O Futuro da Escola na Sociedade da Informação – I

[ O texto abaixo, como diz o subtítulo, é uma “Introdução à Guisa de Prefácio” ao meu livro Tecnologia e Educação: O Futuro da Escola na Sociedade da Informação. Este livro foi escrito há quase exatamente 17 anos, nos meses de Novembro e Dezembro de 1998, a pedido do PROINFO, Programa de Informática na Educação do Ministério da Educação, que estaria publicando, em prazo curtíssimo, uma coleção de 20 livros sobre o tema “Informática para Mudança na Educação”.

Tanto quanto eu saiba, os textos nunca foram publicados na forma de livros impressos. Em um encontro do PROINFO em Brasília, em Maio de 1999, eles foram distribuídos (centenas de cópias) em formato “xerox”. Posteriormente, foram disponibilizados pelo MEC na Internet no site http://www.proinfo.gov.br/biblioteca/publicacoes/default.htm. Mas hoje (3 de Fevereiro de 2016) não se encontram mais nesse endereço.

[Nota de 4 de Fevereiro de 2016: Encontrei um link, no site MiniWeb Educação (http://miniweb.com.br/), que leva para uma cópia do livro inteiro em formato .pdf: http://www.miniweb.com.br/atualidade/Tecnologia/Artigos/colecao_proinfo/livro20_futuro_escola.pdf. EC.]

No caso do meu livro, em particular, não autorizei sua distribuição pelo MEC porque o MEC não cumpriu o acordo inicial feito (por escrito) acerca de direitos autorais quando me solicitou que escrevesse o livro. Mas eu o disponibilizei em um dos meus sites, que não mais está no ar, hoje. Vou, aqui neste blog, transcrever partes do livro que ainda me parecem atualizadas. O título geral da série de posts que vou publicar aqui é “O Futuro da Escola na Sociedade da Informação”. Ele será seguido de um algarismo romano que indicará a ordem em que o material estava no livro.

Parece que a intenção era publicar 26 livros – mas, aparentemente, apenas vinte foram concluídos. E, no site do PROINFO, apenas dezesseis foram disponibilizados.

Só por curiosidade, e em benefício dos historiadores, aqui está o título dos dezesseis livros que foram distribuídos, em .pdf, no site do PROINFO:

Livro 1 – Fernando José de Almeida e Maria Elizabeth Bianconcini de Almeida, Aprender Construindo: A Informática se Transformando com os Professores

Livro 2 – José Armando Valente, Fernanda Maria Pereira Freire, Heloísa Vieira da Rocha, José Vilhete d’Abreu, Maria Cecília Calani Baranauskas, Maria Cecília Martins e Maria Elisabete Brisola Brito Prado, O Computador na Sociedade do Conhecimento

Livro 3 – Léa da Cruz Fagundes, Luciane Sayuri Sato e Débora Laurino Maçada, Aprendizes do Futuro: As Inovações Começaram!

Livro 4 – Fernando José de Almeida e Fernando Moraes Fonseca Júnior, Aprendendo com Projetos

Livro 5 – Sônia Schechtman Sette, Márcia Ângela Aguiar e José Sérgio Antunes Sette,Formação de Professores em Informática na Educação: Um Caminho para Mudanças

Livro 6 – Não disponibilizado pelo MEC

Livro 7 – Eduardo Martins Morgado, Marcos Antonio Cavenaghi e Nicolau Reinhard,Preparação de Ambientes Informatizados em Escolas Públicas

Livro 8 – Maria Elizabeth Bianconcini de Almeida, O Aprender e a Informática: A Arte do Possível na Formação do Professor

Livro 9 – Maria Elizabeth Bianconcini de Almeida, Informática e Formação de Professores

Livro 10 – Não disponibilizado pelo MEC

Livro 11 – Lynne Schrum, Tecnologia para Educadores: Desenvolvimento, Estratégias e Oportunidades

Livro 12 – Fernando José de Almeida e Fernando Moraes Fonseca Júnior, Criando Ambientes Inovadores: Educação e Informática

Livro 13 – Não disponibilizado pelo MEC

Livro 14 – Maria Elisabete Brisola Brito Prado, O Uso do Computador na Formação do Professor: Um Enfoque Reflexivo da Prática Pedagógica

Livro 15 – Odete Sidericoudes, José Armando Valente, Rodolfo Miguel Baccarelli, Tadao Takahashi, Fernanda Maria Freire e Maria Elisabete Brisola Brito Prado, Aplicativos e Utilitários no Contexto Educacional – I

Livro 16 – Odete Sidericoudes, José Armando Valente, Rodolfo Miguel Baccarelli, Tadao Takahashi, Fernanda Maria Freire e Maria Elisabete Brisola Brito Prado, Aplicativos e Utilitários no Contexto Educacional – II

Livro 17 – Odete Sidericoudes, José Armando Valente, Rodolfo Miguel Baccarelli, Tadao Takahashi, Fernanda Maria Freire e Maria Elisabete Brisola Brito Prado, Aplicativos e Utilitários no Contexto Educacional – III

Livro 18 – Odete Sidericoudes, José Armando Valente, Rodolfo Miguel Baccarelli, Tadao Takahashi, Fernanda Maria Freire e Maria Elisabete Brisola Brito Prado, Aplicativos e Utilitários no Contexto Educacional – IV

Livro 19 – Bob Albrecht, Clint Mason Luscombe, Connie Widmer, George Firedrake, Linda Sheffield e Margareth Niess,  Atividades Computacionais na Prática Educativa de Matemática e Ciências

Livro 20 – Eduardo O C Chaves, Tecnologia e Educação: O Futuro da Escola na Sociedade da Informação

A seguir, a “Introdução à Guisa de Prefácio” do meu livro.]

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Introdução à Guisa de Prefácio

O título deste trabalho aponta para um dos maiores desafios da educação e da escola neste momento de transição para o terceiro milênio da era cristã: o desafio da tecnologia, em especial das tecnologias de informática, centradas no computador. O principal produto dessas tecnologias é a informação. Por causa desse complexo de tecnologias nossa era já foi batizada de “era da informação” e nossa sociedade de “sociedade da informação”. Nunca se teve tanta informação e nunca foi tão fácil localizá-la e aceder [1] a ela.

Mas a informática hoje abrange as telecomunicações e, especialmente depois da popularização da Internet, o computador se tornou mais do que um processador de informações: tornou-se um transportador de informações e, mais importante, um meio de comunicação entre as pessoas — segundo tudo indica, o meio de comunicação, por excelência.

Não resta dúvida de que essa tecnologia afetará profundamente a educação — como a tecnologia da fala, dezenas ou mesmo centenas de milênios atrás, a tecnologia da escrita, alguns poucos milênios atrás, e a tecnologia da impressão, cinco séculos atrás, também o fizeram, antes dela.

Quanto à escola, como hoje a conhecemos, a grande questão é se ela sobreviverá ao desafio que lhe coloca essa tecnologia. A escola de hoje é fruto da era industrial. Foi criada e estruturada para preparar as pessoas para viver e trabalhar na sociedade que agora está sendo substituída pela sociedade da informação. Nesta o fluxo de informações, o relacionamento entre as pessoas, o comércio, os serviços, o lazer e o turismo têm muito mais importância, como ocupações humanas, do que a produção de bens materiais, de que se encarregarão, em grande parte, os sistemas automatizados e os robôs. Uma sociedade deste tipo exige indivíduos, profissionais e cidadãos de um tipo muito diferente daqueles que eram necessários na era industrial. É de esperar que a escola, criada e organizada para servir a era anterior, tenha que “se reinventar”, se desejar sobreviver, como instituição educacional, no próximo milênio [2].

O uso que o professor vai fazer do computador em sala de aula, hoje, vai depender, em parte, de como ele entende esse processo de transformação da sociedade que vem acontecendo, em grande medida em decorrência do desenvolvimento tecnológico, e de como ele se sente em relação a isso: se ele vê todo esse processo como algo benéfico, que pode ajudá-lo, na sua vida e no seu trabalho, ou se ele se sente ameaçado e acuado por essas mudanças.

Por isso há, no início deste texto, uma seção relativamente extensa sobre a informatização da sociedade e o papel da tecnologia no desenvolvimento humano — enfocando principalmente a tecnologia mais afeta à educação. Se o professor não entender o que está se passando ao seu redor, dificilmente conseguirá integrar o computador com naturalidade e sem receios infundados à sua prática pedagógica – dentro e fora da sala de aula.

É importante que se registre aqui no início que algo curioso ocorre quando a informática começa a entrar em uma área específica (não só na educação): ela atua como agente catalisador que provoca e desencadeia discussões muito sérias acerca dos fundamentos e conceitos básicos, bem como das práticas firmemente estabelecidas, nessa área. Não raro a introdução do computador em uma área, ou mesmo apenas a perspectiva de sua introdução, tem levado os que nela militam a concluir que seria oportuno revê-la e, quem sabe, reestruturá-la por completo.

O termo “reengenharia de processos” foi cunhado por Michael Hammer porque, na área industrial, se percebeu que a mera introdução do computador para tornar mais eficientes, e, em muitos casos, totalmente automatizar, os processos usados, sem que esses processos fossem antes radicalmente revistos, do início ao fim, poderia levar ao que Hammer caracteriza como “asfaltar uma trilha de bois” [3], ou ao que Seymour Papert descreveu como “colocar motor de avião a jato em charrete — para ver se ajuda os cavalos a andar mais depressa” [4].

Na área de escritórios, há muito que se percebeu que não se trata de meramente “automatizar” rotinas já estabelecidas, mas, sim, com a ajuda da nova tecnologia (computadores, redes, etc.), de reinventar a forma de fazer as coisas, de criar novos fluxos de trabalho, freqüentemente baseados em equipes mediadas pela tecnologia, de permitir, sempre que possível, o teletrabalho, o gerenciamento à distância, etc. [5]

A área da educação não é exceção. Toda vez que se começa a discutir o uso da informática em sala de aula, acaba-se por discutir as questões mais fundamentais da educação, inclusive o próprio conceito de educação: Qual é a função da educação? Qual é o papel dos currículos, dos conteúdos, do ensino, enfim, da escola e do professor no processo educacional? O que dizer da definição de Émile Durkheim, segundo o qual a educação é o processo de transmissão de crenças, valores, atitudes e hábitos, conduzido pelas gerações mais velhas, com o objetivo de tornar as gerações mais novas aptas para o convívio social? [6] O que dizer, por outro lado, da tese de Jean-Jacques Rousseau de que educar é não interferir, é deixar a criança desabrochar, espontaneamente, seguindo a sua natureza, e assim concretizando as suas potencialidades? [7] E o que dizer, por fim, da tese de Sócrates de que a função do professor, semelhantemente à da parteira (que facilita, mas não dá à luz a criança), deve ser facilitar a aprendizagem, mas não ensinar? [8] É realista esperar que a criança construa todo o seu conhecimento por si só, aprenda tudo o que tem que aprender por descoberta, sem que haja ensino ou instrução? É lícito esperar, como nos lembra Karl Popper, que, se toda criança tiver que começar onde Adão começou, ela vá chegar muito além de onde Adão chegou? [9]

Por isso, antes de investigar o potencial do computador em sala de aula este texto procura discutir essas — e algumas outras — questões. Ele é voltado principalmente para o professor. Ele foi elaborado para ser usado como material de apoio que ajude o professor ainda não familiarizado com o computador a entender como esse equipamento pode ser usado como tecnologia educacional (dentro ou fora da escola) e a vislumbrar como ele, professor, pode vir a usar o computador em suas atividades (agora, especialmente em sala de aula).

O Ministério da Educação e do Desporto, através de sua Secretaria de Educação à Distância, tem estado, especialmente através do PROINFO — Programa de Informática na Educação, ativamente envolvido na transformação da escola. As Secretarias da Educação dos Estados e mesmo dos maiores municípios do país também possuem seus programas suplementares nessa área. Pedra angular desses programas é a capacitação dos professores para entender, e lidar com, as novas tecnologias.

Para que possa usar, crítica e conscientemente, as tecnologias de informática em seu trabalho, o professor precisa, portanto, mais do que simplesmente treinamento técnico: precisa enfrentar seriamente um conjunto de questões, a maioria de natureza teórica e conceitual, que tradicionalmente ficam no âmbito da filosofia da educação. Discute-se muito, hoje em dia, acerca do uso do computador na educação — mas muitas (talvez a maior parte) das questões envolvidas nessa discussão dizem respeito, não à informática, em si, mas, sim, à educação, porque, antes de começar a usar o computador em sala de aula, precisamos ter clareza sobre os vários modelos de inserção do computador nos processos de ensino e aprendizagem.

Por isto, este texto não pode deixar de explorar essas questões: elas estão na base de tudo o que se propõe, de cunho mais prático, como forma de usar o computador na educação, em geral, e na escola, em particular.

Entretanto, da mesma forma que não adianta, no momento, apenas treinar o professor para que aprenda a usar softwares aplicativos genéricos (processadores de texto, planilhas eletrônicas, gerenciadores de apresentação, gerenciadores de bancos de dados, etc.), sem discutir com ele, previamente, e com toda a seriedade, essas questões básicas de filosofia da educação, também não adianta apenas apresentar ao professor, em todo detalhe, as teses ditas construtivistas de Jean Piaget, Lev Vygotsky, Aleksandr Luria, e, ultimamente, até Paulo Freire, sem deixar bastante claro qual a relevância que essas questões teóricas têm para com as questões práticas relacionadas ao que fazer com o computador em sala de aula e sem orientar o professor sobre o que fazer na prática, em sala de aula, com o computador e os conteúdos curriculares que lhe cabe cobrir e cumprir. Hoje se discute muito esses autores. Mas como Papert bem assinala, é preciso um “microscópio mental” para detectar sua influência real em sala de aula. [10]

Obviamente, o que o professor eventualmente fará com o computador em sua sala de aula vai depender também da matéria pela qual é responsável, da faixa etária de seus alunos (ou das séries em que ele ministra a sua matéria),  e de um conjunto de outros fatores. Por isso, é muito difícil elaborar um texto que seja igualmente útil para professores de todas as matérias, em todas as séries.

O que se propõe aqui é a elaboração de um material que sirva de orientação basicamente para o professor das séries finais do Ensino Fundamental (5ª a 8ª), embora muitas das idéias sejam aplicáveis também para o professor do Ensino Médio e até mesmo para o professor das séries iniciais do Ensino Fundamental (1ª a 4ª) e da Educação Infantil.

Uma outra limitação é que o que se vai dizer procura levar em conta a relativa indisponibilidade, para o professor brasileiro, de software dito educacional.

Por isso, o texto vai discutir a utilização em sala de aula de programas (em Português) que geralmente acompanham todos os computadores comercializados hoje, como, por exemplo, Microsoft Office [11]. Não se deixará, porém, de discutir também a alternativa Logo, que possui ferrenhos defensores dentro e fora do país, e que está facilmente disponível em várias versões, em Português, pelo menos uma das quais (a do NIED da UNICAMP) é gratuita para escolas [12]. Dir-se-á também uma palavra sobre o uso de softwares educacionais facilmente encontráveis no mercado, em Português, geralmente distribuídos em CD-ROMs — embora sabendo-se que a maioria das escolas não os possui [13]. Por fim (“last, but not least”), também se discutirá o uso pedagógico da Internet, visto que ela está hoje geralmente disponível (mesmo que as escolas raramente se valham da ubiqüidade da rede para fins pedagógicos). Nesse caso, há materiais interessantes em Português e em outras línguas, especialmente em Inglês.

NOTAS

[1] Seguindo o exemplo dos portugueses, o verbo “aceder” (transitivo indireto, regendo a preposição “a”) é aqui usado, em sentido admitidamente um pouco diferente dos tradicionais, para significar “ganhar acesso”, na esperança de que venha a substituir o horrendo neologismo “acessar” (que tem sido conjugado como verbo transitivo). Como se verá neste texto, alguns neologismos (como o verbo “clicar”) são inevitáveis, porque não há nenhuma palavra portuguesa que corresponda a eles. Já o adjetivo “clicável” é mais difícil de digerir, e, por isso, embora usado com alguma parcimônia no texto, ainda assim foi sempre colocado entre aspas. Termos em Inglês geralmente usados na área de informática são usados no texto sem aspas ou itálico, como é o caso de “link”. Já o verbo “linkar” (que teria o particípio passado “linkado”) está claramente fora dos limites do aceitável.

[2] Seymour Papert, em The Connected Family: Bridging the Digital Generation Gap (Longstreet Press, Atlanta, GA, 1996), p.166,  afirma que o principal executivo da IBM escreveu um livro em que defende a tese de que a escola deve ser “reinventada”. Infelizmente ele não dá o nome do livro. A passagem no texto já estava escrita, porém, quando essa referência foi encontrada. É interessante que em seu livro anterior (The Children’s Machine: Rethinking School in the Age of the Computer [Basic Books, New York, NY, 1993]; tradução para o Português de Sandra Costa, A Máquina das Crianças: Repensando a Escola na Era da Informática [Editora ArtMed, Porto Alegre, RS, 1994], Papert defende a tese de que a escola deve ser “repensada” – algo que parece mais fraco do que “reinventada”.

[3] Michael Hammer e James Champy, Reengineering the Corporation: A Manifesto for Business Revolution (Harperbusiness, New York, NY, 1993), p.48; na tradução brasileira de Ivo Korytowski, Reengenharia (Editora Campus, Rio de Janeiro, RJ, 1994), p.34, a expressão original “paving cow paths” é traduzida como “asfaltar uma trilha de carro de boi”, tradução que reduz um pouco a força da expressão original.

[4] Seymour Papert, The Children’s Machine, op.cit., p.29.

[5] Ver Richard H. Irving e Christopher A. Higgins, Office Information Systems: Management Issues and Methods (John Wiley & Sons, New York, NY, 1991) e Ursula Huws, Werner B. Korte e Simon Robinson, Telework: Towards the Elusive Office (John Wiley & Sons, New York, NY, 1990).

[6] Essa definição, que aqui não é citada verbatim, se encontra em Sociologia da Educação, tradução brasileira de Lourenço Filho, 10ª edição (Edições Melhoramentos, São Paulo, SP, 1975), passim. Na pág. 41 se encontra a famosa definição: “A educação é a ação exercida, pelas gerações adultas, sobre as gerações que não se encontrem ainda preparadas para a vida social, [com o] objetivo [de] suscitar e desenvolver, na criança, certo número de estados físicos, intelectuais e morais, reclamados pela sociedade política, no seu conjunto, e pelo meio especial a que a criança, particularmente, se destine”.

[7] Essa tese se encontra exposta e defendida em Emílio  — ou da Educação, tradução de Sérgio Milliet (Difusão Européia do Livro, São Paulo, SP, 1968), passim. Passagens importantes se encontram às págs 14, 22, 67, 68, 69 : “Arrastados pela natureza e pelos homens por caminhos contrários, obrigados a nos desdobrarmos entre tão diversos impulsos, seguimos um, de compromisso, que não nos leva nem a uma nem a outra meta” [p.14]. “Observai a natureza e segui o caminho que ela vos indica. . . . Por que a contraria[i]s? Não vedes que, pensando corrigi-la, destruís sua obra, impedis o efeito de seus cuidados?” [p.22]. “O único indivíduo que faz o que quer é aquele que não tem necessidade, para fazê-lo, de por os braços de outro na ponta dos seus; do que se depreende que o maior de todos os bens não é a autoridade e sim a liberdade. O homem realmente livre só quer o que pode e faz o que lhe apraz. Eis minha máxima fundamental. Trata-se apenas de aplicá-la à infância, e todas as regras da educação vão dela decorrer” [p.67]. “Ninguém tem o direito, nem mesmo o pai, de mandar a criança fazer algo que não lhe seja útil . . . Há duas espécies de dependência: a das coisas. que é da natureza; a dos homens, que é da sociedade” [p.68]. “Conservai a criança tão-somente na dependência das coisas; tereis seguido a ordem da natureza nos progressos de sua educação. Não ofereçais a suas vontades indiscretas senão obstáculos físicos ou castigos que nasçam das próprias ações e de que ela se lembre oportunamente. Sem proibi-la errar, basta que se a impeça de fazê-lo. Só a experiência e a impotência devem ser para ela leis” [p.69].

[8]  A famosa autocaracterização de Sócrates como parteira está no início do diálogo platônico Teeteto. É daí que vem o termo “maiêutica”: em Grego, o verbo grego maieuesthai quer dizer “agir como parteira”, e o substantivo maia quer dizer “parteira”. No texto Sócrates descreve a atividade dele como a de uma parteira. Por isso, muitos têm considerado o modelo como se aplicando ao filósofo, mas, neste contexto, ele se aplica até melhor ao professor.

[9]  Vide “Truth, Rationality and the Growth of Scientific Knowledge”, in Conjectures and Refutations: The Growth of Scientific Knowledge (Harper Torchbooks, New York, NY, 1963, 1965), p.238. Cp. também “Towards a Rational Theory of Tradition”, no mesmo livro, p.129. Na tradução brasileira de Sérgio Bath, sob o título Conjeturas e Refutações (Editora Universidade de Brasília, Brasília, DF, 1972), as passagens mencionadas estão nas pp. 264 e 155, respectivamente.

[10] Seymour Papert, The Connected Family, op.cit., p.162.

[11] Microsoft Office inclui fundamentalmente Microsoft Word, Microsoft Excel, Microsoft PowerPoint e Microsoft Access.

[12] A versão do NIED, chamada Slogo para Windows 95, pode ser obtida através de download a partir do site http://www.nied.unicamp.br/projetos/softw/logow/index.htm.

[13] A maioria dos CD-ROMs discutidos foi distribuída às escolas estaduais de São Paulo que receberam a coleção de CD-ROMs chamada “Ensino Online” da Secretaria de Estado da Educação.

Eduardo O C Chaves
Campinas, Dez/98

Transcrito aqui em Salto, 3 de Fevereiro de 2016

Educação, Sonhos e Felicidade

Il faut cultiver notre jardin
(“É preciso cultivar nosso jardim”)
Voltaire, Candide (1759)

Felicidade Sonhos e Realidade

 CONTEÚDO

1. Introdução: Educação e Sonhos

2. Algumas Concepções de Educação

A. A Concepção Tradicional da Educação

B. Uma Concepção Mais Modernosa da Educação

C. Uma Terceira Concepção da Educação

D. Apreciação dessa Terceira Concepção

3. As Instituições Educacionais

A. Onde se Geram e Concebem os Sonhos?

B. Onde Nascem os Sonhos?

C. “Céu de Outubro”

D. A Escola

E. Os Professores

4. Educação como Desenvolvimento Humano

A. Por Que Precisamos de Educação?

B. As Tartarugas Marinhas

C. O Bebê Humano ao Nascer Requer Educação

D. Educação: Uma Primeira Aproximação

E. O Ser Humano Nasce com Grande Capacidade de Aprender

F. O Ser Humano Nasce com Programação Genética Mínima e Aberta

G. O Ser Humano Nasce com Capacidade de Sonhar

H. O Ser Humano Nasce com Capacidade de Escolher e Decidir

I. Educação: Uma Aproximação Melhor

J. Por que Precisamos de Educação?

K. Para que Nos Educamos?

5. Conclusão: Educação e Felicidade

………….

1. Introdução: Educação e Sonhos

Todo mundo quer ser feliz.

Ficamos felizes quando nossos sonhos se realizam – ou, pelo menos, quando sentimos que estamos caminhando na direção de sua realização.

Um sonho é mais do que uma mera vontade ou um mero desejo. Eu posso ter uma vontade ou um desejo enorme de tomar um sorvete neste momento. Isto é algo de curto prazo – para o agora, ou para o futuro muito próximo. Mas eu tenho um sonho de ser dono de uma fábrica de sorvetes. Sonhos são desejos estendidos, por assim dizer, de médio e longo prazo. Eu sonho “um dia” ser dono de uma fábrica de sorvetes.

Isso quer dizer que felicidade tem que ver com sonhos, com a realização de sonhos, muito mais do que com a satisfação de meras vontades e desejos.

A educação é essencial nesse contexto, porque educação também tem que ver com sonhos. Isso pode parecer estranho para alguns de vocês que pensam que a educação tem que ver com estudar português, matemática, história, geografia, biologia, física, química.

Na verdade, a educação tem que ver com sonhos de três maneiras distintas, mas relacionadas.

Educação é o processo através do qual a gente aprende basicamente três coisas:

  • a sonhar por si próprio, de modo a se tornar capaz de sonhar os próprios sonhos;
  • a transformar esses sonhos, por vezes desconexos, em um projeto de vida coerente;
  • a descobrir e aprimorar nossos talentos naturais e, em cima deles, desenvolver as habilidades e competências necessárias para transformar esse projeto de vida em realidade.

Vou conversar um pouco com vocês sobre essas coisas: felicidade, sonhos, educação, e qual é o papel do professor em tudo isso.

Mas antes eu quero apresentar a você um grande educador. Ele se chama Ken Robinson. É Inglês. Na verdade, a Rainha da Inglaterra, lhe deu um título importante: Sir. Todo mundo o chama, portanto, de Sir Ken Robinson. Ele é meio manco de uma perna, mas isso não é importante. O importante é o que ele diz. E uma das coisas importantes que ele diz é esta (nas minhas palavras):

Nenhuma educação fracassa quando ela é capaz de reunir e integrar sonhos (que ele chama de paixões)  e talentos.

Vamos ver por quê.

2. Algumas Concepções de Educação

A. A Concepção Tradicional da Educação

Há gente (que adota uma visão da educação chamada de tradicional) que acredita que educar é transmitir uma quantidade enorme de informações – chamados pelo nome nobre de conhecimentos – de uma geração para a outra: isto é, dos mais velhos para os mais novos.

O conjunto das informações que a educação tradicional acha que devem ser transmitidas pelos mais velhos aos mais novos é chamado de currículo.

Antes de mais nada, portanto, é preciso definir o currículo: decidir quais informações vão ser transmitidas pelos professores aos alunos.

Depois é necessário organizar o currículo: dividir o conjunto de informações a serem transmitidas em pacotinhos, chamados matérias, que, por sua vez são divididas em séries, devidamente ordenadas, uma detrás da outra, para facilitar o trabalho dos professores (os mais velhos) no seu trabalho de transmitir as informações para os alunos (os mais novos). A matéria prevista para uma determinada série – por exemplo, a matemática que precisa ser transmitida na quinta série – é geralmente chamada de disciplina.

O trabalho dos professores é chamado de ensino. Ensinar é apresentar o conteúdo de uma disciplina de forma compreensível e atraente.

O trabalho dos alunos é chamado de aprendizagem. Aprender é engolir (absorver e assimilar) o conteúdo de uma disciplina e, quando solicitado, mostrar que o conteúdo está “lá dentro” da cabeça.

Dentro dessa visão tradicional, o professor educa o aluno – razão pela qual o professor é chamado de educador, e o aluno de educando. Um educando é um aprendente, uma pessoa que está aprendendo, ou que está a aprender, como se diz em Portugal.

Por isso, muitos teóricos da educação, dentro desse processo tradicional, gostam de dizer que a educação acontece através de um processo de ensino-aprendizagem (os dois termos ficando assim grudadinhos um ao outro por um hífen).

B. Uma Concepção Mais “Modernosa” da Educação

Por outro lado, há gente (que adota uma visão da educação mais modernosa, chamada de construtivismo), que acredita que, embora a gente possa transmitir informações uns aos outros (até o aluno pode transmitir informações ao professor, quando este pergunta, “qual o seu nome, menino?”, e o aluno responde “Juquinha, professor…”), ninguém pode transmitir conhecimentos, que seria o que realmente importa, em pacotinhos.

Conhecimentos são coisas caracterizáveis como modelos ou esquemas mentais que cada pessoa tem de construir por si próprio – razão por que esse ponto de vista se chama de construtivismo.

O trabalho do professor, neste caso, é facilitar a aprendizagem do aluno, isto é, facilitar o trabalho do aluno que é construir o seu próprio conhecimento.

Há construtivistas (os mais radicais) que não gostam de falar que facilitar a aprendizagem é o jeito construtivista de ensinar. Para eles, falar em “ensino construtivista” é um contrassenso. Eles preferem falar em educação construtivista, em que o aluno constrói seus conhecimentos (isto é, se educa), e o professor facilita essa construção – ajuda, apoia, incentiva, instiga, provoca, etc. – mas não ensina. Essa autoconstrução do conhecimento por parte de cada um é o que os construtivistas (especialmente os mais radicais) chamam de aprendizagem. Nessa visão, a aprendizagem acontece sem o ensino, propriamente dito.

Essa visão mais modernosa já foi muito aceita, mas hoje tem recebido muita crítica.

C. Uma Terceira Concepção da Educação

Paulo Freire (que eu considero, junto com o Rubem Alves, nosso educador maior) discorda dos dois, tanto dos tradicionalistas como dos construtivistas (pelo menos dos mais radicais).

Contra os tradicionalistas, Paulo Freire disse, taxativamente, que ninguém educa ninguém. Ponto. Ele criticou muito os tradicionalistas, dizendo que eles acham que a educação (pelo menos nas escolas) é algo parecido com depósitos bancários: o professor empacota uma série de informações em caixinhas (suas aulas, por assim dizer) e transfere as caixinhas para a mente dos alunos ao longo do curso. Não é assim que a coisa funciona, disse ele.

Contra os construtivistas (mais radicais) Paulo Freire disse, também taxativamente, que ninguém se educa sozinho.

Mas se ninguém educa ninguém, e ninguém se educa sozinho, como é que se dá educação?

Para Paulo Freire, nós nos educamos uns aos outros.

Quem? Todos nós, velhos e novos, experientes e sem experiência, professores e alunos. Vocês ouviram direitinho: também o aluno educa o professor, e não só este, aquele.

Quando e onde fazemos isso? Fazemos isso não só quando somos crianças, adolescentes e jovens, mas o tempo todo. Fazemos isso, diz ele, quando interagimos, nos comunicamos, dialogamos, discutimos, debatemos uns com os outros, tanto professores como alunos. (Paulo Freire chama isso de formas variadas de “comunhão”).

E isso não acontece, necessariamente, apenas na escola (onde, normalmente, há pouca discussão e debate, porque lá apenas um fala e os outros ouvem…). Acontece, literalmente, em qualquer lugar, porque o mundo é o maior ambiente de aprendizagem que existe, e é ele que “mediatiza” a nossa educação. Esse tipo de educação acontece quando a gente está trabalhando, brincando, negociando o que fazer, resolvendo conflitos, etc.

Assim, dentro da visão dessa terceira concepção de educação, nós todos somos pessoas que educam e que são educadas através daquilo que fazemos, para e com os outros, com o objetivo de viver uma vida que pretendemos que seja feliz. Nenhum de nós é capaz de fazer isso sozinho. Dependemos de muita gente, a começar dos nossos pais e da nossa família, da comunidade em que vivemos, das organizações a que pertencemos, dos grupos com os quais nos divertimos e, oportunamente, das equipes com as quais trabalhamos.

D. Apreciação dessa Terceira Concepção

Eu tendo a concordar mais com o Paulo Freire.

Paulo Freire não sugere, nem muito menos acredita, que o papel da escola e do professor fiquem reduzidos e desprestigiados nesse quadro. Muito pelo contrário. Mas esse papel, tanto em um caso (da escola) como no outro (do professor), precisa ser revisto: ressignificado e redefinido, na verdade, totalmente reconceitualizado.

Além disso, o professor de certo modo perderá o seu papel pretensamente exclusivo de educador – uma exclusividade que nunca deveria ter existido, nem mesmo segundo a nossa Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDBEN. Eis o que ela diz em seu Artigo 1o:

“Art. 1º A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais.

1º Esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predominantemente, por meio do ensino, em instituições próprias.

2º A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social.”

Se a educação é o processo mediante o qual aprendemos a sonhar por nós mesmos, aprendemos a transformar nossos sonhos em projeto de vida, e aprendemos a transformar nosso projeto de vida em realidade, a missão precípua da educação – e das instituições e pessoas que buscam promove-la – não é transmitir informações e conhecimentos organizados em disciplinas, mas, sim:

  • liberar ao máximo nossa imaginação e criatividade, e ajudar-nos a deixar para trás nossa dependência natural para nos tornar gradualmente independentes e, melhor ainda, interdependentes, a fim de que consigamos sonhar nossos próprios sonhos pessoais e os sonhos coletivos das comunidades a que escolhemos pertencer;
  • fazer um esforço gigantesco para conhecer, em sua individualidade, os talentos naturais de cada um e os sonhos e interesses pessoais e diferenciados de cada um, a fim de que possam transformar seus sonhos em projeto de vida e seu projeto de vida em realidade, desenvolvendo, em cima de seus talentos naturais, e de forma personalizada, as habilidades e competências necessárias para que isso aconteça.

3. As Instituições Educacionais

Quais são as instituições que buscam promover a educação?

Em princípio, deveriam ser todas. Há muita gente dizendo hoje que a escola não é, nunca foi, nem deve ser a única instituição a promover a educação. Quais são as outras? Todas – em especial aquelas mencionadas na LDBEN: o lar, a família estendida, os vizinhos, a comunidade, as organizações que promovem a cultura (galerias, pinacotecas, museus, teatros, casas de espetáculo, etc.), meios de comunicação de massa, locais de diversão e entretenimento, ambientes de trabalho, organizações diversas (empresas, fundações, ONGs, sindicatos, igrejas, clubes esportivos, associações de filantropia e caridade, etc.), e assim vai. A sociedade inteira. Até mesmo a escola…

A. Onde se Geram e Concebem os Sonhos?

Como são concebidos os sonhos de cada um? Da forma em que quase qualquer coisa é concebida, inclusive nós: em interação, em comunhão (como prefere Paulo Freire). Pequenos ainda nós observamos o mundo ao nosso redor, interagimos com nossos pais e demais parentes, com nossos vizinhos e demais amigos, vemos gente fazendo isso e fazendo aquilo, um sendo carpinteiro, outro pintor, outro médico, outro advogado, outro jogador de futebol, outro cantor, outro bombeiro, outro professor, outro diretor de escola, outro dono de uma quitanda, outro um pescador… E a gente começa a pensar: o que será que eu vou ser quando crescer? Em princípio, cada um pode ser qualquer coisa – desde que queira ser aquilo, tenha algum talento natural para a coisa, e se disponha a adquirir as habilidades e competências necessárias que lhe permitam fazer a coisa bem e com prazer. É assim que os sonhos são concebidos. Em qualquer lugar, a qualquer hora, em qualquer fase da vida. Não há uma fase da vida em que você se torna incapaz de gerar e conceber sonhos.

B. Onde Nascem os Sonhos?

Os sonhos, depois de concebidos, nascem, são dados à luz. Mais uma vez, a maternidade dos sonhos é ampla. Eles podem nascer em qualquer lugar – e mesmo a qualquer momento e em qualquer fase da vida. O nascimento depende, de o sonho ter sido concebido. Mas o tempo de gestação varia muito de pessoa para pessoa, de sonho para sonho…

Eu diria que, por incrível que pareça, a casa e a escola, esta pelo menos na forma em que a conhecemos, não são boas maternidades de sonhos. Na verdade, em muitos casos elas, por várias razões, tentam matar sonhos em gestação, tentando nos convencer de que nós não damos para isso ou para aquilo… Vou dar um exemplo retirado da vida real mas que virou um livro e um filme.

C. “Céu de Outubro”

Há um filme, nesse contexto, que eu recomendo para todos vocês. Chama-se Céu de Outubro. Não deixem de assisti-lo. Ele é baseado num livro que é uma autobiografia.

Este filme de 1999 (que tem no original o título de October Sky) é dirigido por Joe Johnston e tem, no papel principal, Jake Gyllenhaal, representando o estudante Homer Hickan Jr.

A história acontece principalmente em Coalwood, estado de West Virginia, nos Estados Unidos, a partir de 1957. Coalwood é uma cidade pequena, cuja economia gira em torno de uma mina de carvão – na verdade, toda a vida da cidade gira em torno da mina. É nela que Homer Hickan Sr. (representado por Chris Cooper), pai do jovem Homer, trabalha, como gerente.

O irmão mais velho de Homer jogava no time de futebol da Escola de Ensino Médio da cidade e foi convocado para seguir carreira no esporte, em nível universitário, para o orgulho do pai, que via aberta a porta para seu filho mais velho se tornar jogador de futebol profissional. O sonho do pai, porém, de ver um de seus filhos sucedê-lo em sua função na mina, recai sobre Homer. Este é selecionado, portanto, para transformar em realidade o sonho do pai – não o sonho dele.

Dele mesmo, Homer não parecia ter nenhum sonho. Aliás, não parecia ter nem interesse especial em nada, nem talento natural para nada. Um zero à esquerda, segundo tudo indicava. Mas como o pai havia resolvido que ele um dia iria substituí-lo como gerente da mina, ele deixou que as coisas caminhassem sem contestar o pai. Tudo indicava, portanto, que, um dia, ele seria o novo gerente da mina, sucedendo ao pai. Mas ele não encarava essa possibilidade com nenhum entusiasmo.

Na verdade, ele não encarava nada com entusiasmo, quanto mais com paixão…

Até que um dia se anunciou na cidade dele que o satélite artificial russo, Sputnik, iria passar bem por cima da cidade, e poderia ser visto no céu ao final do dia – por volta das 18h. Era o mês de Outubro de 1957.

De tardinha, com toda a população da cidade na praça, Homer, ao ver aquele objeto brilhante cortar os céus, quilômetros acima da superfície, na hora prevista, concebeu seu próprio sonho: conseguir fazer um foguete que voasse como aquele satélite (removendo a vergonha que caiu sobre os americanos de ver os maiores rivais colocar em órbita, antes deles, um satélite artificial). Ele tomou a decisão ali naquele instante de aprender o que fosse preciso para construir um foguete como aquele partiu imediatamente para a ação. Ele queria ir trabalhar na NASA. Foi para a maternidade, por assim dizer. Seu  sonho teria um gestação rápida. Tinha de nascer imediatamente. Esse seria o seu projeto de vida. Para realizá-lo, faria o que fosse necessário.

A primeira maternidade que ele procurou foi sua própria casa. Chegando em casa, comunicou sua decisão ao pai e à mãe durante o jantar. A reação do pai foi taxativa: “O quê? Você vai ser engenheiro espacial? Isso não é coisa pro seu bico! Para ser engenheiro espacial, trabalhar na NASA, você ser precisa ser mais do que inteligente: precisa ser brilhante, quase gênio! E precisa estar disposto a trabalhar duro. Você, além de meio tapado, é vagabundo… Às vezes eu acho que nem pra gerente da mina de carvão você serve!”

Brutal, não? O próprio pai de Homer estava tentando matar o sonho em gestação de Homer, impedir que continuasse a viver, impedir que nascesse. Isso se chama abortar um sonho. E era a família que estava fazendo isso. A primeira maternidade que Homer buscou.

Triste, Homer foi dormir. No dia seguinte procurou outra maternidade: a escola.

Como disse, até aquele instante Homer havia sido um aluno medíocre na escola. Como a maior parte dos colegas, não gostava da escola. Enfrentava dificuldades especialmente com ciências (física, química) e matemática – disciplinas de que, como muitos outros alunos, não gostava. Logo descobriu, porém, que para realizar o seu sonho, teria de aprender, e muito bem, primeiro matemática, depois física, e, por fim, química (para lidar, por exemplo, com os combustíveis).

Foi falar primeiro com seus professores de matemática, física e química – os mestres das áreas que ele achava que eram importantes para a concretização de seu sonho – para pedir a sua orientação.  A resposta deles, embora um pouco mais delicada e menos brutal do que a do pai, era na mesma linha… “Pense bem, talvez seja bom você pensar em fazer alguma outra coisa, algo que não exija tanto de você, algo para que você tenha sido mais bem talhado…” Para se tornar um cientista capaz de construir um foguete, argumentaram, é preciso ser quase gênio, ser muito bom em matemática e nas ciências naturais – e isso você certamente não é.

Frustrado, ele ficou zanzando pelos corredores, com uma cara triste. Uma única professora veio procura-lo para lhe perguntar qual era o problema. Mas ela era a professora de Inglês (representada por Laura Dern no filme) – que, imaginava Homer, não teria como ajudá-lo no seu aprendizado técnico. Mas ela podia ajuda-lo de outras maneiras, talvez até mais importantes.

Primeiro, ela lhe deu os parabéns por ter finalmente descoberto o que queria ser e fazer na vida – por ter concebido um sonho, por ter-se engravidado de um sonho tão bonito! A ocasião era especial, merecia celebração. Mas Homer lhe disse o que haviam falado seu pai e os demais professores. Deixe comigo, disse a professora de Inglês. Eu conheço um colega seu, do qual ninguém gosta muito, porque ele é caxias, cdf (aquilo que hoje chamaríamos de “nerd”). Além de tudo, é um menino magro, feio, sardento… e, por cima, pobre… Mas ele é extremamente inteligente e obcecado por matemática e ciências. Essa combinação de características, especialmente a inteligência e a obsessão pela matemática e ciências, o tornaram malquisto e, portanto, arredio. Eu falo com ele e, depois você vai procura-lo. Assim que a professora falou com o “nerd”, Homer foi procurá-lo, contou-lhe de seu sonho, e ganhou um aliado. Os dois conseguiram recrutar mais dois colegas, e assim se formou uma “equipe”, liderada por Homer, para tocar o projeto…

(Homer não tinha talento nato para liderança: mas tinha de desenvolver essa competência, pois ela era indispensável para seu sonho, agora já nascido e em vias de se desenvolver…)

As primeiras tentativas foram frustrantes. Conseguiram que um dos subordinados do pai de Homer na mina usinasse umas peças para eles e completaram um primeiro protótipo do foguete – mas este explodiu no quintal da casa de Homer e na explosão destruiu um pedaço da cerca da casa. Pior, o pai descobriu que seu subordinado os havia ajudado e ameaçou despedi-lo.

Outro protótipo, que voou alto, se perdeu na mata – perto de um lugar onde havia um incêndio florestal, que foi prontamente atribuído ao foguete perdido, tanto pela polícia como pelas autoridades da escola, que agora puniram Homer e os colegas.

E assim vai. Não é necessário narrar todos os detalhes.

A única pessoa que encorajava Homer e sua equipe, e que enfrentava seus colegas e superiores na escola, era sua professora de Inglês. Ela assumiu a função de jardineira do sonho dele. Era elaa que cuidava do sonho, que regava a plantinha, que colocava o adubo do entusiasmo e da motivação quando as coisas ficavam difíceis. Era ela que arrancava os matinhos que tentavam sufocar a plantinha com gozação e ridículo.

Pouco a pouco, depois de muitas tentativas e erros, o projeto começou a dar certo. A professora de Inglês estimulou o grupo a inscrever o projeto na Feira de Ciências da escola, depois numa feira estadual, depois numa feira nacional – e o projeto ganhou o primeiro prêmio em todas elas (Homer recebendo o prêmio das mãos de um famoso cientista espacial da NASA na feira nacional).

O filme termina depois da vitória na feira nacional. Mas não sem antes informar que Homer transformou seu sonho em realidade. Depois de formado, foi contratado pela NASA – onde trabalhou durante muitos anos como engenheiro, estando atualmente aposentado. Os “extras” que a edição em DVD fornece contêm entrevista com o “Homer verdadeiro”, que foi o autor do livro (autobiográfico) e consultor da equipe que fez o filme.

O que dizer dessa história?

Primeiro, é a história de um sonho, que representava um projeto de vida, e que se tornou realidade.

Segundo, é a ilustração do fato de que, antes de transformar um sonho em realidade, é preciso sonhar esse sonho, e para sonhá-lo, é preciso, frequentemente, lutar contra os sonhos que os outros estão sonhando para nós – especialmente a nossa família. Antes de ver o Sputnik, Homer não tinha sonho algum: era uma pessoinha medíocre. Quando passou a ter um sonho, ganhou propósito na vida – e esse propósito lhe deu coragem para enfrentar o pai, os professores e todos aqueles que achavam que seu sonho era ridículo – ou pelo menos utópico. Não é toda instituição que quer servir de maternidade para nosso sonho nem toda pessoa que está disposto a assumir a função de parteiro do sonho – muito menos de seu jardineiro e cultivador.

Terceiro, é a ilustração do fato de que, assim que temos um sonho, que define o nosso projeto de vida, as coisas começam a entrar em foco e se torna claro quais são as habilidades e competências que temos de desenvolver, as coisas que devemos saber, os conhecimentos que temos de adquirir, os valores que temos de adotar, as atitudes que temos de assumir. Homer não gostava de matemática e das ciências naturais. Na verdade, parecia não gostar de nenhuma matéria escolar. Passou a gostar de algumas, porque agora via que sem elas não conseguiria transformar o seu sonho em realidade. Homer não gostava de desobedecer ao pai e de confrontá-lo. Agora concluiu que não havia outra saída. Homer era razoavelmente indiferente a tudo e de certo modo acomodado. Agora se viu tomado de uma verdadeira obsessão por seu projeto e moveu céu e terra para transformá-lo em realidade.

Quarto, é a demonstração de que, quando temos um propósito (decisão), quando esse propósito está energizado por uma paixão (emoção), quando esse propósito está instrumentado por um plano estratégico (pensamento, razão), e quando esse propósito é acompanhado de persistência e determinação (atitudes) no curso de ação escolhido, mesmo diante de grandes adversidades, chegaremos aonde nos propusemos chegar – e até mesmo além. (O sonho original de Homer não envolvia tornar-se escritor, por exemplo – esse foi um segundo sonho que se agregou ao primeiro).

D. A Escola

Concebidos e nascidos os sonhos, a escola é o jardim em que os sonhos são cultivados, criam raízes, crescem, amadurecem, se encorpam. Toda escola, e não apenas o chamado Jardim da Infância, deve ser encarada com um jardim, um lugar especial e relativamente protegido, com terra fértil, bem regada e adubada, em que os sonhos de cada um são cultivados.

Um jardim é um lugar em que flores e outras plantas, de natureza a mais diversificada, podem crescer sem maiores riscos, até que, se for o caso, estejam prontas para serem transplantadas para ambientes não tão hospitaleiros.

A escola-jardim deve ser um ambiente de aprendizagem personalizado, em que cada um pode cultivar o seu sonho – por mais diferente e mesmo estapafúrdio que seja – e que lhe oferece os mais variados recursos para faze-lo, como viveiros, estufas, etc..

Mas um espaço personalizado de educação é principalmente um ambiente em que cada um pode cultivar o seu sonho pessoal, em que sonhos alheios não lhe são impostos, em que alguém pode não só estudar matemática e ciências, mas se aprofundar nessas matérias, SE o seu sonho é ser engenheiro especial (ou algo afim), mas em que esses estudos não sejam obrigatórios para outros, se o sonho desses outros é ser romancista, ou advogado, ou pintor, ou artista de cinema, ou jogador de futebol, ou chef de cozinha, ou marceneiro, ou roqueiro, ou rabino, ou médico, ou fisioterapeuta, ou fonoaudiólogo, ou, então, agricultor que planta batata, quiabo, e caju… Se eu quero ser escritor de ficção, tenho de estudar línguas, literaturas, história, psicologia, filosofia… Se eu quero ser médico ou enfermeiro, eu tenho de estudar o corpo humano, sua anatomia e fisiologia, as condições ambientais e alimentares que contribuem para que ele funcione bem ou melhor e as que contribuem para que ele se funciona mal, se degenere, e oportunamente morra mais cedo do que deveria…

Um espaço personalizado de educação não é apenas um espaço em que eu posso escolher os meios (a mídia) através dos quais aprendo: um lendo, outro vendo um vídeo, outro fuçando no computador… (embora certamente envolva isso também – mas isso é apenas uma parte pequena, e nem de longe a mais importante, do que se entende por personalização da educação).

E. Os Professores

Os que hoje são chamados de professores, mas que, muitas vezes, nada professam e são meros dadeiros de aulas, passam a ser, nessa escola-jardim onde sonhos são cultivados, os jardineiros de sonhos, que cuidam dos sonhos dos alunos, para que não morram por falta de nutrientes, para que consigam sobreviver os terrenos às vezes difíceis em que nasceram, para que enfrentem o sol escaldante, as chuvas exageradas, os deslizamentos de terra, para que combatam o trabalho negativista de céticos e pessimistas que acham que seu dever é fazer com que as pessoas abandonem os seus sonhos, sacrificando-os no altar de uma suposta realidade em que só privilegiados são bem sucedidos na vida e conseguem realizar seus sonhos e alcançar a felicidade.

É fácil ser jardineiro de sonho? Não é. É muito mais difícil do que ser dadeiro de aula que não conhece os seus alunos, que não sabe quais são seus sonhos, que não se preocupa se eles já conceberam um sonho, que não se interessa em ajuda-los a parir seus sonhos, a cultiva-los, a fazer com que cresçam fortes e floresçam e que tragam frutos, sombra e beleza para a vida dos outros.

4. Educação como Desenvolvimento Humano

Vou elaborar aqui um pouco a concepção de educação que está por trás da visão que venho expondo e defendendo…

Quero começar perguntado: “Por que é que precisamos nos educar uns aos outros?”

A. Por Que Precisamos de Educação?

Vou começar lá atrás, antes mesmo de entrarmos no nível mais baixo da escola (disponibilizada, digamos, em creches): quando nós nascemos.

E vou começar comparando a condição humana com a condição de outras espécies animais, representadas, em caso paradigmático, pelas tartarugas marinhas.

Os bebês de várias espécies animais já nascem, em maior ou menor grau, basicamente prontos para a vida. Como vou usar as tartarugas marinhas como paradigma de outras espécies animais, é delas que vou falar. Uso-as como paradigma porque o caso delas, como o nosso, é extremo — só que os dois termos de comparação, elas e nós, estão em extremos opostos. O que direi delas, tartarugas marinhas, se aplica, mutatis mutandis, no mesmo ou em menor grau, a outras espécies animais — não se aplicando nem um pouco à nossa espécie animal: a espécie dos seres humanos.

B. As Tartarugas Marinhas

Uma tartaruga marinha fêmea e adulta, quando está na época de pôr seus ovos, procura uma praia, em geral aquela em que ela mesma nasceu, cava um buraco na areia, ali põe seus ovos, cobre os ovos com areia para que não sejam facilmente encontrados por predadores, e vai embora. Está terminado o papel da tartaruga-mãe — na verdade, o papel de qualquer tartaruga adulta — na formação de seus filhotes: ela apenas os gera dentro de seus ovos.

A tartaruga-mãe nem mesmo dá à luz os seus bebês. Quando chega a hora de os ovos racharem, as tartaruguinhas marinhas sabem que precisam sair deles, e o fazem sozinhas; elas também sabem que devem ou precisam ir “para cima”, isto é, para a superfície da areia (não havendo nenhum caso conhecido de uma que tenha cavado “para baixo” e, digamos, ter chegado do outro lado da Terra); elas ainda sabem construir o seu caminho por dentro da areia para chegar à superfície (a praia); mais surpreendentemente, elas também sabem que devem ou precisam ir para o mar (não terra adentro); sabem andar de modo a chegar até o mar; chegando ao mar, sabem que precisam ir mar a dentro; sabem nadar; no mar mais profundo, sabem o que devem ou precisam comer e o que não podem comer; comendo, se desenvolvem e, a menos que sejam devoradas por um animal maior, chegam à idade adulta, quando vão também gerar seus bebês e o ciclo se reinicia.

As tartaruguinhas marinhas não precisam de educação. Por isso não vivem em família, por isso não frequentam escola, por isso não têm professores. Elas nascem prontas para a vida.

Por já nascerem prontas para a vida, as tartaruguinhas marinhas nascem com reduzidíssima capacidade de aprender. Afinal de contas, elas já nascem sabendo basicamente tudo o que precisam fazer para viver sua vida: já nascem autônomas e independentes, portanto – nem interdependentes precisam ser.

O tipo de vida que elas têm possibilidade de viver, porém, é limitado: elas vão todas ser tartaruguinhas marinhas “de um tipo só” e “de um jeito só” — da forma em que seu código genético foi programado. E o código genético de todas elas é fechado: programado com o mesmo conteúdo, e basicamente inalterável. Por isso, exceto pelo seu tamanho e alguns outros aspectos internos relativos ao seu desenvolvimento biológico, quando uma tartaruguinha marinha nasce ela já está pronta, já sabe fazer tudo aquilo de que precisa para viver sua vida: tem, portanto, total autonomia e independência. Não precisa aprender mais nada — nem que queira. Mas o interessante é que ela não quer, porque não é dotada de liberdade de escolha, decisão e ação…

C. O Bebê Humano ao Nascer Requer Educação

O bebê humano, em contraste, nasce, segundo parece, totalmente despreparado para a vida. Ao sair do ventre materno, ele não sabe fazer literalmente nenhuma das coisas necessárias para que possa sequer sobreviver. Na realidade, não sabe sequer identificar aquilo de que precisa para poder sobreviver. Não sabe o que pode e o que não pode comer. Não sabe se comunicar. Não sabe andar. Se está com frio, não sabe encontrar um lugar mais aquecido, ou buscar um agasalho, ou identificar quem possa prover-lhe calor. O bebê humano, ao nascer, é totalmente incapaz de cuidar de si próprio. Nasce, portanto, sem nenhuma autonomia — o que vale dizer que nasce totalmente dependente: se alguém não cuidar dele, ele morre. Ele não é sequer interdependente.

A tartaruguinha marinha não é interdependente porque ela é, desde o nascimento, totalmente independente. O ser humano ao nascer não é interdependente porque ele é totalmente dependente. Por mais certo que dê a sua educação, ele vai ser ao máximo interdependente.

O bebê humano leva pelo menos um ano para andar relativamente bem sobre as próprias pernas; pelo menos dois anos para se comunicar relativamente bem com seus semelhantes, através da linguagem verbal utilizada em seu meio; leva um bom tempo para escolher o que quer fazer de sua vida; tendo escolhido, leva vários anos para se capacitar para viver a vida que escolheu para si; leva ainda mais tempo para, capacitado, conseguir viver com um grau mínimo de autonomia a vida que escolheu; leva muitos anos (só Deus sabe quantos!) para se tornar suficientemente autônomo para cuidar de sua vida por si mesmo (seu sustento, seu abrigo, as coisas de que precisa ou que simplesmente deseja, seus filhos), sem depender o tempo todo dos outros; leva considerável tempo para poder ser responsabilizado (louvado ou criticado, recompensado ou punido) por suas escolhas, decisões e ações.

Em tudo isso o bebê humano é muito diferente da tartaruguinha marinha. É por isso que o bebê humano precisa de educação, e a tartaruguinha marinha, não.

Mas ainda há algumas outras importantes diferenças entre o bebê humano e a tartaruguinha marinha — e essas diferenças são favoráveis ao bebê humano. Nós as veremos em seguida, depois de fazer uma primeira aproximação a uma definição de educação.

D. Educação: Uma Primeira Aproximação

Precisamos nos educar uns aos outros para que nos tornemos capazes de sobreviver sem ajuda permanente dos outros, vale dizer, para que possamos adquirir as competências que nos permitem viver com relativo, mas razoável, grau de independência e autonomia, isto é, de forma interdependente.

E. O Ser Humano Nasce com Grande Capacidade de Aprender

A segunda diferença entre a tartaruguinha marinha e o bebê humano está no fato de que, apesar de o ser humano nascer sem saber fazer nada que lhe permita sobreviver, ele nasce com uma incrível capacidade de aprender — e começa a aprender assim que nasce (segundo alguns, até mesmo antes). E vai aprender a vida inteira, até mesmo quando estiver velhinho.

Um exemplo importante: mesmo antes de aprender a entender a fala humana e a falar, o bebê humano realiza aprendizagens complexas e sofisticadas. Ele aprende, por exemplo, a reconhecer padrões visuais e sonoros que lhe permitem, ainda pequeno, reconhecer a voz e a fisionomia daqueles que convivem com ele — e, não raro, a estranhar as pessoas cuja voz e fisionomia ele não conhece. Esse é um feito fantástico — que ele consegue realizar sem que ninguém lhe ensine nada.

F. O Ser Humano Nasce com Programação Genética Mínima e Aberta

Uma terceira diferença é a seguinte. Nos aspectos que vão além dos puramente biológicos, a programação genética efetiva do ser humano é mínima. Isso, que poderia parecer uma desvantagem, é, na realidade, uma grande vantagem.

O bebê humano tem, como visto na seção anterior, uma capacidade inata de aprender que é fantástica. Mas ele tem de aprender como é que ele vai colocar sua capacidade de aprender a funcionar. Assim, a “capacidade de colocar sua capacidade de aprender a funcionar” (aquilo que comumente se chama de “aprender a aprender”) é algo adquirido — apesar de a capacidade de aprender, em si, ser inata.

Por isso, algumas pessoas, que têm uma inacreditável capacidade de aprender, aprendem tão pouco, enquanto outras aprendem tanto.

G. O Ser Humano Nasce com Capacidade de Sonhar

Em quarto lugar, o ser humano também tem uma grande capacidade de imaginar e sonhar, de, em sua mente, construir mundos, em que se imagina isso ou aquilo, ou fazendo isso ou aquilo…

O ser humano sonha ser bombeiro, ou corredor de Fórmula 1, ou piloto de guerra; ou atriz, ou educadora, ou cientista; ou monarca, ou presidente da república, ou salvador da humanidade… E todos sonham ser felizes, ou seja, ser capazes de fazer alguma coisa que traga satisfação e realização dos mais íntimos, profundos, e até mesmo escondidos anseios de sua alma.

É por isso que se pergunta a uma criança o que ela quer fazer de sua vida, “o que ela quer ser quando crescer”. E nunca se faz essa pergunta a uma tartaruguinha marinha, ou a um cachorro, ou a um cavalo.

H. O Ser Humano Nasce com Capacidade de Escolher e Decidir

Em quinto lugar, o ser humo nasce com a capacidade de, dentre os vários sonhos que tem, escolher alguns para procurar transforma-los em realidade, decidindo investir nos meios necessários para que eles deixem de ser somente sonhos, nada mais. . .

Dificilmente conseguiremos ser tudo o que sonhamos ser, fazer tudo o que sonhamos fazer. Por isso, temos de escolher. O processo de escolha é, em última instância, o processo de hierarquizar nossos sonhos, nossas preferências, nossos objetivos para que possamos investir nossos recursos (sempre limitados e muitas vezes escassos: tempo, dinheiro, bens) naquilo que nos é mais importante.

I. Educação: Uma Aproximação Melhor

Educação, agora podemos dizer, em aproximação melhor, é o processo pelo qual nos tornamos capazes:

  • de sonhar os próprios sonhos;
  • de, com base neles, definir para nós um projeto de vida (liberdade);
  • de criar condições para transformar nosso projeto de vida em realidade, desenvolvendo nossos talentos ou adquirindo, nesse processo, habilidades, atitudes, emoções, valores, conhecimentos e informações necessários (competência);
  • de fazer com que a execução de nosso projeto de vida se torne fonte de sobrevivência, satisfação e realização para nós, fonte de sustento para os que possam vir a depender de nós, enquanto eles de nós dependerem, e fonte de inspiração para aqueles que conviverem conosco (interdependência).

J. Por que Precisamos de Educação?

Respondendo, de maneira mais sistemática, à pergunta da primeira seção, precisamos de educação porque nascemos incapazes até mesmo de sobreviver por conta própria, mas com uma grande capacidade de aprender, de sonhar, e de escolher e decidir, que é mister desenvolver. Essas capacidades fazem toda a diferença.

A tartaruguinha marinha não possui essas capacidades, que também não estão disponíveis a animais de outras espécies. Cavalos, por exemplo, podem, por talento natural ou treino, se tornar cavalos de carga, cavalos de circo, cavalos de corrida, cavalos de guerra, cavalos reprodutores, ou simples pangarés que carregam crianças nas costas em alguns lugares turísticos. Mas eles não sonham com essas coisas, nem, muito menos, escolhem e decidem o que vão ser. Alguém (um humano) faz isso por eles.

O objetivo maior de toda educação é, portanto, contribuir para que transcendamos (deixemos para trás) as fases de nosso desenvolvimento em que, porque carecemos de criatividade e competências, somos totalmente dependentes e, por isso, incapazes de autonomia e liberdade. A educação é uma busca constante de criatividade e competência para que possamos, de forma cada vez mais plena, viver a nossa autonomia e exercer a nossa liberdade.

Embora, nos níveis iniciais, a educação possa ter um elemento de diretividade e aí se possa esperar que alguém nos ensine alguma coisa, ou a fazer alguma coisa, nos níveis mais altos o foco na ensinagem e suas técnicas deve ser substituído pelo foco na aprendizagem como algo ativo, interativo, comunicativo, colaborativo — aprendizagem que só nessas condições é realmente significativa.

Na Educação de Nível Superior, em que supostamente já temos um projeto de vida e sabemos, ou facilmente podemos descobrir, do que precisamos para transformar esse projeto em realidade, é possível, e desejável, fazer todo uso possível dos espaços de (por um lado) liberdade e de (por outro lado) interação e diálogo que nos são abertos.

Embora se admita que, no nível fundamental, e, talvez, no médio, e, quem sabe, especialmente em cursos preparatórios, totalmente apostilados, os alunos possam ter a expectativa de que seus professores sejam “sages on the stage”, artistas didáticos que, do alto de um palco, despejam sabedoria em cima deles, é preciso reverter essa expectativa.

 No nível superior, porém, os alunos devem ter a expectativa de que seus professores operem, ora como facilitadores da aprendizagem, ora como problematizadores de aprendizagens já feitas; ora como quem combate o ceticismo, ora como quem desconstrói certezas; ora como quem acalma, contém e conforta; ora como quem instiga, força limites, incomoda…

É isso que significa ser jardineiro de sonhos.

Se, nos níveis iniciais da educação, o professor tem um papel mais significativo na aprendizagem do aluno, nos níveis mais superiores a responsabilidade pela aprendizagem está, quase que totalmente, nas mãos dos alunos, que devem ir atrás de seus professores (e de quem mais possa colaborar), levantar questões, questionar, não deixar barato — e nunca ficar quietos, passivos ou meramente reativos em sala de aula.

K. Para que nos educamos?

Quero agora deixar claro qual é a resposta à pergunta: “Para que nos educamos uns aos outros?”

A resposta é simples, quando toda a preparação para ela já foi feita: nós nos educamos uns aos outros a fim de que possamos ser  felizes, isto é, nos realizar como pessoas, cidadãos e profissionais.

5. Conclusão: Educação e Felicidade

Fiz uma referência no início ao fato de que todo mundo quer ser feliz -e ao fato de que ficamos felizes quando nossos sonhos se realizam – ou, pelo menos, quando sentimos que estamos caminhando na direção de sua realização.

O quadrinho de Andréa Beheregaray diz que “A felicidade é o encontro do sonho com a realidade”. Essa frase diz a mesma coisa que eu havia dito, mas o diz de forma mais poética…

A educação é o mecanismo que a raça humana inventou para tentar promover o encontro de nossos sonhos com a realidade. Quando isso acontece, ficamos felizes, sentimo-nos realizados.

Muita gente – a grande maioria das pessoas – não percebe isso. Imagina que a educação é algo desagradável, que nos obriga a agir contra a nossa vontade e até mesmo contra a nossa natureza para aprender um monte de coisas que a gente quase nunca sabe para que serve. Mas estão errados, mesmo sendo a maioria. A educação e a aprendizagem são processos que, quando percebemos a conexão que têm com o nosso desenvolvimento, com a construção de nossos sonhos, com a transformação de nossos senhos em realidade, com a nossa busca da felicidade e da realização pessoal, profissional, e social, são agradáveis, mesmo quando enfrentamos dificuldades para leva-los adiante. Sem educação, a verdadeira educação, ninguém se desenvolve como ser humano, ninguém é capaz de sonhar, ninguém é capaz de transformar seus sonhos em realidade, ninguém é feliz e realizado.

…………

Em São Paulo, 15 de Novembro de 2015.