em São Paulo, um senhor de meia idade, bem de vida e respeitável, jornalista admirado pelos colegas, matou, segundo tudo indica, a mulher com quem vivia e a quem professava amar.

E o adolescente que saiu atirando a esmo no cinema do Shopping Morumbi? E o jovem que acabou com a vida do outro com um taco de beisebol em uma livraria do Conjunto Nacional?

E há o pai que joga a filha pela janela… (Até hoje tenho dificuldade de acreditar que foi ele!)

E tantos outros crimes de gente de bem, gente bonita, gente certinha, gente rica, gente jovem…

O que esses fatos todos parecem sugerir é que, independentemente de idade, sexo, classe social, riqueza, fama, nível cultural, nossa estabilidade e nosso equilíbrio são precários. Parecemos normais hoje, amanhã cometemos crimes o que só pode ser descritos como odientos e insanos.

Até aqui, falamos em crimes contra a vida.

Mas há também os crimes contra o patrimônio… Quando a pessoa é pobre, está com fome, e rouba comida, vá lá… Mas e a história da linda e admirada atriz de cinema que, de vez em quando, parece surtar e rouba das lojas bobagens de que ela não precisa e que certamente, se realmente as desejasse, não precisaria roubar? Ou o problema das gravatas do respeitado rabino? Ou a Promotora de Justiça brasileira que, segundo os jornais de anteontem, alega, para si mesma, através de seu bastante procurador, insanidade mental?

O que acontece em todos esses casos? Talvez não haja uma só explicação que se ajuste a todos eles. Talvez nunca venhamos a saber com certeza, em cada caso, o que se passou.

Mas uma coisa é certa… Todos esses fatos surpreenderam quem conhecia as pessoas acusadas de perpetrá-los. Ninguém esperava que elas viessem a estar envolvidas nesse tipo de coisa…

E há as coisas que não chegam a ser crime. Pessoas que pareciam ser paradigmas de estabilidade emocional e que se desestruturam e desmoronam quando o/a namorado/a resolve terminar o namoro ou quando o cônjuge decide deixá-las… Em casos extremos, essas coisas podem virar suicídios ou assassinatos.

Ou, mais trivial ainda, o que dizer das brigas por acidentes de trânsito, ou simplesmente porque alguém fechou alguém no trânsito? Isso também tem produzido vários assassinatos.

E o que dizer dos crimes de ódio, em que alguém, geralmente de boa família, ataca um pobre  que dorme na rua e lhe ateia fogo, ou agride um homossexual que passa, ou uma prostituta que está quieta na calçada, ou um estrangeiro que fala uma língua desconhecida?

Tudo isso mostra quão instável é nossa estabilidade, quão precário é nosso equilíbrio…

Dificilmente será um fato só a explicar o que aconteceu no Realengo: a mãe natural doente do rapaz, ou as características da família que o adotou, ou a experiência que ele anteriormente teve na escola, ou o fato de que não tinha amigos ou namoradas e era ensimesmado… Tudo isso provavelmente é parte da história de vida do rapaz, como muitas coisas diferentes fizeram parte da história de vida de tantas outras pessoas, até ali de bem, que, de repente, surtam e cometem atos que ninguém esperava e que os que as conheciam bem não imaginavam que pudessem cometer.

John Bradford, reformador inglês do século XVI, ao contemplar um bêbado, ou uma prostituta, ou um criminoso, teria dito: “There, but for the grace of God, goes John Bradford” – “Ali, não fosse a graça de Deus, estaria eu”. Não é preciso acreditar em Deus para apreender a verdade contida na famosa frase de John Bradford. A maioria de nós já viveu momentos em que sentiu que, por pouco, não faz uma besteira enorme e não vira foco de atenção, como o que ora é dirigido para o assassino das doze crianças e suicida do Realengo.

O filme MatchPoint, de Woody Allen, começa com uma cena instigante. Um jogo de tênis, em que a bola vai de um lado para outro da quadra e volta, várias vezes, até que bate na parte de cima da redinha e sobe – e a cena é congelada com a bolia no alto. Uma voz, em off, diz:

“O homem que disse ‘Prefiro ter sorte a ser bom’ tinha uma visão profunda da vida. As pessoas têm medo de enfrentar o fato de que uma parte grande de nossa vida depende da sorte. É assustador imaginar que tanto, em nossa vida, escapa, ou pode escapar, do nosso controle. Há momentos numa partida de tênis em que a bola bate no topo da rede, e, por uma fração de segundo, pode ir para frente ou cair para trás. Com um pouco de sorte, ela vai para frente, e você ganha o jogo. Mas nem sempre isso acontece. Há vezes em que ela cai para trás, e você perde.”

“There, but for the grace of God, go I”. Ou, então, se você é como Woody Allen, “There, but for sheer good luck, go I”.

Vamos nos lembrar disso quando a gente presenciar essas coisas horríveis que a gente não consegue entender.

Mas, olhando para frente, há duas tarefa sócio-psico-pedagógicas hercúleas à frente de nós todos.

Primeiro, a tarefa mais próxima e mais urgente. Como lidar com as crianças que ficaram? Não só com as que foram feridas, mas com as que presenciaram o assassinato a queima-roupa de seus colegas, quem sabe de BFF: best friends forever (forever pode ser muito pouco tempo, em alguns casos). Muitas delas provavelmente estão traumatizadas, não vão querer voltar à escola (não àquela escola, pelo menos), nunca esquecerão o acontecido, talvez até tenham dificuldade para falar sobre o que se passou. Para os mais fortes, que voltarem à escola, será que os professores conseguirão ajudá-los? Eles próprios estão traumatizados e, provavelmente, precisando de ajuda… Como a comunidade daquela escola reagirá quando alguém soltar uma bombinha durantes as festas de Junho, ou algum barulho diferente acontecer no corredor?

Alguém sabe como lidar com isso? Eu me confesso totalmente incompetente nessa área.

O segundo problema é: existe algo que possamos fazer, na educação familiar, na escola, na sociedade em geral, para que coisas como essa de ontem não aconteçam mais – ou, no mínimo, não passem a acontecer com certa frequência como acontece nos paises desenvolvidos?

Alguém sabe como responder a isso? Eu, mais uma vez, me declaro incompetente. Mas espero que alguém possa nos ajudar a descobrir como enfrentar problemas como a tragédia de ontem, lidando com o rescaldo e, mais importante, prevenindo-as.

Em São Paulo, 8 de Abril de 2011

Transcrito aqui em Salto, 3 de Janeiro de 2016.

O Contar Histórias na Era Digital (Digital Storytelling)

Artigo número 3, escrito por Eduardo Chaves em 24/3/2011, e publicado originalmente no site das Editoras Ática e Scipione em 04/04/2011.

Este artigo também está publicado, com pequenas alterações de redação, no meu blog “Eduardo Chaves Space” (http://chaves.space).

1. Identidade, Memória e o Contar Histórias

Nossa identidade pessoal é definida por nossas memórias – e nossas memórias são a base das histórias que somos capazes de contar: sobre nós mesmos, sobre nossos parentes, sobre nossos amores, sobre nossos amigos, sobre nosso trabalho, sobre a cidade, a região ou o país em que vivemos – enfim, sobre as experiências e os relacionamentos que temos, as ideias que pensamos, as emoções que sentimos, os sonhos que sonhamos, os projetos que criamos para tentar transformar nossos sonhos em realidade.

O título da autobiografia de Gabriel Garcia Márquez é Vivir para Contarla, uma expressão instigante, que ele explica: “Nossa vida não é aquela que vivemos, mas, sim, aquela que lembramos, e como a lembramos, para poder contar sua história”.

Em resumo: nossa identidade é definida pelas histórias que somos capazes de contar, que, por sua vez, dependem de nossas memórias…

Tomemos a literatura.

 Um romance é uma história, ou então um conjunto de histórias que se entrelaçam. Em princípio, é uma obra de ficção, que conta a história de personagens que não existem de fato. Na prática, porém, as histórias construídas em um romance partem das experiências vividas ou imaginadas pelo autor, e se misturam com suas memórias… O que imaginamos também se incorpora à nossa memória. Às vezes, especialmente em casos como os de Simone de Beauvoir e Graham Greene, a biografia e a ficção são tão entrelaçadas que é virtualmente impossível separar com certeza o que é fato e o que é imaginação. Assim, ao contar uma história supostamente sobre outras pessoas, o autor do romance está também contando a sua história…

Mario Vargas Llosa, nosso último Nobel da Literatura, tem um livro magnífico chamado La Verdad de las Mentiras, em que, ao analisar grandes romances da literatura mundial, procura mostrar que, muitas vezes, há mais verdade na ficção (que em princípio é uma mentira) do que no jornalismo e na história, propriamente dita, que deveriam buscar a verdade, só a verdade, nada mais do que a verdade…

Mas não é apenas nossa identidade pessoal que é definida pelas histórias que somos capazes de contar: nossa identidade cultural e mesmo étnica ou nacional também é definida pelas histórias que somos capazes de contar sobre as coisas que importam em nossa cultura, sobre os eventos e personagens que ajudaram a construir a nossa história.

Isabel Allende tem um belo livrinho sobre o Chile (Mí País Inventado) que não é propriamente história, porque é sobre o Chile em que a escritora viveu e que vive em sua memória… O país descrito é um Chile único, porque é história vivida, história contada como ficção. Romances históricos, como os de Alexandre Dumas (principalmente o pai) e os de Michel Zévaco, também se inserem nessa área nebulosa em que fato e ficção, memória e imaginação, se entrelaçam. Vide, por exemplo, Os Três Mosqueteiros (de Dumas pai) e Os Pardaillan (de Zévaco).

Muitas vezes é difícil (alguns diriam impossível) desentranhar a história realmente vivida (wie sie eigentlich gewesen ist, como diziam os pais alemães da historiografia dita científica) da história contada… Historiadores marxistas e liberais brigam até hoje para contar histórias diferentes de uma mesma história vivida!

Aqui entra outro componente: a língua é parte essencial de nossa identidade cultural-étnica-nacional – e nossas histórias são sempre construídas na língua que adotamos como nossa… Autores nascidos em um país (como Ayn Rand, que nasceu na Rússia) escolhem contar suas história na língua do país adotado (os Estados Unidos, no caso dela).

Assim, nossa identidade, tanto no plano individual como no plano cultural, étnico, e nacional, está profundamente misturada com nossa capacidade de contar histórias.

2. O Contar Histórias e a Tecnologia Digital

Como registrei em meu primeiro artigo aqui, por muito tempo o contar histórias foi uma atividade tipicamente oral: as histórias, reais ou inventadas, eram contadas de viva voz, de um para outro, em pequenos grupos.

Com o surgimento da escrita, apareceu, ao lado do contar histórias oral, o contar histórias escrito – e, com esse, sugiram tanto a história, propriamente dita, ou seja, relatos de eventos que se acredita terem de fato acontecido, como a literatura, ou seja, relatos de eventos imaginados (ficção).

Com o aparecimento da impressão de tipos móveis, por volta de 1455, tornou-se possível também o aparecimento eventual do jornalismo – que é um contar histórias correntes, da atualidade.

O século XX, porém, foi o século do audiovisual. A fotografia foi inventada antes, mas o cinema e a televisão são típicos do século XX. É verdade que o cinema começou mudo – mas continha pequenos textos e diálogos inseridos como legendas. Em meados do século XX surgiu o computador e, mais para o final do século multimídia: o audiovisual por excelência.

Assim, o contar histórias, no século XX, passou a ser não mais baseado exclusivamente na palavra, oral ou escrita (embora a palavra continue extremamente importante): as imagens passaram a ser ingredientes indispensáveis das nossas histórias — e agora nós não somente ouvimos e lemos histórias, mas assistimos à sua representação audiovisual. Apesar do fato de que a história, o jornalismo e a literatura estão, hoje, mais fortes do que nunca, não se concebe, hoje, uma história sem fotografias e documentários, um jornalismo exclusivamente impresso, ou uma ficção que não seja traduzível para um filme, uma mini-série, uma novela…

3. Comunicação e Expressão, História e Geografia, Estudos Sociais na Escola

Crianças adoram ouvir histórias. “Conta outra”, é o que sempre pedem… (Vide, nesse contexto, http://contaoutra.net, site que criei há tempo sobre este assunto). Mas elas gostam também de contar histórias (reais ou inventadas, ou uma mistura das duas coisas). E não resta dúvida de que adoram tecnologia. Assim, é evidente que as crianças gostam de histórias audiovisuais construídas e transmitidas com o auxílio da tecnologia: o sucesso da televisão está aí para comprovar isso. Desenhos animados são histórias em que os personagens são construídos pelos desenhistas e animadores. E as crianças são apaixonadas por eles.

Entretanto, se entrarmos numa sala de aula de língua portuguesa, em nossas escolas, provavelmente não veremos professores e alunos construindo histórias – nem mesmo as puramente textuais, quanto mais as que envolvem imagens e fazem uso da tecnologia. Na maioria das classes se estuda gramática… Como diz o Rubem Alves, explica-se o que é um dígrafo… Em outras se pede aos alunos que façam composições – que, além de puramente textuais, são em geral sobre temas que pouco têm que ver com sua realidade, com seus interesses, com sua vida… As crianças não são intrinsecamente motivadas a fazer as composições escolares porque essas composições não têm como objeto uma história que as crianças querem contar. O objeto da história, o mais das vezes, é dado pelo professor. É este o protagonista no ambiente… 😦  (Sobre o protagonismo juvenil no ambiente escolar, vide o meu segundo artigo aqui).

Aulas de geografia em geral começam falando do sistema solar, e aulas de história sobre o passado remoto (Mesopotâmia, Egito, Grécia, Roma, Idade Média) – coisas tão distantes, no espaço e no tempo, da realidade, dos interesses, da vida dos alunos que não é de admirar que boa parte deles deteste geografia e história.

4. O Uso Criativo e Inovador da Tecnologia na Educação

Em todo lugar em que se discute o uso da tecnologia na educação o maior desafio que seus proponentes enfrentam não está na infraestrutura (existência de computadores e conectividade nas escolas), no acesso a essa tecnologia, nem mesmo na formação dos professores para manejá-la tecnicamente. O maior desafio está em fazer algo de criativo e inovador com a tecnologia que efetivamente ajude as crianças, os adolescentes e os jovens a aprender melhor e a ter uma vida melhor do que doutra forma teriam.

O essencial, disse Bill Gates no Global Leaders Forum da Microsoft de 2004, não é a tecnologia: é o que fazemos com ela. Traduzido para a educação, isso significa que o essencial não é aprender a usar a tecnologia, mas usar a tecnologia para aprender – e para viver melhor.

Durante muito tempo o contar histórias audiovisuais só pôde ser feito por profissionais com acesso à complexa e cara tecnologia do cinema e da televisão. Hoje, porém, com a popularização da câmera digital e com a existência de produtos relativamente simples e virtualmente sem custos para compor histórias (Windows Live Movie Maker, por exemplo), qualquer um pode construir uma história digital – pessoal ou não, verídica ou inventada – com extrema facilidade e grande poder de comunicação e mesmo persuasão.

Isso quer dizer que a tecnologia digital, hoje, pode ser aproveitada, de forma criativa e inovadora, para dar vida às ao aprendizado de comunicação e expressão, geografia, história, estudos sociais. Todo mundo tem histórias a contar: sobre si mesmo, sobre seus parentes e amigos, sobre sua família, seus animais favoritos, sua comunidade, sua cidade, seu país… O aprendizado de temas relacionados à linguagem, à geografia e à história, aos estudos sociais pode assumir uma nova dimensão, tornando-se contextualizado na experiência de vida e nos interesses dos alunos. E, no processo, as crianças estarão desenvolvendo importantes competências e habilidades na área de comunicação e expressão.

E também se aprende muita filosofia e muita ciência procurando contar a sua história…

A Prefeitura de Paulínia tem o que é, talvez, a maior Escola de Cinema (Stop Motion) para alunos de uma rede municipal de ensino no Brasil (quiçá no mundo). Construída com o apoio da Lego Education (da Dinamarca) e da Zoom (representante exclusiva da Lego Zoom no Brasil), os alunos da cidade aprendem a construir animações usando cenários construídos com Lego e personagens representados por bonequinhos Lego. Assim se preparam para trabalhar (como desenhistas, animadores, roteiristas, diretores, etc.) no grande polo de cinema que a cidade está construindo. Vale a pena conferir. Veja no YouTube: http://www.youtube.com/watch?v=AR6l-Lm0sA4.

Ali na Escola de Cinema de Paulínia se une o útil ao prazeroso. Ali a tecnologia é usada como ferramenta e como brinquedo. É sobre isso que falarei em meu próximo artigo.

São Paulo, 24 de Março de 2011

Transcrito aqui em Salto, 3 de Janeiro de 2016

Educação Centrada no Aluno

Artigo número 2, escrito por Eduardo Chaves em 17/3/2011, e publicado originalmente no site das Editoras Ática e Scipione em 28/03/2011.

No início deste mês (Março/2011) perdemos um de nossos maiores educadores: Antonio Carlos Gomes da Costa. A morte nos leva as pessoas, mas felizmente nos deixa as ideias e o exemplo delas.

Uma das mais importantes ideias legadas por Antonio Carlos foi a do protagonismo juvenil. Pode ser que ele não tenha inventado o conceito, mas foi ele que o sistematizou e popularizou, com um belo livro e vários artigos e entrevistas sobre o assunto. Vou me valer aqui de um artigo-entrevista, que tem o título de “Protagonismo Juvenil: O que é e como praticá-lo”, que pode ser localizado no seguinte endereço:

http://www.institutoalianca.org.br/Protagonismo_Juvenil.pdf

O termo “protagonismo” vem do grego. Etimologicamente, o protagonista é, naturalmente, o lutador principal (protos = primeiro) numa luta (agon). Por derivação, o termo se aplicou ao ator principal de uma peça ou de um filme, ou ao personagem principal de um livro.

Para o nosso propósito aqui, a grande questão que Antonio Carlos levantou foi: e na educação escolar, quem é, e quem deve ser, o protagonista?

Quem é, de facto, não há dúvida: somos nós, os educadores, os professores em lugar de destaque entre os educadores.

Nós, professores, temos uma tendência natural de valorizar nosso trabalho e nossa importância na educação escolar. É por isso que sucumbimos à tentação de nos sentir os protagonistas da educação que tem lugar no contexto escolar. Sem nós, acreditamos, o aluno não aprende o que precisa aprender – e o que precisa aprender é, acima de tudo, o conteúdo das disciplinas em que somos especializados. Se somos professores de língua portuguesa, é o Português; se somos professores de matemática, é a Matemática; se somos professores de filosofia ou sociologia, é a Filosofia ou a Sociologia (por cuja reinserção na grade curricular tanto batalhamos)…

Muitos autores acadêmicos e muitas editoras voltadas para educação reforçam esse sentimento, escrevendo e publicando livros que ressaltam a importância dos professores para a educação dos alunos. Muito pouca coisa é publicada sobre o papel do aluno como protagonista de sua própria aprendizagem…

Empresas que investem na educação em regra também reforçam esse sentimento, ao concentrar seus recursos e sua atenção na formação continuada dos professores. O MEC faz o mesmo, ao criar o Portal do Professor (não o Portal do Aluno). Poucas empresas investem diretamente em alunos. A parte de portais educacionais dirigida a alunos raramente contém aquilo que interessa a eles: contém apenas o que os professores esperam que os alunos aprendam…

Mas Antonio Carlos nos lembra de que, apesar de tudo isso, e apesar do importante trabalho que nós, professores, podemos realizar na sua educação, é o aluno o lutador / ator / personagem principal da educação, inclusive da educação escolar.  Assim, o foco da educação deve estar na aprendizagem dele, não no ensino do professor.

Antonio Carlos não propõe, nem de longe, uma educação negativa, hands off, laissez faire, em que os alunos são deixados a se virar por si próprios. Para ele, o Protagonismo Juvenil é uma modalidade de ação educativa. Ele consiste na “criação de espaços e condições capazes de possibilitar aos jovens envolver-se em atividades direcionadas à solução de problemas reais, atuando como fonte de iniciativa, liberdade e compromisso. . . . O cerne do protagonismo, portanto, é a participação ativa e construtiva do jovem na vida da escola, da comunidade ou da sociedade mais ampla”.

Mas, é bom que se diga, nem toda forma de participação do jovem na vida da escola, da comunidade ou da sociedade é protagônica (para usar o jargão que foi criado a partir da expressão “Protagonismo Juvenil”). Existem, segundo Antonio Carlos, formas de participação que são a própria negação do Protagonismo Juvenil, como, por exemplo, as seguintes:

  • A participação conduzida, ou, ainda pior, manipulada
  • A participação meramente simbólica (“para não dizer que não falei das flores”…)
  • A participação apenas decorativa, em posição puramente ornamental

A participação genuína, ou protagônica, tem características próprias, que é imperativo repeitar.

  • Em primeiro lugar, ela tem por propósito o desenvolvimento pessoal e social do jovem, a sua formação como “jovem autônomo, solidário e competente”, e é, portanto, uma participação aprendente, que faz parte do processo de construção de sua identidade pessoal, social e profissional, no bojo de um projeto de vida livremente escolhido.
  • Em segundo lugar, ela tem como princípios metodológicos norteadores um clima de liberdade que não só permite, mas procura e incentiva a iniciativa, o envolvimento e o comprometimento dos jovens, e a experimentação na busca da solução de problemas reais.
  • Em terceiro lugar, esse tipo de participação só pode acontecer em ambientes verdadeiramente democráticos, em que os jovens são respeitados e vistos como fonte de solução de problemas (e não como fonte de problemas), e em que eles têm condições formais e materiais de se expressar, de se organizar e de agir, tanto na definição dos problemas que desejam enfrentar como na busca e exploração das melhores maneiras de solucioná-los.

A participação do jovem na vida da escola, da comunidade e da sociedade que leva a sério a sua condição de protagonista representa a mais importante forma de aprendizagem para o jovem que frequenta a escola. Mas representa, também, um ganho significativo para a sociedade, pois é enquanto o jovem realmente vive a liberdade e a democracia que ele aprende a praticá-las e a respeitá-las.

Com essa participação “a sociedade ganha em democracia e em capacidade de enfrentar e resolver problemas que a desafiam”, pois “a energia, a generosidade, a força empreendedora e o potencial criativo dos jovens é uma imensa riqueza, um imenso patrimônio que o Brasil ainda não aprendeu utilizar da maneira devida”.

Uma escola que leva a sério o protagonismo juvenil exige um novo tipo de professor – um professor que exerce uma ou mais de várias funções não-protagônicas: que elabora roteiros, ou constrói cenários, ou escreve trilhas sonoras, ou elabora figurinos, ou fotografa as cenas, ou edita as partes e compõe o conjunto, ou divulga o resultado… ou orienta os atores de modo a obter deles o seu melhor desempenho…

Enfim, um professor não-protagonista, que esteja disposto a dizer em relação a seus alunos aquilo que João Batista disse acerca de Jesus: “Importa que eles cresçam e que eu diminua” (João 3:30)…

Será que essa visão do papel do aluno e do professor explica por que Antonio Carlos nunca teve grande aceitação na academia?

Obrigado, Antonio Carlos, por ter sido quem você foi, por ter feito o que fez, por ter dito o que disse.

São Paulo, 17 de Março de 2011

Transcrito aqui em Salto, 3 de Janeiro de 2016

Tecnologia, Redes Sociais e Educação

[Artigo número 1, escrito por Eduardo Chaves em 10/3/2011, e publicado originalmente no site das Editoras Ática e Scipione em 21/03/2011.

Tecnologia, na minha forma de ver, é tudo aquilo que o ser humano inventa para tornar sua vida mais fácil ou mais agradável.

Ela inclui coisas tangíveis (hardware), como equipamentos, instrumentos e dispositivos diversos, e coisas intangíveis (software), como linguagens, sistemas numéricos, sistemas de notação (musical, por exemplo), métodos, procedimentos, princípios, regras de organização, etc.

Assim, a linguagem verbal, que inclui a fala e a escrita, é tecnologia. Comunidade, embora possa parecer estranho a alguns, também é tecnologia.

Olhando o desenvolvimento da espécie, houve época em que os seres humanos se comunicavam por gestos, expressões faciais e grunhidos (como outros animais), não pela linguagem verbal, que foi uma invenção que surgiu em tempo oportuno. Primeiro o ser humano inventou a linguagem oral – a fala; depois de muito tempo, a linguagem escrita – o texto. Até hoje, porém, há sociedades que ainda vivem numa cultura exclusivamente oral, desconhecendo a escrita.

Olhando a questão do ponto de vista do desenvolvimento do indivíduo, nascemos sem conseguir entender a fala e sem saber falar, ler e escrever. Aprendemos primeiro a entender a fala, depois a falar e, depois de algum tempo, a ler e a escrever. Alguns indivíduos, entretanto, passam a vida inteira sem aprender a ler e a escrever.

Embora, hoje, possa parecer natural viver em ambientes comunitários (cidades, bairros, condomínios), a história nos mostra que houve época em que o ser humano vivia como nômade, vagando de lugar em lugar em pequenos bandos familiares, e vivendo da caça e da pesca ou, então, apanhando frutos de árvores que nasceram naturalmente (sem ser deliberadamente plantadas), onde as encontrassem, não em comunidades semelhantes às que temos hoje, sedentárias, com divisão de trabalho, mercado para a troca de bens e serviços produzidos por cada um, forma própria de organização e governo, etc. Estas só foram inventadas a partir de determinado momento na evolução da espécie humana.

No nível macro, as comunidades de tipo mais genérico, criadas para atender aos vários interesses comuns ou afins de pessoas que não são ligadas por laços de sangue, custaram para aparecer.

No nível micro, levou mais tempo ainda para que os seres humanos inventassem comunidades de finalidade específica – como, por exemplo, as de aprendizagem (tanto as comunidades de artesãos e aprendizes como as chamadas em Inglês de “communities of scholars”).

Mas o que tudo isso tem que ver com a educação? Tem bastante.

Por muito tempo, a fala e a comunidade (em especial a comunidade familiar estendida) foram as principais tecnologias usadas na educação. Antes da invenção da escrita alfabética e da consequente invenção do texto, educava-se em família, com as pessoas vivendo juntas, conversando, explicando, mostrando umas às outras como fazer as coisas que precisavam ser feitas (necessidades) ou as coisas que pareciam interessantes (desejos).

Fora do âmbito familiar, Sócrates, que considero o maior educador que tivemos, usava apenas a fala como tecnologia no seu processo pedagógico focado no diálogo. Dispensava até mesmo a comunidade. Seus alunos vinham a ele individualmente e ele lidava com eles de forma personalizada, um a um. Apenas conversava com eles.

Pelo menos três características do método socrático são importantes aqui. Primeiro, Sócrates educava na praça – no lugar em que as pessoas viviam, não em um local separado, segregado da vida do dia a dia. Segundo, a conversa era centrada nos interesses dos seus interlocutores: não era pautada pelos interesses do mestre. Terceiro, os alunos tinham participação ativa no processo. Podemos dizer (usando conceitos atuais) que, com Sócrates, temos uma educação inserida na vida real, personalizada, centrada nos interesses dos alunos e focada na sua aprendizagem ativa, interativa e colaborativa – e, por isso, significativa.

É curioso (e até certo ponto triste) que não tenha ocorrido a Sócrates criar uma comunidade de alunos interessados nas mesmas coisas e questões para que eles se beneficiassem não só da interação com ele, o mestre-parteira, que os ajudava a dar à luz suas próprias ideias, mas também do diálogo uns com os outros – ou seja, da aprendizagem colaborativa (no plano horizontal ou lateral). Tanto quanto sabemos, Sócrates nunca criou uma comunidade de aprendizagem, como uma escola…

É também curioso que Sócrates tenha optado por não usar, e mesmo rejeitar, os recém-aparecidos textos (livros manuscritos) na educação de seus discípulos. Na verdade, criticou o uso do texto como tecnologia educacional: o livro não traz nenhum benefício e prejudica a aprendizagem, enfraquecendo a memória e substituindo o diálogo…

É verdade que, logo depois de Sócrates, e sob a liderança de discípulos seus, apareceram liceus e academias, ou seja, escolas mais ou menos parecidas com as que hoje temos. Isso indica que, a partir dessa data, comunidades específicas de aprendizagem, compostas de pessoas com interesses de aprendizagem comuns ou afins, apareceram no cenário educacional. Essas comunidades de aprendizagem fizeram uso bastante eficaz da tecnologia da fala.

No período pós-socrático, e por muito tempo depois, a educação fez uso quase que exclusivamente das tecnologias da fala e da comunidade. No entanto, porque houve necessidade de racionalizar ou otimizar o processo, um mestre passou a se ocupar de vários alunos – e, com isso, perderam-se algumas características importantes da pedagogia socrática: a personalização, o foco no aluno e nos seus interesses, o diálogo… E a educação saiu da praça e passou a ter lugar dentro da escola, perdendo contato com a vida real.

Dessa forma, gradativamente, processos cognitivos  e processos vitais foram se distanciando, a aprendizagem foi se separando da vida, a educação foi se despersonalizando, o foco foi se transferindo do aluno e seus interesses para o professor, seus interesses e especialidades, e a aula, unidirecional, não dialógica ou “discutitiva”, passou a ser a metodologia favorita, em lugar do questionamento dialógico (ou do diálogo questionador) de Sócrates. E, assim, os alunos deixaram de dar à luz as próprias ideias para adotar as ideias dos mestres…

De Sócrates até a invenção da prensa de tipo móvel, no século XV da era cristã, o texto foi muito pouco usado na educação. Livros manuscritos existiam, mas eram poucos e, por isso, tão preciosos que ficavam trancados (até mesmo acorrentados) em bem guardadas bibliotecas (vide O Nome da Rosa, de Umberto Eco). Quase não eram usados na educação.

Com o aparecimento do livro impresso, a partir de 1455, por aí, isso mudou, e o uso do texto se disseminou rapidamente, o livro passando, gradualmente, a competir com a fala pela condição de principal tecnologia utilizada na educação. Mas a comunidade continuou a ocupar um papel totalmente secundário. Os dois, o livro e a fala, encontraram uma forma pacífica de convivência.

Com o livro impresso surgiu (a partir da Reforma Protestante) a escola moderna, organizada em torno de um currículo definido por uma autoridade central, com os professores ocupando o papel de protagonistas no palco principal. A vida escolar dos alunos passou a ser totalmente regimentada, com pouca ou nenhuma liberdade. Seu ofício passou a se resumir a ficar quietos, prestar atenção ao que dizia o professor, anotar os pontos relevantes e fazer, no tempo livre, até mesmo em casa, as leituras exigidas ou recomendadas pelo professor.

Mais ou menos três séculos depois surgiu a escola pública, de massa, controlada pelo Estado, que adotou o mesmo modelo.

A escola moderna é, certamente, uma comunidade de aprendizagem. No entanto, a comunidade existente na escola moderna é, em grande parte, criada por imposição, não pela união de interesses comuns e afins. Nela, o protagonismo estudantil, a personalização da educação e o método dialógico, que imperaram sob Sócrates, se perderam totalmente, e o modelo de educação que hoje temos se consolidou.

As Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) digitais, centradas inicialmente no acesso à informação escrita, e, logo depois, na comunicação um-para-muitos (o Telecurso, o Ensino a Distância, o site na Web, etc.), se prestaram muito bem, num primeiro momento, a reforçar o paradigma educacional da escola moderna, centrado na transmissão de informações de um (o mestre) para muitos (os alunos). Elas foram usadas para dar suporte e sustentação para esse modelo tradicional, bem como para estendê-lo cuidadosamente.

O computador, o projetor multimídia, o telão, a lousa eletrônica e até mesmo a Internet (especialmente a Web) reforçaram o modelo, dando-lhe maior eficiência. A comunicação continuava a ser de um para muitos.

O Ensino à Distância permitiu que o alcance do modelo fosse ampliado, levando ao aparecimento de telecursos, tele-aulas, ensino virtual, etc. – atividades que, exceto pela distância, eram bastante semelhantes às aulas presenciais.

Mas, um dia, surgiram as redes sociais, das quais o Facebook é o exemplo mais completo.

Ainda não sabemos, com precisão, como as redes sociais vão afetar a educação. O estabelecimento escolar tem resistido a elas, e (de sua perspectiva) com boa razão, porque elas representam uma ameaça significativa ao paradigma educacional vigente.

Vejamos por quê.

  1. A rede social é uma ampla comunidade genérica que permite a criação de inúmeras comunidades específicas de pessoas com interesses comuns ou afins.
  2. As comunidades específicas são criadas pelos próprios usuários a partir de seus interesses e os demais usuários agregam-se a comunidades de terceiros também conforme os seus interesses.
  3. Na rede social, mesmo quando comunidades específicas são criadas para servir os objetivos de instituições, a comunicação rapidamente se torna muitos-para-muitos.
  4. A rede social já incorporou a tecnologia do texto, da imagem, do vídeo, do e-mail, da mensagem instantânea, e já começa a incorporar a tecnologia da fala.
  5. Na rede social o texto é usado não só para a comunicação interpessoal (substituindo a fala, enquanto esta não está amplamente disponível) como também para a publicação ou republicação de textos, fato que faz das redes sociais não só redes de pessoas, mas, também, verdadeiras mídias sociais.
  6. Os textos publicados na rede social em geral são curtos (nunca um livro, nem mesmo um ensaio), objetivos, relevantes e pertinentes ao foco de uma comunidade específica e geram imediata repercussão e discussão.
  7. Consequentemente, a rede social é um ambiente extremamente adequado para uma educação personalizada, ativa, interativa, colaborativa, e significativa, pautada pelos interesses dos participantes, em que, nas palavras de Paulo Freire, ninguém educa ninguém e ninguém se educa sozinho, mas todos se educam uns aos outros, em diálogo e comunhão.

É apenas questão de tempo para que o paradigma mude. O processo de sua subversão está em curso. Sócrates, o subversor por natureza, se visse o que está acontecendo, daria pulos de alegria.

São Paulo, 10 de Março de 2011

40 Comentários foram feitos no site das Editoras Ática e Scipione:

COMENTÁRIO 01

Sirlei Maria Oliveira disse:

Em 17/03/2011 às 16:30

Sou professora de Educação Infantil e Séries Iniciais. Adoro educar, pois educar é realizar a mais bela e complexa arte da inteligência, é crescer na vida, mesmo que derramemos lágrimas, ter esperança no futuro, mesmo que os jovens nos decepcionem no presente, é semear com sabedoria e colher com paciência, ser um garimpeiro que procura os tesouros do coração. Educar é buscar todos os meios possíveis de ensinar. Com o avanço tecnológico está cada vez mais fácil adquirir materiais que nos deem apoio e nos ajudem a projetar um trabalho que responda às expectativas dos nossos alunos. Amo a minha profissão e faço o melhor que posso para deixar o mundo um pouquinho melhor.

COMENTÁRIO 02

Eduardo Chaves disse:

Em 19/03/2011 às 21:59

Que bom, Sirlei. É bom ver alguém que gosta do que faz — e melhor ainda quando o que se faz é ajudar crianças pequenas a se iniciar nessa maravilhosa jornada do desenvolvimento humano, realizando, pela aprendizagem, seu pleno potencial. Você tem razão quando diz que a tecnologia nos ajuda a fazer melhor o nosso trabalho. Ela também ajuda os aprendentes a aprender mais e melhor — e a aprender coisas que antes não se aprendiam na escola.

Volte sempre a este blog e visite nossa página no FaceBook: http://www.facebook.com/aticascipione

Um abraço.

Eduardo Chaves

COMENTÁRIO 03

Eduardo Chaves disse:

Em 26/03/2011 às 08:39

Complementando, Sirlei…

Você diz:

“Educar é buscar todos os meios possíveis de ensinar.”

Pense comigo. Será que não seria melhor:

“Educar é buscar todos os meios possíveis de aprender e de ajudar os outros a aprender, em interação, diálogo e colaboração”?

Pense nisso.

E se você responder, mas é exatamente isso que eu acho que é ensinar, eu retorquiria: mas será que ensinar, para a maioria dos professores, é realmente buscar todos os meios possíveis de aprender e de ajudar os outros a aprender, em interação, diálogo e colaboração? Ou é simplesmente dar a matéria prevista na apostila do sistema de ensino, no livro didático, do plano de aula?

Um abraço.

Eduardo Chaves

COMENTÁRIO 04

Alismar Aparecida Si disse:

Em 22/03/2011 às 10:41

É incrível a capacidade de se desenvolver do ser humano, a “gente pega uma pedra bruta e consegue lapidar transformando-a no mais precioso diamante”. Existe coisa mais linda do ver isso acontecer? Por isso eu amo minha profissão. Sei o quanto é emocionante ver suas pequenas descoberta no dia a dia.

COMENTÁRIO 05

Eduardo Chaves disse:

Em 26/03/2011 às 07:50

Alismar,

Há algo em seu comentário que me incomoda um pouco. Mas é uma daquelas coisas que a gente sente que incomoda mas não sabe dizer direito por quê.

Você fala na “capacidade de se desenvolver do ser humano”. E você fala em “lapidar uma pedra bruta, transformando-a no mais precioso diamante”.

O primeiro conceito — ou será uma metáfora — parece pressupor que o ser humano é capaz de se desenvolver e que o desenvolvimento é algo assim de dentro para fora, como nas coisas vivas em geral.

No segundo conceito, a pedra bruta que vira diamante, não há esse desenvolvimento: o único jeito de transformar uma pedra bruta em diamante é pela ação externa, pela ação de terceiros, de fora para dentro, como se fosse.

Percebeu o que me incomoda? Dizer que o ser humano se desenvolve no mesmo parágrafo em que você diz que ele é pedra bruta que precisa ser lapidada, me parece beirar uma contradição…

Se você tivesse dito que o ser humano é uma lagarta que se transforma em uma linda borboleta, talvez eu estivesse menos incomodado…

Pense nisso e me responda aqui mesmo…

Eduardo Chaves

COMENTÁRIO 06

Elias Alves de Brito disse:

Em 19/03/2011 às 14:36

Sou professor universitário, assessor pedagógico e palestrante motivacional das editoras Ática/Scipione. Maravilhoso e conciso texto. Como seria bom que os nossos governantes, caso realmente se interessassem pela educação, pudessem fazer uma junção do modelo socrático com a metodologia vigente em nossos dias. É lógico que há uma grande distância, interesses diversos, novas tecnologias, como também o imperativo da universalização da educação, coisas que não existiam na época de Sócrates, mas presentes aqui. Seria um grande e magnífico esforço de resgate para a dinâmica pedagógica de nosso tempo. Parabéns, professor, e continue a nos brindar com seus artigos.

COMENTÁRIO 07

Eduardo Chaves disse:

Em 19/03/2011 às 22:03

Que bom que você gostou do texto, Elias. Na minha opinião, a maior contribuição que a tecnologia nos dá hoje é nos colocar mais facilmente em contato uns com os outros e nos dar acesso às informações de que precisamos para fazer o que precisamos ou simplesmente desejamos fazer. Volte sempre ao blog. E boa sorte no seu trabalho de professor, assessor e palestrante. Os três trabalhos são extremamente interessantes. Também tenho atuado nessas três áreas.

Não deixe de visitar nossa página no FaceBook: http://www.facebook.com/aticascipione.

Não há muita coisa lá ainda, mas se começarmos a visitá-la e a interagir uns com os outros lá, logo ela estará repleta de informações úteis.

Um abraço.

Eduardo Chaves

COMENTÁRIO 08

Eduardo Chaves disse:

Em 26/03/2011 às 08:09

Numa segunda ponderação ao seu comentário, Elias, fiquei aqui pensando com os meus botões se é realmente possível uma junção do modelo pedagógico de Sócrates com o modelo pedagógico existente em nossos dias…

O primeiro modelo, o socrático, me parece centrado no aluno, na aprendizagem, no processo; o segundo, o vigente, me parece centrado no professor, no ensino, no conteúdo.

Será que dá para juntar essas abordagens e produzir algo que não seja um Frankenstein?

Há quem já ache (Miguel Arroyo, em O Ofício do Mestre, por exemplo) que os nossos tão cultuados Parâmetros Curriculares Nacionais já sejam algo meio parecido com um Frankensteinzinho, ao tentar unir:

* de um lado, as disciplinas acadêmicas especializadas da educação tradicional, que parecem requerer o foco no conteúdo, no ensino, nas avaliações baseadas em provas;

* de outro lado, as competências, que têm natureza forçosamente transdisciplinar, os temas transversais (calcados nos interesses dos alunos), a aprendizagem por projetos, a contextualização dos projetos na vida do aluno…

Será que dá para termos mudança gradual do modelo atual na direção do modelo socrático que caminhe por reforma, por incrementos graduais, por junção ou agregação?

Ou será que neste caso precisamos de subversão, de reinvenção, de reconstrução radical, de transformação revolucionária, que não deixa pedra sobre pedra?

Pense nisso e volte à carga…

Um abraço.

Eduardo Chaves

COMENTÁRIO 09

Samir Thomaz disse:

Em 20/03/2011 às 11:23

Prezado professor Eduardo Chaves,

Parabéns pelo texto claro, objetivo, didático, informativo, conciso. Texto para ser lido e relido diante da panorâmica que oferece sobre o percurso da ideia de transmitir conhecimentos desde os gregos até o advento das escolas de massa e das redes sociais.

E registro aqui a honra de tê-lo como companhia ali entre os colunistas do blog da Ática e Scipione.

Um abraço.

Samir Thomaz

COMENTÁRIO 10

Eduardo Chaves disse:

Em 26/03/2011 às 08:13

Talvez mais importante do que o texto em si, Samir, é a discussão que ele gera, que a gente está podendo testemunhar aqui neste give-and-take dos comentários e réplicas…

Aqui temos o modelo socrático dialógico, interativo, focado não em um educar os outros, mas, sim, em todos nos educarmos uns aos outros, em comunhão, mediatizados pela realidade desse mundo instigante que nos brinda com uma tecnologia tão poderosa que nos permite aprender o tempo todo, de qualquer lugar…

Pense em como podemos alavancar isso como uma contribuição adicional das Editoras Ática e Scipione ao público leitor e dialogante, que quer também ser aprendente.

Um abraço.

Eduardo Chaves

COMENTÁRIO 11

Lairde Laurenti disse:

Em 20/03/2011 às 15:34

Olá. O seu texto veio ao encontro das minhas reflexões sobre o ensino de hoje. Sou professora de sala de leitura do ensino fundamental. Dou aulas do 1º ao 8º anos. Trabalhar com os pequenos é minha praia e é maravilhoso, mas trabalhar com os adolescentes é o contrário… a leitura não os encanta. Penso como você, que o paradigma tem de mudar. Tenho uma amiga que diz “Estamos carregando o morto” e concordo plenamente com ela. Beijos.

COMENTÁRIO 12

Eduardo Chaves disse:

Em 20/03/2011 às 21:43

Acho difícil, Lairde, que um adolescente que, quando pequeno, antes de aprender a ler, nunca viveu a experiência gostosa de ouvir um adulto lhe lendo uma história, ou que não descobriu o encanto que há nos livros logo que foi alfabetizado, venha, quando tem 14-15 anos, desenvolver o amor aos livros e o gosto pela leitura, assim por passe de mágica. Crianças pequenas devem ganhar livros — esses quase indestrutíveis, de pano — para descobrir cedo que livros são fontes de coisas interessantes: primeiro, de desenhos e ilustrações bonitas; depois, histórias curiosas, cuja leitora é imensamente prazerosa. Por outro lado, irritam-me os professores de literatura que passam para os alunos leituras intragáveis.

Obrigado por comentar. Volte sempre.

Eduardo Chaves

COMENTÁRIO 13

Eduardo Chaves disse:

Em 26/03/2011 às 08:24

Ontem à tarde, Lairde, uma jornalista me perguntou se havia diferença entre ler um livro impresso e ler o mesmo livro em formato digital num iPad — e, se havia, que leitura seria superior ou preferível.

Minha resposta começou por ressaltar que, no caso de alguém que não gosta de ler, o iPad, com toda a sua pirotecnia tecnológica, certamente não vai transformá-lo em leitor voraz, fazendo-o apreciar algo que não apreciava antes; e que, no caso de quem ama a leitura, os dois meios, o texto do livro impresso e o texto no iPad vão ser igualmente atraentes, porque, afinal de contas, são o mesmo texto…

Isso posto, não resta dúvida que o livro impresso e o livro digital no iPad têm suas vantagens e desvantagens, dependendo das circunstâncias… O livro impresso, especialmente se é brochura de bolso, é mais portável, porque mais leve; pode ser sublinhado e anotado com mais facilidade, dificilmente será roubado… Para ler um livro digital no iPad é necessário que se tenha um iPad, que é caro e (na sua primeira edição, pelo menos), é meio pesadinho, pode ser roubado, pode ter a bateria esgotada numa hora crítica, e (no momento, pelo menos) é difícil de sublinhar e anotar… No lado positivo, o iPad me permite carregar “trocentos” livros comigo sem peso adicional, me permitindo saltar de um livro para o outro com facilidade, mesmo quando estou no trem ou no avião… E assim vai.

Volte à carga, não suma…

Eduardo Chaves

COMENTÁRIO 14

Eduardo Chaves disse:

Em 26/03/2011 às 08:28

Coloquei a réplica anterior com o intuito de tirar uma moral, que acabei me esquecendo de tirar: que ninguém imagine que, trazendo iPads para a sala de aula, vai conseguir despertar o amor à leitura nos que não gostam de ler… Neste caso, o problema é outro…

Eduardo Chaves

COMENTÁRIO 15

Erinaldo Moura do Nascimento disse:

Em 21/03/2011 às 16:17

A tecnologia facilita a vida do cidadão. Portanto precisa urgentemente ser difundida no processo ensino aprendizagem.

COMENTÁRIO 16

Eduardo Chaves disse:

Em 21/03/2011 às 16:43

Por que você diz, Erinaldo, que a a tecnologia facilita a vida “do cidadão” — em vez de dizer “da pessoa”? Você acha que no plano pessoal, privado, a tecnologia não facilita a nossa vida?

Obrigado pela resposta. Volte sempre aqui.

Eduardo Chaves

COMENTÁRIO 17

Marli Fiorentin disse:

Em 21/03/2011 às 20:56

Olá Eduardo!

Como sempre, seus textos são muito ricos. Ainda temos muito chão pela frente, na minha opinião, ate a escola mudar e incorporar a tecnologia de fato nas práticas pedagógicas, especialmente as redes sociais. O tempo de alguém perceber que falta formação continuada aos professores e não só isso, falta valorização profissional em todos os sentidos e também boa vontade de todos em aceitar o novo. Abraço!

COMENTÁRIO 18

Eduardo Chaves disse:

Em 21/03/2011 às 23:01

Você tem certeza, Marli, de que a mudança da escola só vai acontecer pela via do professor? E que só acontecerá depois de o professor ter recebido formação adequada, ser bem pago, sentir-se valorizado e quando estiver ansioso para abraçar o novo?

Em outros segmentos da sociedade, a mudança veio à revelia dos principais agentes, sem que eles estivessem preparados ou desejosos de abraçar o novo…

Os bancários que resistiram às mudanças, ou que imaginaram que elas só viriam quando eles quisessem e nos termos que escolhessem, perderam o emprego e estão fazendo outra coisa hoje…

E se a mudança na escola acontecer pela via do aluno — pelo “protagonismo juvenil” de que falava Antonio Carlos Gomes da Costa, e que eu vou comentar no meu próximo artigo, já escrito e entregue?

Nessa nova realidade em que vivemos não temos tanto controle sobre o que acontece como gostaríamos de ter…

Eduardo Chaves

COMENTÁRIO 19

Marli Fiorentin disse:

Em 22/03/2011 às 10:27

Eduardo, sim, eu concordo que nossos alunos já estão provocando mudanças. É através de seus anseios, suas preferências e práticas fora da escola que nos guiamos para buscar a sintonia. O que eu quis dizer é que demora mais que o necessário e desejável os professores se darem conta disso ou ter coragem de inovar por algumas razões que citei e talvez por outras. Falo no sentido geral, porque felizmente muitos estão puxando a mudança. Mas eu não sou a dona da verdade. Abraço!

COMENTÁRIO 20

Mariana R. Pereira disse:

Em 22/03/2011 às 20:13

Sou professora do ensino médio e fundamental, mas também já tive oportunidade de atuar no ensino superior.

Ao fazer a leitura do texto “Tecnologia, Redes Sociais e Educação” vejo que foi uma excelente evolução e de enorme importância o aparecimento das TIC nas escolas. Tendo em conta que as crianças de hoje nasceram no mundo das novas tecnologias, muito para além do computador, pois hoje em dia a evolução tecnológica vai muito para além do computador e da Internet. Hoje, nas escolas, existe o laboratório de ciências, de forma a permitir que o lúdico faça parte das disciplinas de química, física e biologia, visando melhor aprendizado dos alunos.

Ao contrário de toda a tecnologia, vem a aversão à leitura. Alguns alunos não têm o hábito de ler e compreender o que estão lendo. Apesar de as TIC, na educação, permitirem uma compreensão profunda do mundo em que vivemos, enriquecendo o conhecimento, ainda precisamos de uma forma de fazer com que os nossos alunos, antes de irem realizar o estudo virtual, visitem o centro de multimeios, sintam o gosto pela leitura.

Neste sentido, é importante que as escolas acompanhem este crescimento e preparem os discentes nesse sentido. Afinal, somos nós mesmos que dizemos que eles já nascem sabendo mexer no computador.

Abraço.

Mariana Rodrigues Pereira
marianaararipe@yahoo.com.br
(88) 9415.1475 Araripe-CE

COMENTÁRIO 21

Eduardo Chaves disse:

Em 26/03/2011 às 08:51

Mariana,

Veja as minhas respostas ao comentário da Lairde Laurenti, aqui. Ali discuto um pouco a questão do amor à leitura e da lastimável falta dele em tantas crianças de hoje…

A televisão foi uma desgraça em termos do desenvolvimento da leitura, porque a gente assiste à televisão sem fazer esforço — na verdade, sem fazer nada a não ser manter os olhos abertos e um mínimo de atenção.

O computador representou um enorme progresso. Em regra, se você apenas senta na frente de um computador e olha para ele, ele não faz nada, mesmo que ligado e funcionando normalmente. Para ele fazer algo você tem de interagir com ele, digitar no teclado, clicar com o mouse, tocar na tela. E para fazer isso com um mínimo de propósito e inteligência, você tem de ler o que aparece na tela e responder adequadamente.

Assim, o computador pode motivar a criança pequena a querer aprender a ler e escrever. No caso das mais velhas, pode ser um incentivo até para aprender uma segunda língua, visto que isso abre novos horizontes e novas possibilidades de interação.

Desculpe ter levado tanto tempo para responder…

Um abraço.

Eduardo Chaves

COMENTÁRIO 22

Maria Araujo disse:

Em 22/03/2011 às 21:03

Boa noite a todos,

Sou professora Licenciada em Língua Portuguesa e em Pedagogia, também especialista em Gestão Educacional. Leciono Língua Portuguesa no Ensino Fundamental na rede pública. Li o texto sobre tecnologia e percebi que ela me faz compreender o norte do entretenimento que facilita o dia a dia do professor.

COMENTÁRIO 23

Eduardo Chaves disse:

Em 26/03/2011 às 08:52

Desculpe-me, Maria, mas não entendi direito o que você quer dizer quando afirma que a tecnologia a faz “compreender o norte de entretenimento que facilita o dia a dia do professor”…

Dá para elaborar e me esclarecer?

Um abraço.

Eduardo Chaves

COMENTÁRIO 24

Maria Araújo disse:

Em 22/03/2011 às 21:22

Gostei muito do texto sobre tecnologia visto que, no nosso cotidiano, facilita a estabelecermos a comunicação entre as pessoas daquilo que queremos expressar: tanto no ato da fala quanto nos textos escritos. Visto que nos facilita a curto prazo a comunicação a distância, e por esta interagimos com o mundo.

COMENTÁRIO 25

Eduardo Chaves disse:

Em 26/03/2011 às 09:30

A comunicação a distância, Maria, é certamente uma das maiores contribuições que a tecnologia já trouxe para a espécie humana. Não tenho dúvida nenhuma disso.

Um abraço.

Eduardo Chaves

COMENTÁRIO 26

Severino Ignácio disse:

Em 22/03/2011 às 22:59

Confabulo e parabenizo por seu texto, Prof. Eduardo Chaves.

O homem sempre será histórico pois desde os memoráveis tempos a espécie humana vive em constante inquietação. Os saberes serem versaram nas mais variadas formas de linguagem, logo, a dialogicidade foi e sempre será de fundamental importância para a aprendizagem que, decerto, passará a ser o eixo do desenvolvimento humano, em qualquer dimensão.

Fico feliz em saber as Redes Sociais tornou-se hélice e eixo via tecnologia o que possibilitará em curto prazo uma mola esclarecedora em pró da Educação.

Numa visão mais ampla a linguagem verbal desde os primeiros anos de nossas vidas sempre foram regidas e direcionadas pelo diálogo.

Fico feliz em participar desse momento. Será que nossa infantil e juventude para se ter um horizonte firme não estaria necessitando de uma reforma no ECA para definir seus deveres?

COMENTÁRIO 27

Eduardo Chaves disse:

Em 26/03/2011 às 09:07

Concordo 100%, Severino, que diálogo é de fundamental importância para a aprendizagem. Foi, na época de Sócrates, é hoje, e continuará sendo, cada vez mais.

Isso significa que a educação não é uma via de mão única, do professor para o aluno. É uma via de mão dupla. Talvez a metáfora da “via” aqui até se esgote, porque é difícil falar em uma via de mãos múltiplas — mas em última instância é isso que a educação é…

Lembre-se da frase lapidar de Paulo Freire citada (em parte) no vídeo com o qual a Ana Ralston, diretora de Tecnologia Educacional e Formação de Professores da Abril Educação abriu o evento:

“Ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo” (A Pedagogia do Oprimido, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 6ª edição, 1979, p.79).

Em Educação como Prática da Liberdade Paulo Freire bate na mesma tecla quando afirma, sobre a alfabetização de adultos: “O papel do educador [na alfabetização de adultos é] fundamentalmente dialogar com o analfabeto, sobre situações concretas, oferecendo-lhe simplesmente os instrumentos com que ele se alfabetiza. Por isso, a alfabetização não pode ser feita de cima para baixo, como uma doação ou uma imposição, mas de dentro para fora, pelo próprio analfabeto, apenas com a colaboração do educador” (Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 9ª edição, 1979, p. 111).

Muita gente se diz seguidora de Paulo Freire mas passa longe disso…

Note que o educador, para Paulo Freire, é a parteira de Sócrates…

Um abraço, Severino…

Eduardo Chaves

COMENTÁRIO 28

Mariana R. Pereira disse:

Em 22/03/2011 às 23:02

Sou professora do ensino médio e fundamental, como também já tive oportunidade de atuar no ensino superior.

Ao fazer a leitura do texto “Tecnologia, Redes Sociais e Educação”, vejo que foi uma excelente evolução e de enorme importância o aparecimento das TIC nas escolas. Tendo em conta que as crianças de hoje nasceram no mundo das novas tecnologias, muito para além do computador, pois hoje em dia a evolução tecnológica vai muito para além do computador e da internet. Hoje nas escolas, existe o laboratório de ciências, de forma trabalhar o lúdico nas disciplinas de química, física e biologia, visando melhor aprendizado dos alunos.

Ao contrário de toda a tecnologia, vem a aversão à leitura. Alguns alunos não têm o hábito de ler e compreender o que está lendo. Apesar de as TIC, na educação, permitirem uma compreensão profunda do mundo em que vivemos enriquecendo o conhecimento, ainda precisamos ver uma forma de fazer com que os nossos alunos, antes de irem realizar o estudo virtual, visitar o centro de multimeios, sentir o gosto pela leitura. Neste sentido, é importante que as escolas acompanhem este crescimento e preparem os discentes nesse sentido, afinal, somos nós mesmos que dizemos que eles já nascem a saber mexer no computador.

Abraço.

COMENTÁRIO 29

Eduardo Chaves disse:

Em 26/03/2011 às 09:11

[O seu comentário, Mariana, entrou duas vezes. Copio aqui a resposta que dei ao mesmo comentário mais acima].

Mariana,

Veja as minhas respostas ao comentário da Lairde Laurenti, aqui. Ali discuto um pouco a questão do amor à leitura e da lastimável falta dele em tantas crianças de hoje…

A televisão foi uma desgraça em termos do desenvolvimento da leitura, porque a gente assiste à televisão sem fazer esforço — na verdade, sem fazer nada a não ser manter os olhos abertos e um mínimo de atenção.

O computador representou um enorme progresso. Em regra, se você apenas senta na frente de um computador e olha para ele, ele não faz nada, mesmo que ligado e funcionando normalmente. Para ele fazer algo você tem de interagir com ele, digitar no teclado, clicar com o mouse, tocar na tela. E para fazer isso com um mínimo de propósito e inteligência, você tem de ler o que aparece na tela e responder adequadamente.

Assim, o computador pode motivar a criança pequena a querer aprender a ler e escrever. No caso das mais velhas, pode ser um incentivo até para aprender uma segunda língua, visto que isso abre novos horizontes e novas possibilidades de interação.

Desculpe ter levado tanto tempo para responder…

Um abraço.

Eduardo Chaves

COMENTÁRIO 30

Nicolau H Trevisan disse:

Em 23/03/2011 às 08:47

Olá Eduardo

Discordo de você no tocante ao início de seu post, acredito que tecnologia é o conjunto de técnicas baseadas em pressupostos científicos, assim nem tudo que o homem inventa é tecnologia, ao meu ver, por exemplo: a roda, a escrita e a fala não precisaram de nenhuma ciência.

Assim também acontece com uma comunidade, posso citar inclusive as redes sociais, ninguém precisa fazer uma pesquisa científica para adentrar em uma comunidade, assim acredito que nós usamos técnicas talvez até afetivas, que nos ajudam na comunicação e interação com outros. Você já pensou se para fazer parte da comunidade “bar da esquina”, fosse preciso entender tudo de bar, será que teria a mesma quantidade de pessoas do que se apenas fosse usada para descontrair e fazer novas amizades?

COMENTÁRIO 31

Eduardo Chaves disse:

Em 23/03/2011 às 12:22

Nicolau,

Discordar é um direito… E um direito que eu respeito fundamentalmente, porque vivo discordando… Por isso, vou discordar de você.

O que se chama de ciência (a ciência empírica, experimental) é um fenômeno relativamente moderno. Vamos dizer, então, que antes da Revolução Científica dos séculos XVI-XVII não havia tecnologia?

Você, parece-me, pressente esse problema, tanto que afirma que a roda (por exemplo) não é tecnologia. Por que não seria? Se não é uma invenção difícil, por que o ser humano viveu tanto tempo sem ela? Sem a roda não teríamos o arado — ou os meios de transporte atuais. E por que o ser humano viveu tanto tempo sem escrever, e até mesmo sem falar em uma linguagem verbal, que usa palavras?

O fato de ninguém precisar fazer uma pesquisa científica para entrar em uma comunidade virtual ou rede social não significa que ninguém aprenda nada ali. A ciência não é tudo. Existiu conhecimento antes da ciência e existe conhecimento fora dela hoje. O conhecimento do senso comum, por exemplo. Ou o da filosofia, em um exemplo talvez mais difícil de recusar.

Para aprender em uma comunidade virtual não é preciso “entender tudo” de comunidades, de dinâmica de grupo, de relacionamentos virtuais. Basta ter a mente aberta e vontade de aprender.

Pretendo voltar a discutir esse assunto em um novo artigo. Aguarde.

Um abraço.

Eduardo Chaves

COMENTÁRIO 32

Otavio Freitas disse:

Em 23/03/2011 às 15:09

É deveras importante, como mostra o professor Marcos Bagno, rompermos os preconceitos linguísticos e tornarmos a educação verdadeiramente inclusiva. As alteridades culturais precisam ser respeitadas na construção de todo processo educacional. Acredito que Paulo Freire com sua Pedagogia da Autonomia deve estar mais presente e atual que nunca.

Foi com grata satisfação que fiquei sabendo desse debate, a nação tem de alavancar uma revolução e renovação de toda política voltada à educação.

Otavio Freitas, estudante de Jornalismo da UNEB.

COMENTÁRIO 33

Eduardo Chaves disse:

Em 26/03/2011 às 09:16

Também acho que as ideias centrais de Paulo Freire podem nos ajudar muito e devem estar mais presentes do que nunca.

Mas não podemos nos esquecer de Sócrates, o pai dos educadores, e de Rubem Alves, que me parece ter se tornado, entre nós, o educador maior.

Um abraço, Otávio.

Eduardo Chaves

COMENTÁRIO 34

Marli Caberlin disse:

Em 23/03/2011 às 20:28

Olá,

Sou Professora da Educação Infantil e Ensino Fundamental Séries Iniciais.

Cursei Letras na modalidade presencial e Pedagogia semi-presencial, dando abertura para que eu ficasse aficionada nos cursos on-line.

Busco aprender a aprender para ser uma melhor profissional da educação e interagir na comunidade virtual.

Marli

COMENTÁRIO 35

Eduardo Chaves disse:

Em 26/03/2011 às 09:22

Marli,

Quem sabe você ainda faz um terceiro curso, além de Letras e Pedagogia, na modalidade 100% virtual…

E espero que, além de ter ficado aficionada pelos cursos online, você também talvez fique vidrada na Educação Continuada a Distância, na discussão e no debate online, que estão no coração da aprendizagem colaborativa no plano virtual.

Um grande abraço. Não suma daqui…

Eduardo Chaves

COMENTÁRIO 36

Eliza de Oliveira disse:

Em 23/03/2011 às 23:10

Caro Eduardo,

Adorei o seu texto e como ele historia o percurso dos conceitos de educação ao longo dos tempos. Sou administradora e Educadora Corporativa. Estou prestes a partir para o Plano “B”, aquele que todos temos como sonho a realizar, onde poderei me dedicar com mais exclusividade à área educacional.

Uma dos conceitos que me chamou atenção, foi justamente o conceito de “tecnologia”, sendo inclusive ponto de discordância de alguém que já se manifestou… Mas concordo totalmente… senão como poderíamos conviver com o conceito de “tecnologias sociais”? E mais: acredito que a expansão do conceito é que nos permitirá utilizar as Redes Sociais com o fim didático, transformando-as em verdadeiras e válidas ferramentas, a uso da educação… Isso pra mim é puro exemplo de tecnologia social… que me remete ao conceito (nesse caso já expandido), utilizado pela Fundação da Instituição da qual sou colaboradora: “Tecnologia Social compreende produtos, técnicas ou metodologias reaplicáveis, desenvolvidas na interação com a comunidade e que representem efetivas soluções de transformação social” – Fundação Banco do Brasil.

A “tecnologia” está a nossa inteira disposição, precisamos identificar o problema ou a demanda a solucionar e utilizar com esse fim específico, que de especificidade nada tem, pois representará os desejos e necessidades de milhares de usuários… Tenho certeza que o resultado será maravilhoso. Imagine! Milhares…milhões de pessoas trocando saberes, ainda que sem saber…

Mas a consciência disso com certeza chegará… Com a interatividade…

Parabenizo a iniciativa e a proposta inovadora de utilizar a “tecnologia” com proposições objetivas de tornar o canal, uma ferramenta de aprendizagem coletiva, centrada no processo educacional do homem do século XXI: um ser diverso, relacional, multicultural e que necessita da interdisciplinaridade para solucionar os problemas tão complexos com os quais tem de conviver.

Felicidades…

Eliza

COMENTÁRIO 37

Eduardo Chaves disse:

Em 25/03/2011 às 11:57

Obrigado, Eliza, pelo seu comentário.

Agradeço, especialmente, por você ter trazido à baila a questão da tecnologia social e por ter nos brindado com a definição de tecnologia social da Fundação Banco do Brasil: “Tecnologia Social compreende produtos, técnicas ou metodologias reaplicáveis, desenvolvidas na interação com a comunidade e que representem efetivas soluções de transformação social”.

Essa definição expressa de forma bastante contundente que o conceito de tecnologia abrange não só “produtos” (que em geral são coisas tangíveis, hardware) mas também “técnicas e metodologias” (coisas intangíveis, software) — algo que procurei deixar claro no artigo.

Tendo trabalhado como consultor do Instituto Ayrton Senna por vários anos, o conceito de tecnologia social me é muito caro. O Instituto tem visto sua tarefa como sendo basicamente o desenvolvimento de tecnologias sociais que possam representar soluções em escala para problemas sociais — como, por exemplo, o problema da defasagem idade-série na escola, causado, em regra, por repetência.

Espero que continue a frequentar o blog e a nos deixar suas contribuições.

Um abraço.

Eduardo Chaves

COMENTÁRIO 38

Edna Dantas disse:

Em 24/03/2011 às 11:18

Caro Eduardo

Em poucas palavras você conseguiu sintetizar a história da educação e graças às TIC’s a profecia de Sócrates e de Paulo Freire se cumprirá naturalmente. Não há sistema de poder que impedirá esta revolução na educação.

Durante séculos ficamos presos nos espaços escolares, apartados do mundo real, mas hoje uma nova realidade se abre para o acesso ao conhecimento. Espero que a educação consiga entrar neste “portal” e aprender a se reinventar.

Edna Dantas, mestre em arte educação.

COMENTÁRIO 39

Eduardo Chaves disse:

Em 24/03/2011 às 14:12

Sou otimista também, Edna. Tenho confiança de que desta vez, ou a educação escolar muda, ou ela morre por irrelevância e obsolescência.

As tecnologias hoje disponíveis podem ser usadas na escola – mas seu papel mais importante é, e será cada vez mais, nos espaços e tempos extra-escolares.

Aqui no Brasil uma pessoa média passa quanto tempo na Escola Básica (EI-EF-EM, ou K-12)?

A resposta é que passa de quatro a cinco horas por dia, durante a metade do ano (i.e., durante 180 dias do ano, número que se alcança partindo dos 200 dias letivos oficiais e descontando deles os dias de faltas, de reuniões, etc.), ao longo de mais ou menos 12 anos.

Ou seja, o brasileiro médio passa na Escola Básica cerca de 10% de seu tempo (20% da metade é 10% do total) ao longo de, digamos, 12 anos (que representam um sexto de uma vida média de 72 anos).

Os 90% restantes do seu tempo (80% dos 180 dias que passa na escola, mais 100% dos 180 dias em que não vai à escola, mais os outros — digamos — 60 anos de sua vida inteira que passa fora da Escola Básica, supondo que viva pelo menos até 72 anos), o brasileiro médio vive fora da Escola Básica.

Nesse tempo extra-escolar ele, naturalmente, brinca, trabalha e aprende — lazer, trabalho e aprendizagem são três tipos de atividade fundamentais para o ser humano.

Duas considerações finais importantes:

Primeiro, cada vez mais se tem certeza de que, enquanto brincam e trabalham, as pessoas também aprendem;

Segundo, as pessoas têm, hoje, acesso — no lazer, no trabalho e nos momentos de aprendizagem dedicada — a ajuda de potentes ferramentas tecnológicas que lhes permitem ter acesso às informações que desejam e contato com pessoas que podem colaborar com sua aprendizagem.

Não é razão suficiente para ser otimista?

Quase me arrisco dizer que sou contra a Escola Básica de tempo integral… Mas seria provocação demais. Sou, isto sim, favorável a “the learning society”, a sociedade que aprende e em que se aprende…

Um abraço.

Eduardo Chaves

40) Um Trackback

Por Tecnologia, Redes Sociais e Educação | Liberal Space: Blog de Eduardo Chaves em 18/03/2011 às 07:59

Transcrito aqui em Salto, 3 de Janeiro de 2016

Educação, Sonhos e Felicidade

Il faut cultiver notre jardin
(“É preciso cultivar nosso jardim”)
Voltaire, Candide (1759)

Felicidade Sonhos e Realidade

 CONTEÚDO

1. Introdução: Educação e Sonhos

2. Algumas Concepções de Educação

A. A Concepção Tradicional da Educação

B. Uma Concepção Mais Modernosa da Educação

C. Uma Terceira Concepção da Educação

D. Apreciação dessa Terceira Concepção

3. As Instituições Educacionais

A. Onde se Geram e Concebem os Sonhos?

B. Onde Nascem os Sonhos?

C. “Céu de Outubro”

D. A Escola

E. Os Professores

4. Educação como Desenvolvimento Humano

A. Por Que Precisamos de Educação?

B. As Tartarugas Marinhas

C. O Bebê Humano ao Nascer Requer Educação

D. Educação: Uma Primeira Aproximação

E. O Ser Humano Nasce com Grande Capacidade de Aprender

F. O Ser Humano Nasce com Programação Genética Mínima e Aberta

G. O Ser Humano Nasce com Capacidade de Sonhar

H. O Ser Humano Nasce com Capacidade de Escolher e Decidir

I. Educação: Uma Aproximação Melhor

J. Por que Precisamos de Educação?

K. Para que Nos Educamos?

5. Conclusão: Educação e Felicidade

………….

1. Introdução: Educação e Sonhos

Todo mundo quer ser feliz.

Ficamos felizes quando nossos sonhos se realizam – ou, pelo menos, quando sentimos que estamos caminhando na direção de sua realização.

Um sonho é mais do que uma mera vontade ou um mero desejo. Eu posso ter uma vontade ou um desejo enorme de tomar um sorvete neste momento. Isto é algo de curto prazo – para o agora, ou para o futuro muito próximo. Mas eu tenho um sonho de ser dono de uma fábrica de sorvetes. Sonhos são desejos estendidos, por assim dizer, de médio e longo prazo. Eu sonho “um dia” ser dono de uma fábrica de sorvetes.

Isso quer dizer que felicidade tem que ver com sonhos, com a realização de sonhos, muito mais do que com a satisfação de meras vontades e desejos.

A educação é essencial nesse contexto, porque educação também tem que ver com sonhos. Isso pode parecer estranho para alguns de vocês que pensam que a educação tem que ver com estudar português, matemática, história, geografia, biologia, física, química.

Na verdade, a educação tem que ver com sonhos de três maneiras distintas, mas relacionadas.

Educação é o processo através do qual a gente aprende basicamente três coisas:

  • a sonhar por si próprio, de modo a se tornar capaz de sonhar os próprios sonhos;
  • a transformar esses sonhos, por vezes desconexos, em um projeto de vida coerente;
  • a descobrir e aprimorar nossos talentos naturais e, em cima deles, desenvolver as habilidades e competências necessárias para transformar esse projeto de vida em realidade.

Vou conversar um pouco com vocês sobre essas coisas: felicidade, sonhos, educação, e qual é o papel do professor em tudo isso.

Mas antes eu quero apresentar a você um grande educador. Ele se chama Ken Robinson. É Inglês. Na verdade, a Rainha da Inglaterra, lhe deu um título importante: Sir. Todo mundo o chama, portanto, de Sir Ken Robinson. Ele é meio manco de uma perna, mas isso não é importante. O importante é o que ele diz. E uma das coisas importantes que ele diz é esta (nas minhas palavras):

Nenhuma educação fracassa quando ela é capaz de reunir e integrar sonhos (que ele chama de paixões)  e talentos.

Vamos ver por quê.

2. Algumas Concepções de Educação

A. A Concepção Tradicional da Educação

Há gente (que adota uma visão da educação chamada de tradicional) que acredita que educar é transmitir uma quantidade enorme de informações – chamados pelo nome nobre de conhecimentos – de uma geração para a outra: isto é, dos mais velhos para os mais novos.

O conjunto das informações que a educação tradicional acha que devem ser transmitidas pelos mais velhos aos mais novos é chamado de currículo.

Antes de mais nada, portanto, é preciso definir o currículo: decidir quais informações vão ser transmitidas pelos professores aos alunos.

Depois é necessário organizar o currículo: dividir o conjunto de informações a serem transmitidas em pacotinhos, chamados matérias, que, por sua vez são divididas em séries, devidamente ordenadas, uma detrás da outra, para facilitar o trabalho dos professores (os mais velhos) no seu trabalho de transmitir as informações para os alunos (os mais novos). A matéria prevista para uma determinada série – por exemplo, a matemática que precisa ser transmitida na quinta série – é geralmente chamada de disciplina.

O trabalho dos professores é chamado de ensino. Ensinar é apresentar o conteúdo de uma disciplina de forma compreensível e atraente.

O trabalho dos alunos é chamado de aprendizagem. Aprender é engolir (absorver e assimilar) o conteúdo de uma disciplina e, quando solicitado, mostrar que o conteúdo está “lá dentro” da cabeça.

Dentro dessa visão tradicional, o professor educa o aluno – razão pela qual o professor é chamado de educador, e o aluno de educando. Um educando é um aprendente, uma pessoa que está aprendendo, ou que está a aprender, como se diz em Portugal.

Por isso, muitos teóricos da educação, dentro desse processo tradicional, gostam de dizer que a educação acontece através de um processo de ensino-aprendizagem (os dois termos ficando assim grudadinhos um ao outro por um hífen).

B. Uma Concepção Mais “Modernosa” da Educação

Por outro lado, há gente (que adota uma visão da educação mais modernosa, chamada de construtivismo), que acredita que, embora a gente possa transmitir informações uns aos outros (até o aluno pode transmitir informações ao professor, quando este pergunta, “qual o seu nome, menino?”, e o aluno responde “Juquinha, professor…”), ninguém pode transmitir conhecimentos, que seria o que realmente importa, em pacotinhos.

Conhecimentos são coisas caracterizáveis como modelos ou esquemas mentais que cada pessoa tem de construir por si próprio – razão por que esse ponto de vista se chama de construtivismo.

O trabalho do professor, neste caso, é facilitar a aprendizagem do aluno, isto é, facilitar o trabalho do aluno que é construir o seu próprio conhecimento.

Há construtivistas (os mais radicais) que não gostam de falar que facilitar a aprendizagem é o jeito construtivista de ensinar. Para eles, falar em “ensino construtivista” é um contrassenso. Eles preferem falar em educação construtivista, em que o aluno constrói seus conhecimentos (isto é, se educa), e o professor facilita essa construção – ajuda, apoia, incentiva, instiga, provoca, etc. – mas não ensina. Essa autoconstrução do conhecimento por parte de cada um é o que os construtivistas (especialmente os mais radicais) chamam de aprendizagem. Nessa visão, a aprendizagem acontece sem o ensino, propriamente dito.

Essa visão mais modernosa já foi muito aceita, mas hoje tem recebido muita crítica.

C. Uma Terceira Concepção da Educação

Paulo Freire (que eu considero, junto com o Rubem Alves, nosso educador maior) discorda dos dois, tanto dos tradicionalistas como dos construtivistas (pelo menos dos mais radicais).

Contra os tradicionalistas, Paulo Freire disse, taxativamente, que ninguém educa ninguém. Ponto. Ele criticou muito os tradicionalistas, dizendo que eles acham que a educação (pelo menos nas escolas) é algo parecido com depósitos bancários: o professor empacota uma série de informações em caixinhas (suas aulas, por assim dizer) e transfere as caixinhas para a mente dos alunos ao longo do curso. Não é assim que a coisa funciona, disse ele.

Contra os construtivistas (mais radicais) Paulo Freire disse, também taxativamente, que ninguém se educa sozinho.

Mas se ninguém educa ninguém, e ninguém se educa sozinho, como é que se dá educação?

Para Paulo Freire, nós nos educamos uns aos outros.

Quem? Todos nós, velhos e novos, experientes e sem experiência, professores e alunos. Vocês ouviram direitinho: também o aluno educa o professor, e não só este, aquele.

Quando e onde fazemos isso? Fazemos isso não só quando somos crianças, adolescentes e jovens, mas o tempo todo. Fazemos isso, diz ele, quando interagimos, nos comunicamos, dialogamos, discutimos, debatemos uns com os outros, tanto professores como alunos. (Paulo Freire chama isso de formas variadas de “comunhão”).

E isso não acontece, necessariamente, apenas na escola (onde, normalmente, há pouca discussão e debate, porque lá apenas um fala e os outros ouvem…). Acontece, literalmente, em qualquer lugar, porque o mundo é o maior ambiente de aprendizagem que existe, e é ele que “mediatiza” a nossa educação. Esse tipo de educação acontece quando a gente está trabalhando, brincando, negociando o que fazer, resolvendo conflitos, etc.

Assim, dentro da visão dessa terceira concepção de educação, nós todos somos pessoas que educam e que são educadas através daquilo que fazemos, para e com os outros, com o objetivo de viver uma vida que pretendemos que seja feliz. Nenhum de nós é capaz de fazer isso sozinho. Dependemos de muita gente, a começar dos nossos pais e da nossa família, da comunidade em que vivemos, das organizações a que pertencemos, dos grupos com os quais nos divertimos e, oportunamente, das equipes com as quais trabalhamos.

D. Apreciação dessa Terceira Concepção

Eu tendo a concordar mais com o Paulo Freire.

Paulo Freire não sugere, nem muito menos acredita, que o papel da escola e do professor fiquem reduzidos e desprestigiados nesse quadro. Muito pelo contrário. Mas esse papel, tanto em um caso (da escola) como no outro (do professor), precisa ser revisto: ressignificado e redefinido, na verdade, totalmente reconceitualizado.

Além disso, o professor de certo modo perderá o seu papel pretensamente exclusivo de educador – uma exclusividade que nunca deveria ter existido, nem mesmo segundo a nossa Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN. Eis o que ela diz em seu Artigo 1o:

“Art. 1º A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.

1º Esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias.

2º A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social.”

Se a educação é o processo mediante o qual aprendemos a sonhar por nós mesmos, aprendemos a transformar nossos sonhos em projeto de vida, e aprendemos a transformar nosso projeto de vida em realidade, a missão precípua da educação – e das instituições e pessoas que buscam promove-la – não é transmitir informações e conhecimentos organizados em disciplinas, mas, sim:

  • liberar ao máximo nossa imaginação e criatividade, e ajudar-nos a deixar para trás nossa dependência natural para nos tornar gradualmente independentes e, melhor ainda, interdependentes, a fim de que consigamos sonhar nossos próprios sonhos pessoais e os sonhos coletivos das comunidades a que escolhemos pertencer;
  • fazer um esforço gigantesco para conhecer, em sua individualidade, os talentos naturais de cada um e os sonhos e interesses pessoais e diferenciados de cada um, a fim de que possam transformar seus sonhos em projeto de vida e seu projeto de vida em realidade, desenvolvendo, em cima de seus talentos naturais, e de forma personalizada, as habilidades e competências necessárias para que isso aconteça.

3. As Instituições Educacionais

Quais são as instituições que buscam promover a educação?

Em princípio, deveriam ser todas. Há muita gente dizendo hoje que a escola não é, nunca foi, nem deve ser a única instituição a promover a educação. Quais são as outras? Todas – em especial aquelas mencionadas na LDBEN: o lar, a família estendida, os vizinhos, a comunidade, as organizações que promovem a cultura (galerias, pinacotecas, museus, teatros, casas de espetáculo, etc.), meios de comunicação de massa, locais de diversão e entretenimento, ambientes de trabalho, organizações diversas (empresas, fundações, ONGs, sindicatos, igrejas, clubes esportivos, associações de filantropia e caridade, etc.), e assim vai. A sociedade inteira. Até mesmo a escola…

A. Onde se Geram e Concebem os Sonhos?

Como são concebidos os sonhos de cada um? Da forma em que quase qualquer coisa é concebida, inclusive nós: em interação, em comunhão (como prefere Paulo Freire). Pequenos ainda nós observamos o mundo ao nosso redor, interagimos com nossos pais e demais parentes, com nossos vizinhos e demais amigos, vemos gente fazendo isso e fazendo aquilo, um sendo carpinteiro, outro pintor, outro médico, outro advogado, outro jogador de futebol, outro cantor, outro bombeiro, outro professor, outro diretor de escola, outro dono de uma quitanda, outro um pescador… E a gente começa a pensar: o que será que eu vou ser quando crescer? Em princípio, cada um pode ser qualquer coisa – desde que queira ser aquilo, tenha algum talento natural para a coisa, e se disponha a adquirir as habilidades e competências necessárias que lhe permitam fazer a coisa bem e com prazer. É assim que os sonhos são concebidos. Em qualquer lugar, a qualquer hora, em qualquer fase da vida. Não há uma fase da vida em que você se torna incapaz de gerar e conceber sonhos.

B. Onde Nascem os Sonhos?

Os sonhos, depois de concebidos, nascem, são dados à luz. Mais uma vez, a maternidade dos sonhos é ampla. Eles podem nascer em qualquer lugar – e mesmo a qualquer momento e em qualquer fase da vida. O nascimento depende, de o sonho ter sido concebido. Mas o tempo de gestação varia muito de pessoa para pessoa, de sonho para sonho…

Eu diria que, por incrível que pareça, a casa e a escola, esta pelo menos na forma em que a conhecemos, não são boas maternidades de sonhos. Na verdade, em muitos casos elas, por várias razões, tentam matar sonhos em gestação, tentando nos convencer de que nós não damos para isso ou para aquilo… Vou dar um exemplo retirado da vida real mas que virou um livro e um filme.

C. “Céu de Outubro”

Há um filme, nesse contexto, que eu recomendo para todos vocês. Chama-se Céu de Outubro. Não deixem de assisti-lo. Ele é baseado num livro que é uma autobiografia.

Este filme de 1999 (que tem no original o título de October Sky) é dirigido por Joe Johnston e tem, no papel principal, Jake Gyllenhaal, representando o estudante Homer Hickan Jr.

A história acontece principalmente em Coalwood, estado de West Virginia, nos Estados Unidos, a partir de 1957. Coalwood é uma cidade pequena, cuja economia gira em torno de uma mina de carvão – na verdade, toda a vida da cidade gira em torno da mina. É nela que Homer Hickan Sr. (representado por Chris Cooper), pai do jovem Homer, trabalha, como gerente.

O irmão mais velho de Homer jogava no time de futebol da Escola de Ensino Médio da cidade e foi convocado para seguir carreira no esporte, em nível universitário, para o orgulho do pai, que via aberta a porta para seu filho mais velho se tornar jogador de futebol profissional. O sonho do pai, porém, de ver um de seus filhos sucedê-lo em sua função na mina, recai sobre Homer. Este é selecionado, portanto, para transformar em realidade o sonho do pai – não o sonho dele.

Dele mesmo, Homer não parecia ter nenhum sonho. Aliás, não parecia ter nem interesse especial em nada, nem talento natural para nada. Um zero à esquerda, segundo tudo indicava. Mas como o pai havia resolvido que ele um dia iria substituí-lo como gerente da mina, ele deixou que as coisas caminhassem sem contestar o pai. Tudo indicava, portanto, que, um dia, ele seria o novo gerente da mina, sucedendo ao pai. Mas ele não encarava essa possibilidade com nenhum entusiasmo.

Na verdade, ele não encarava nada com entusiasmo, quanto mais com paixão…

Até que um dia se anunciou na cidade dele que o satélite artificial russo, Sputnik, iria passar bem por cima da cidade, e poderia ser visto no céu ao final do dia – por volta das 18h. Era o mês de Outubro de 1957.

De tardinha, com toda a população da cidade na praça, Homer, ao ver aquele objeto brilhante cortar os céus, quilômetros acima da superfície, na hora prevista, concebeu seu próprio sonho: conseguir fazer um foguete que voasse como aquele satélite (removendo a vergonha que caiu sobre os americanos de ver os maiores rivais colocar em órbita, antes deles, um satélite artificial). Ele tomou a decisão ali naquele instante de aprender o que fosse preciso para construir um foguete como aquele partiu imediatamente para a ação. Ele queria ir trabalhar na NASA. Foi para a maternidade, por assim dizer. Seu  sonho teria um gestação rápida. Tinha de nascer imediatamente. Esse seria o seu projeto de vida. Para realizá-lo, faria o que fosse necessário.

A primeira maternidade que ele procurou foi sua própria casa. Chegando em casa, comunicou sua decisão ao pai e à mãe durante o jantar. A reação do pai foi taxativa: “O quê? Você vai ser engenheiro espacial? Isso não é coisa pro seu bico! Para ser engenheiro espacial, trabalhar na NASA, você ser precisa ser mais do que inteligente: precisa ser brilhante, quase gênio! E precisa estar disposto a trabalhar duro. Você, além de meio tapado, é vagabundo… Às vezes eu acho que nem pra gerente da mina de carvão você serve!”

Brutal, não? O próprio pai de Homer estava tentando matar o sonho em gestação de Homer, impedir que continuasse a viver, impedir que nascesse. Isso se chama abortar um sonho. E era a família que estava fazendo isso. A primeira maternidade que Homer buscou.

Triste, Homer foi dormir. No dia seguinte procurou outra maternidade: a escola.

Como disse, até aquele instante Homer havia sido um aluno medíocre na escola. Como a maior parte dos colegas, não gostava da escola. Enfrentava dificuldades especialmente com ciências (física, química) e matemática – disciplinas de que, como muitos outros alunos, não gostava. Logo descobriu, porém, que para realizar o seu sonho, teria de aprender, e muito bem, primeiro matemática, depois física, e, por fim, química (para lidar, por exemplo, com os combustíveis).

Foi falar primeiro com seus professores de matemática, física e química – os mestres das áreas que ele achava que eram importantes para a concretização de seu sonho – para pedir a sua orientação.  A resposta deles, embora um pouco mais delicada e menos brutal do que a do pai, era na mesma linha… “Pense bem, talvez seja bom você pensar em fazer alguma outra coisa, algo que não exija tanto de você, algo para que você tenha sido mais bem talhado…” Para se tornar um cientista capaz de construir um foguete, argumentaram, é preciso ser quase gênio, ser muito bom em matemática e nas ciências naturais – e isso você certamente não é.

Frustrado, ele ficou zanzando pelos corredores, com uma cara triste. Uma única professora veio procura-lo para lhe perguntar qual era o problema. Mas ela era a professora de Inglês (representada por Laura Dern no filme) – que, imaginava Homer, não teria como ajudá-lo no seu aprendizado técnico. Mas ela podia ajuda-lo de outras maneiras, talvez até mais importantes.

Primeiro, ela lhe deu os parabéns por ter finalmente descoberto o que queria ser e fazer na vida – por ter concebido um sonho, por ter-se engravidado de um sonho tão bonito! A ocasião era especial, merecia celebração. Mas Homer lhe disse o que haviam falado seu pai e os demais professores. Deixe comigo, disse a professora de Inglês. Eu conheço um colega seu, do qual ninguém gosta muito, porque ele é caxias, cdf (aquilo que hoje chamaríamos de “nerd”). Além de tudo, é um menino magro, feio, sardento… e, por cima, pobre… Mas ele é extremamente inteligente e obcecado por matemática e ciências. Essa combinação de características, especialmente a inteligência e a obsessão pela matemática e ciências, o tornaram malquisto e, portanto, arredio. Eu falo com ele e, depois você vai procura-lo. Assim que a professora falou com o “nerd”, Homer foi procurá-lo, contou-lhe de seu sonho, e ganhou um aliado. Os dois conseguiram recrutar mais dois colegas, e assim se formou uma “equipe”, liderada por Homer, para tocar o projeto…

(Homer não tinha talento nato para liderança: mas tinha de desenvolver essa competência, pois ela era indispensável para seu sonho, agora já nascido e em vias de se desenvolver…)

As primeiras tentativas foram frustrantes. Conseguiram que um dos subordinados do pai de Homer na mina usinasse umas peças para eles e completaram um primeiro protótipo do foguete – mas este explodiu no quintal da casa de Homer e na explosão destruiu um pedaço da cerca da casa. Pior, o pai descobriu que seu subordinado os havia ajudado e ameaçou despedi-lo.

Outro protótipo, que voou alto, se perdeu na mata – perto de um lugar onde havia um incêndio florestal, que foi prontamente atribuído ao foguete perdido, tanto pela polícia como pelas autoridades da escola, que agora puniram Homer e os colegas.

E assim vai. Não é necessário narrar todos os detalhes.

A única pessoa que encorajava Homer e sua equipe, e que enfrentava seus colegas e superiores na escola, era sua professora de Inglês. Ela assumiu a função de jardineira do sonho dele. Era elaa que cuidava do sonho, que regava a plantinha, que colocava o adubo do entusiasmo e da motivação quando as coisas ficavam difíceis. Era ela que arrancava os matinhos que tentavam sufocar a plantinha com gozação e ridículo.

Pouco a pouco, depois de muitas tentativas e erros, o projeto começou a dar certo. A professora de Inglês estimulou o grupo a inscrever o projeto na Feira de Ciências da escola, depois numa feira estadual, depois numa feira nacional – e o projeto ganhou o primeiro prêmio em todas elas (Homer recebendo o prêmio das mãos de um famoso cientista espacial da NASA na feira nacional).

O filme termina depois da vitória na feira nacional. Mas não sem antes informar que Homer transformou seu sonho em realidade. Depois de formado, foi contratado pela NASA – onde trabalhou durante muitos anos como engenheiro, estando atualmente aposentado. Os “extras” que a edição em DVD fornece contêm entrevista com o “Homer verdadeiro”, que foi o autor do livro (autobiográfico) e consultor da equipe que fez o filme.

O que dizer dessa história?

Primeiro, é a história de um sonho, que representava um projeto de vida, e que se tornou realidade.

Segundo, é a ilustração do fato de que, antes de transformar um sonho em realidade, é preciso sonhar esse sonho, e para sonhá-lo, é preciso, frequentemente, lutar contra os sonhos que os outros estão sonhando para nós – especialmente a nossa família. Antes de ver o Sputnik, Homer não tinha sonho algum: era uma pessoinha medíocre. Quando passou a ter um sonho, ganhou propósito na vida – e esse propósito lhe deu coragem para enfrentar o pai, os professores e todos aqueles que achavam que seu sonho era ridículo – ou pelo menos utópico. Não é toda instituição que quer servir de maternidade para nosso sonho nem toda pessoa que está disposto a assumir a função de parteiro do sonho – muito menos de seu jardineiro e cultivador.

Terceiro, é a ilustração do fato de que, assim que temos um sonho, que define o nosso projeto de vida, as coisas começam a entrar em foco e se torna claro quais são as habilidades e competências que temos de desenvolver, as coisas que devemos saber, os conhecimentos que temos de adquirir, os valores que temos de adotar, as atitudes que temos de assumir. Homer não gostava de matemática e das ciências naturais. Na verdade, parecia não gostar de nenhuma matéria escolar. Passou a gostar de algumas, porque agora via que sem elas não conseguiria transformar o seu sonho em realidade. Homer não gostava de desobedecer ao pai e de confrontá-lo. Agora concluiu que não havia outra saída. Homer era razoavelmente indiferente a tudo e de certo modo acomodado. Agora se viu tomado de uma verdadeira obsessão por seu projeto e moveu céu e terra para transformá-lo em realidade.

Quarto, é a demonstração de que, quando temos um propósito (decisão), quando esse propósito está energizado por uma paixão (emoção), quando esse propósito está instrumentado por um plano estratégico (pensamento, razão), e quando esse propósito é acompanhado de persistência e determinação (atitudes) no curso de ação escolhido, mesmo diante de grandes adversidades, chegaremos aonde nos propusemos chegar – e até mesmo além. (O sonho original de Homer não envolvia tornar-se escritor, por exemplo – esse foi um segundo sonho que se agregou ao primeiro).

D. A Escola

Concebidos e nascidos os sonhos, a escola é o jardim em que os sonhos são cultivados, criam raízes, crescem, amadurecem, se encorpam. Toda escola, e não apenas o chamado Jardim da Infância, deve ser encarada com um jardim, um lugar especial e relativamente protegido, com terra fértil, bem regada e adubada, em que os sonhos de cada um são cultivados.

Um jardim é um lugar em que flores e outras plantas, de natureza a mais diversificada, podem crescer sem maiores riscos, até que, se for o caso, estejam prontas para serem transplantadas para ambientes não tão hospitaleiros.

A escola-jardim deve ser um ambiente de aprendizagem personalizado, em que cada um pode cultivar o seu sonho – por mais diferente e mesmo estapafúrdio que seja – e que lhe oferece os mais variados recursos para faze-lo, como viveiros, estufas, etc..

Mas um espaço personalizado de educação é principalmente um ambiente em que cada um pode cultivar o seu sonho pessoal, em que sonhos alheios não lhe são impostos, em que alguém pode não só estudar matemática e ciências, mas se aprofundar nessas matérias, SE o seu sonho é ser engenheiro especial (ou algo afim), mas em que esses estudos não sejam obrigatórios para outros, se o sonho desses outros é ser romancista, ou advogado, ou pintor, ou artista de cinema, ou jogador de futebol, ou chef de cozinha, ou marceneiro, ou roqueiro, ou rabino, ou médico, ou fisioterapeuta, ou fonoaudiólogo, ou, então, agricultor que planta batata, quiabo, e caju… Se eu quero ser escritor de ficção, tenho de estudar línguas, literaturas, história, psicologia, filosofia… Se eu quero ser médico ou enfermeiro, eu tenho de estudar o corpo humano, sua anatomia e fisiologia, as condições ambientais e alimentares que contribuem para que ele funcione bem ou melhor e as que contribuem para que ele se funciona mal, se degenere, e oportunamente morra mais cedo do que deveria…

Um espaço personalizado de educação não é apenas um espaço em que eu posso escolher os meios (a mídia) através dos quais aprendo: um lendo, outro vendo um vídeo, outro fuçando no computador… (embora certamente envolva isso também – mas isso é apenas uma parte pequena, e nem de longe a mais importante, do que se entende por personalização da educação).

E. Os Professores

Os que hoje são chamados de professores, mas que, muitas vezes, nada professam e são meros dadeiros de aulas, passam a ser, nessa escola-jardim onde sonhos são cultivados, os jardineiros de sonhos, que cuidam dos sonhos dos alunos, para que não morram por falta de nutrientes, para que consigam sobreviver os terrenos às vezes difíceis em que nasceram, para que enfrentem o sol escaldante, as chuvas exageradas, os deslizamentos de terra, para que combatam o trabalho negativista de céticos e pessimistas que acham que seu dever é fazer com que as pessoas abandonem os seus sonhos, sacrificando-os no altar de uma suposta realidade em que só privilegiados são bem sucedidos na vida e conseguem realizar seus sonhos e alcançar a felicidade.

É fácil ser jardineiro de sonho? Não é. É muito mais difícil do que ser dadeiro de aula que não conhece os seus alunos, que não sabe quais são seus sonhos, que não se preocupa se eles já conceberam um sonho, que não se interessa em ajuda-los a parir seus sonhos, a cultiva-los, a fazer com que cresçam fortes e floresçam e que tragam frutos, sombra e beleza para a vida dos outros.

4. Educação como Desenvolvimento Humano

Vou elaborar aqui um pouco a concepção de educação que está por trás da visão que venho expondo e defendendo…

Quero começar perguntado: “Por que é que precisamos nos educar uns aos outros?”

A. Por Que Precisamos de Educação?

Vou começar lá atrás, antes mesmo de entrarmos no nível mais baixo da escola (disponibilizada, digamos, em creches): quando nós nascemos.

E vou começar comparando a condição humana com a condição de outras espécies animais, representadas, em caso paradigmático, pelas tartarugas marinhas.

Os bebês de várias espécies animais já nascem, em maior ou menor grau, basicamente prontos para a vida. Como vou usar as tartarugas marinhas como paradigma de outras espécies animais, é delas que vou falar. Uso-as como paradigma porque o caso delas, como o nosso, é extremo — só que os dois termos de comparação, elas e nós, estão em extremos opostos. O que direi delas, tartarugas marinhas, se aplica, mutatis mutandis, no mesmo ou em menor grau, a outras espécies animais — não se aplicando nem um pouco à nossa espécie animal: a espécie dos seres humanos.

B. As Tartarugas Marinhas

Uma tartaruga marinha fêmea e adulta, quando está na época de pôr seus ovos, procura uma praia, em geral aquela em que ela mesma nasceu, cava um buraco na areia, ali põe seus ovos, cobre os ovos com areia para que não sejam facilmente encontrados por predadores, e vai embora. Está terminado o papel da tartaruga-mãe — na verdade, o papel de qualquer tartaruga adulta — na formação de seus filhotes: ela apenas os gera dentro de seus ovos.

A tartaruga-mãe nem mesmo dá à luz os seus bebês. Quando chega a hora de os ovos racharem, as tartaruguinhas marinhas sabem que precisam sair deles, e o fazem sozinhas; elas também sabem que devem ou precisam ir “para cima”, isto é, para a superfície da areia (não havendo nenhum caso conhecido de uma que tenha cavado “para baixo” e, digamos, ter chegado do outro lado da Terra); elas ainda sabem construir o seu caminho por dentro da areia para chegar à superfície (a praia); mais surpreendentemente, elas também sabem que devem ou precisam ir para o mar (não terra adentro); sabem andar de modo a chegar até o mar; chegando ao mar, sabem que precisam ir mar a dentro; sabem nadar; no mar mais profundo, sabem o que devem ou precisam comer e o que não podem comer; comendo, se desenvolvem e, a menos que sejam devoradas por um animal maior, chegam à idade adulta, quando vão também gerar seus bebês e o ciclo se reinicia.

As tartaruguinhas marinhas não precisam de educação. Por isso não vivem em família, por isso não frequentam escola, por isso não têm professores. Elas nascem prontas para a vida.

Por já nascerem prontas para a vida, as tartaruguinhas marinhas nascem com reduzidíssima capacidade de aprender. Afinal de contas, elas já nascem sabendo basicamente tudo o que precisam fazer para viver sua vida: já nascem autônomas e independentes, portanto – nem interdependentes precisam ser.

O tipo de vida que elas têm possibilidade de viver, porém, é limitado: elas vão todas ser tartaruguinhas marinhas “de um tipo só” e “de um jeito só” — da forma em que seu código genético foi programado. E o código genético de todas elas é fechado: programado com o mesmo conteúdo, e basicamente inalterável. Por isso, exceto pelo seu tamanho e alguns outros aspectos internos relativos ao seu desenvolvimento biológico, quando uma tartaruguinha marinha nasce ela já está pronta, já sabe fazer tudo aquilo de que precisa para viver sua vida: tem, portanto, total autonomia e independência. Não precisa aprender mais nada — nem que queira. Mas o interessante é que ela não quer, porque não é dotada de liberdade de escolha, decisão e ação…

C. O Bebê Humano ao Nascer Requer Educação

O bebê humano, em contraste, nasce, segundo parece, totalmente despreparado para a vida. Ao sair do ventre materno, ele não sabe fazer literalmente nenhuma das coisas necessárias para que possa sequer sobreviver. Na realidade, não sabe sequer identificar aquilo de que precisa para poder sobreviver. Não sabe o que pode e o que não pode comer. Não sabe se comunicar. Não sabe andar. Se está com frio, não sabe encontrar um lugar mais aquecido, ou buscar um agasalho, ou identificar quem possa prover-lhe calor. O bebê humano, ao nascer, é totalmente incapaz de cuidar de si próprio. Nasce, portanto, sem nenhuma autonomia — o que vale dizer que nasce totalmente dependente: se alguém não cuidar dele, ele morre. Ele não é sequer interdependente.

A tartaruguinha marinha não é interdependente porque ela é, desde o nascimento, totalmente independente. O ser humano ao nascer não é interdependente porque ele é totalmente dependente. Por mais certo que dê a sua educação, ele vai ser ao máximo interdependente.

O bebê humano leva pelo menos um ano para andar relativamente bem sobre as próprias pernas; pelo menos dois anos para se comunicar relativamente bem com seus semelhantes, através da linguagem verbal utilizada em seu meio; leva um bom tempo para escolher o que quer fazer de sua vida; tendo escolhido, leva vários anos para se capacitar para viver a vida que escolheu para si; leva ainda mais tempo para, capacitado, conseguir viver com um grau mínimo de autonomia a vida que escolheu; leva muitos anos (só Deus sabe quantos!) para se tornar suficientemente autônomo para cuidar de sua vida por si mesmo (seu sustento, seu abrigo, as coisas de que precisa ou que simplesmente deseja, seus filhos), sem depender o tempo todo dos outros; leva considerável tempo para poder ser responsabilizado (louvado ou criticado, recompensado ou punido) por suas escolhas, decisões e ações.

Em tudo isso o bebê humano é muito diferente da tartaruguinha marinha. É por isso que o bebê humano precisa de educação, e a tartaruguinha marinha, não.

Mas ainda há algumas outras importantes diferenças entre o bebê humano e a tartaruguinha marinha — e essas diferenças são favoráveis ao bebê humano. Nós as veremos em seguida, depois de fazer uma primeira aproximação a uma definição de educação.

D. Educação: Uma Primeira Aproximação

Precisamos nos educar uns aos outros para que nos tornemos capazes de sobreviver sem ajuda permanente dos outros, vale dizer, para que possamos adquirir as competências que nos permitem viver com relativo, mas razoável, grau de independência e autonomia, isto é, de forma interdependente.

E. O Ser Humano Nasce com Grande Capacidade de Aprender

A segunda diferença entre a tartaruguinha marinha e o bebê humano está no fato de que, apesar de o ser humano nascer sem saber fazer nada que lhe permita sobreviver, ele nasce com uma incrível capacidade de aprender — e começa a aprender assim que nasce (segundo alguns, até mesmo antes). E vai aprender a vida inteira, até mesmo quando estiver velhinho.

Um exemplo importante: mesmo antes de aprender a entender a fala humana e a falar, o bebê humano realiza aprendizagens complexas e sofisticadas. Ele aprende, por exemplo, a reconhecer padrões visuais e sonoros que lhe permitem, ainda pequeno, reconhecer a voz e a fisionomia daqueles que convivem com ele — e, não raro, a estranhar as pessoas cuja voz e fisionomia ele não conhece. Esse é um feito fantástico — que ele consegue realizar sem que ninguém lhe ensine nada.

F. O Ser Humano Nasce com Programação Genética Mínima e Aberta

Uma terceira diferença é a seguinte. Nos aspectos que vão além dos puramente biológicos, a programação genética efetiva do ser humano é mínima. Isso, que poderia parecer uma desvantagem, é, na realidade, uma grande vantagem.

O bebê humano tem, como visto na seção anterior, uma capacidade inata de aprender que é fantástica. Mas ele tem de aprender como é que ele vai colocar sua capacidade de aprender a funcionar. Assim, a “capacidade de colocar sua capacidade de aprender a funcionar” (aquilo que comumente se chama de “aprender a aprender”) é algo adquirido — apesar de a capacidade de aprender, em si, ser inata.

Por isso, algumas pessoas, que têm uma inacreditável capacidade de aprender, aprendem tão pouco, enquanto outras aprendem tanto.

G. O Ser Humano Nasce com Capacidade de Sonhar

Em quarto lugar, o ser humano também tem uma grande capacidade de imaginar e sonhar, de, em sua mente, construir mundos, em que se imagina isso ou aquilo, ou fazendo isso ou aquilo…

O ser humano sonha ser bombeiro, ou corredor de Fórmula 1, ou piloto de guerra; ou atriz, ou educadora, ou cientista; ou monarca, ou presidente da república, ou salvador da humanidade… E todos sonham ser felizes, ou seja, ser capazes de fazer alguma coisa que traga satisfação e realização dos mais íntimos, profundos, e até mesmo escondidos anseios de sua alma.

É por isso que se pergunta a uma criança o que ela quer fazer de sua vida, “o que ela quer ser quando crescer”. E nunca se faz essa pergunta a uma tartaruguinha marinha, ou a um cachorro, ou a um cavalo.

H. O Ser Humano Nasce com Capacidade de Escolher e Decidir

Em quinto lugar, o ser humo nasce com a capacidade de, dentre os vários sonhos que tem, escolher alguns para procurar transforma-los em realidade, decidindo investir nos meios necessários para que eles deixem de ser somente sonhos, nada mais. . .

Dificilmente conseguiremos ser tudo o que sonhamos ser, fazer tudo o que sonhamos fazer. Por isso, temos de escolher. O processo de escolha é, em última instância, o processo de hierarquizar nossos sonhos, nossas preferências, nossos objetivos para que possamos investir nossos recursos (sempre limitados e muitas vezes escassos: tempo, dinheiro, bens) naquilo que nos é mais importante.

I. Educação: Uma Aproximação Melhor

Educação, agora podemos dizer, em aproximação melhor, é o processo pelo qual nos tornamos capazes:

  • de sonhar os próprios sonhos;
  • de, com base neles, definir para nós um projeto de vida (liberdade);
  • de criar condições para transformar nosso projeto de vida em realidade, desenvolvendo nossos talentos ou adquirindo, nesse processo, habilidades, atitudes, emoções, valores, conhecimentos e informações necessários (competência);
  • de fazer com que a execução de nosso projeto de vida se torne fonte de sobrevivência, satisfação e realização para nós, fonte de sustento para os que possam vir a depender de nós, enquanto eles de nós dependerem, e fonte de inspiração para aqueles que conviverem conosco (interdependência).

J. Por que Precisamos de Educação?

Respondendo, de maneira mais sistemática, à pergunta da primeira seção, precisamos de educação porque nascemos incapazes até mesmo de sobreviver por conta própria, mas com uma grande capacidade de aprender, de sonhar, e de escolher e decidir, que é mister desenvolver. Essas capacidades fazem toda a diferença.

A tartaruguinha marinha não possui essas capacidades, que também não estão disponíveis a animais de outras espécies. Cavalos, por exemplo, podem, por talento natural ou treino, se tornar cavalos de carga, cavalos de circo, cavalos de corrida, cavalos de guerra, cavalos reprodutores, ou simples pangarés que carregam crianças nas costas em alguns lugares turísticos. Mas eles não sonham com essas coisas, nem, muito menos, escolhem e decidem o que vão ser. Alguém (um humano) faz isso por eles.

O objetivo maior de toda educação é, portanto, contribuir para que transcendamos (deixemos para trás) as fases de nosso desenvolvimento em que, porque carecemos de criatividade e competências, somos totalmente dependentes e, por isso, incapazes de autonomia e liberdade. A educação é uma busca constante de criatividade e competência para que possamos, de forma cada vez mais plena, viver a nossa autonomia e exercer a nossa liberdade.

Embora, nos níveis iniciais, a educação possa ter um elemento de diretividade e aí se possa esperar que alguém nos ensine alguma coisa, ou a fazer alguma coisa, nos níveis mais altos o foco na ensinagem e suas técnicas deve ser substituído pelo foco na aprendizagem como algo ativo, interativo, comunicativo, colaborativo — aprendizagem que só nessas condições é realmente significativa.

Na Educação de Nível Superior, em que supostamente já temos um projeto de vida e sabemos, ou facilmente podemos descobrir, do que precisamos para transformar esse projeto em realidade, é possível, e desejável, fazer todo uso possível dos espaços de (por um lado) liberdade e de (por outro lado) interação e diálogo que nos são abertos.

Embora se admita que, no nível fundamental, e, talvez, no médio, e, quem sabe, especialmente em cursos preparatórios, totalmente apostilados, os alunos possam ter a expectativa de que seus professores sejam “sages on the stage”, artistas didáticos que, do alto de um palco, despejam sabedoria em cima deles, é preciso reverter essa expectativa.

 No nível superior, porém, os alunos devem ter a expectativa de que seus professores operem, ora como facilitadores da aprendizagem, ora como problematizadores de aprendizagens já feitas; ora como quem combate o ceticismo, ora como quem desconstrói certezas; ora como quem acalma, contém e conforta; ora como quem instiga, força limites, incomoda…

É isso que significa ser jardineiro de sonhos.

Se, nos níveis iniciais da educação, o professor tem um papel mais significativo na aprendizagem do aluno, nos níveis mais superiores a responsabilidade pela aprendizagem está, quase que totalmente, nas mãos dos alunos, que devem ir atrás de seus professores (e de quem mais possa colaborar), levantar questões, questionar, não deixar barato — e nunca ficar quietos, passivos ou meramente reativos em sala de aula.

K. Para que nos educamos?

Quero agora deixar claro qual é a resposta à pergunta: “Para que nos educamos uns aos outros?”

A resposta é simples, quando toda a preparação para ela já foi feita: nós nos educamos uns aos outros a fim de que possamos ser  felizes, isto é, nos realizar como pessoas, cidadãos e profissionais.

5. Conclusão: Educação e Felicidade

Fiz uma referência no início ao fato de que todo mundo quer ser feliz -e ao fato de que ficamos felizes quando nossos sonhos se realizam – ou, pelo menos, quando sentimos que estamos caminhando na direção de sua realização.

O quadrinho de Andréa Beheregaray diz que “A felicidade é o encontro do sonho com a realidade”. Essa frase diz a mesma coisa que eu havia dito, mas o diz de forma mais poética…

A educação é o mecanismo que a raça humana inventou para tentar promover o encontro de nossos sonhos com a realidade. Quando isso acontece, ficamos felizes, sentimo-nos realizados.

Muita gente – a grande maioria das pessoas – não percebe isso. Imagina que a educação é algo desagradável, que nos obriga a agir contra a nossa vontade e até mesmo contra a nossa natureza para aprender um monte de coisas que a gente quase nunca sabe para que serve. Mas estão errados, mesmo sendo a maioria. A educação e a aprendizagem são processos que, quando percebemos a conexão que têm com o nosso desenvolvimento, com a construção de nossos sonhos, com a transformação de nossos senhos em realidade, com a nossa busca da felicidade e da realização pessoal, profissional, e social, são agradáveis, mesmo quando enfrentamos dificuldades para leva-los adiante. Sem educação, a verdadeira educação, ninguém se desenvolve como ser humano, ninguém é capaz de sonhar, ninguém é capaz de transformar seus sonhos em realidade, ninguém é feliz e realizado.

…………

Em São Paulo, 15 de Novembro de 2015.